Faustino Rodrigues: Inexiste uma tradição política-democrática no Brasil

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A saúde da democracia

Faustino Rodrigues, especial para o Viomundo

Para muitos, o simples fato de os resultados eleitorais terem sido sempre respeitados no Brasil significava uma incontestável saúde do sistema político e democrático brasileiro. Era comum, após cada pleito, um texto novo de analistas, em páginas especializadas, elogiando os candidatos, as militâncias e seus congêneres. O otimismo sempre prevalecia e dava o tom de tais artigos, atestando para o leitor que manter as instituições políticas da maneira como estão é mais do que suficiente para o funcionamento do todo e, consequentemente, a felicidade geral.

Voto a uma distância de 2 km de minha casa. Faço o percurso andando à medida em que passo por duas zonas eleitorais. Em uma cidade de meio milhão de habitantes isso é sinônimo de movimentação. E das diversas eleições em que participei sempre era comum a boca de urna. E, em uma oportunidade, testemunhei a compra de votos. O mais espantoso, entretanto, não era a atitude do suborno. Despertava-me mais a aparente naturalidade do corruptor, sua tranquilidade e controle da situação, como algo rotineiro – ou, pelo menos, de dois em dois anos.

Medindo somente por suas instituições, desde 1822 somamos menos de 50 anos de democracia. A manipulação democrática em favorecimento de um grupo ou outro mostrou-se a regra na política brasileira. A grande vantagem do período atual, consolidado em 1988, está justamente no fato de que nossas instituições democráticas mostrar-se-iam rijas e incontestáveis. Daí o otimismo de muitos.

O pioneirismo da urna eletrônica conferiria a suposta segurança da inviolabilidade de um sistema digital em um país que, mitologicamente, nos ensina através do complexo de vira-latas a impossibilidade de confiar no brasileiro comum. E, se não podemos ter fé em nossos conterrâneos, apela-se para instituições, verdadeiros instrumentos para a efetivação da democracia. Logo, manter a solidez de tais instituições seria a grande vantagem, bem como o caminho possível, para a efetivação de um sistema democrático. Assim, toda análise, toda iniciativa propriamente política mira sobretudo tais instituições sob a pena de deixar em um segundo plano o mais interessado nisso tudo – e talvez o mais importante: o cidadão.

No momento em que testemunhei a compra de votos nas eleições municipais daquele ano tive a certeza de a democracia brasileira não ser tão sólida como os autores dos textos do dia seguinte ao pleito pensavam. E isso se torna mais claro ainda ao se olhar para o momento atual, o de um golpe de Estado a se valer das instituições políticas. Tanto é que praticamente a unanimidade desses autores foi pega desprevenida.

Pensando na movimentada semana política, não distingo muito entre a compra de votos por mim testemunhada e o “vazamento” da gravação de Michel Temer. Este sujeito, escravo de seu ego, um ego inflado pela certeza de seu status, o mesmo dos eternos grupos privilegiados no Brasil que o exploram até exaurir seus últimos recursos, tem, de fato, a certeza de ocupar futuramente a cadeira da Presidência da República. Não importa a legitimidade ou não do ato. Importa, ao final, atender ao chamado da tradicional elite política, aquela para quem um golpe político é só um “golpinho”.

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Enquanto isso, resta-nos ver como a máquina política é mobilizada para a realização do brando golpe de Estado. Não vem ao caso uma avaliação do governo atual. Mais relevante, deve-se evidenciar como as outrora inquestionáveis instituições políticas são manipuladas por atores com interesses muito bem definidos. São os mesmos a comprarem os votos na porta da seção eleitoral que, uma vez dentro do Estado, manipulam essas instituições em seu favor.

Eis como se evidencia a fragilidade dos argumentos dos teóricos do dia seguinte à eleição – não enxergam os egos dos Micheis. Nas mesmas proporções, o outro extremo, o dos defensores do golpe, desnudam uma tibieza impressionante. Se tiverem de versar a partir dos princípios referentes ao funcionamento da democracia, não conseguem permanecer de pé. Resta, então, bradar, quando não, grunhir.

Por isso o último ano é pintado como algo muito surpreendente para a vida política brasileira. Até o momento, as atenções estavam todas para as instituições. Não questiono o seu valor para a efetivação da vida política no interior da sociedade. Não questiono o seu papel de resgatar esta sociedade da sombra oligárquica – produtora de desigualdades abissais a refletirem, por exemplo, no funcionamento da justiça. Mas, fundamentalmente, interesso-me pela sociedade brasileira propriamente dita. Talvez, se tivéssemos olhado mais atentamente para ela, medido a importância da democracia para a sua vida – não focando unicamente nas instituições e sua responsabilidade de tutela – teríamos percebido a tempo o golpe que se costurava.

Como lição do furacão político atual, fica, pelo menos para mim, a ideia de que os mesmos grupos sociais – e econômicos – historicamente presentes no controle da vida política brasileira, estão aí. Temos de lidar com eles. E devemos fazer isso não apenas politicamente, mas, fundamentalmente, de forma social ao trazer para o interior da sociedade a consciência quanto à fragilidade de nossas instituições. Devemos ter ciência, sem qualquer complexo, da inexistência de uma tradição política-democrática no Brasil. Definitivamente, 1988 é um marco histórico. Porém, não um marco a sinalizar o fim de uma trajetória – a do estabelecimento de uma saúde democrática. Pelo contrário, o seu valor está na ideia de ponto de partida. É o princípio de algo, não o fim. E 2016, neste caso, representa mais um capítulo, cujo desfecho está em nossas mãos.

Faustino da Rocha Rodrigues é jornalista e cientista social

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FrancoAtirador

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O Brasil é um País que Abraçou o Mundo Inteiro.
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Porém, não conseguiu se constituir como Nação.
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