Em entrevista à agência Saiba Mais, pesquisador chileno explica por que população rejeitou a nova Constituição

Tempo de leitura: 8 min
Pedro Santander, pesquisador e professor da Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso, Chile. Fotos: Reprodução

Fake news, ódio e esquerda desconectada das massas: entenda por que chilenos rejeitaram novo texto da Constituição

Por Rafael Duarte, em Saiba Mais

A maioria do povo chileno rejeitou em 4 de setembro o novo texto que substituiria a atual Constituição do país, em vigor desde o governo do ditador Augusto Pinochet. Com o voto obrigatório, o rechaço venceu por 61,86% contra 38,14% do aprovo.

Um dado ajuda a explicar a derrota da esquerda: o número de chilenos que votou a favor do novo texto foi praticamente o mesmo que elegeu em dezembro de 2021 o jovem Gabriel Boric para a presidência da República.

No 2º turno, Boric foi eleito com 4,6 milhões de votos, enquanto o Aprovo obteve o apoio de 4,8 milhões de pessoas. Ou seja, o atual governo não conseguiu ampliar o número de apoiadores na votação mais importante da gestão até o momento.

O voto na eleição para a presidente não é obrigatório no Chile, ao contrário da votação plebiscitária da nova Constituição. A participação popular nas duas escolhas fala por si: enquanto 55% dos chilenos saíram de casa para votar no presidente, 85% dos eleitores tomaram partido no plebiscito.

A partir de agora, para transformar a Constituição do país em algo próximo do que deseja, Gabriel Boric e o campo progressista chileno terão que negociar com partidos de direita ou buscar outros meios de convencer a parcela da população que não foi convencida ainda.

O rechaço surpreendeu quem estava alheio ao processo, mas nem tanto quem acompanhava os desdobramentos da campanha de desinformação realizada pela direita chilena há mais de 1 ano, desde o povo decidiu, em plebiscito após as revoltas populares de 2019, que o país precisava de mudanças nas leis que regem o Chile. A crise econômica aprofundada pelo neoliberalismo chileno tem massacrado o povo mais pobre.

Entre as propostas incluídas no novo texto da Carta estavam a definição do Chile como Estado plurinacional, com reconhecimento de 11 povos e nações indígenas; paridade em cargos no governo para homens e mulheres; direito ao aborto em casos específicos; aposentadoria e sistema de saúde garantidos pelo Estado; entre outros pontos.

As fake news, o discurso de ódio e a dificuldade da esquerda em dialogar com a maioria da população são apontados pelo pesquisador e professor de jornalismo da PUC Valparaíso Pedro Santander como pontos fundamentais para entender a derrota do campo progressista nesse processo.

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Santander coordena desde 2016 um grupo de jornalistas, engenheiros e linguistas, que monitora as redes sociais no país em contexto eleitoral. Em 2021, às vésperas das eleições, ele concedeu uma entrevista à agência SAIBA MAIS em Valparaíso e falou sobre a concentração de mídia no Chile e o poder que as redes sociais teriam no pleito.

Após a vitória do rechaço no plebiscito, a reportagem voltou a procurá-lo para entender os fatores que levaram a derrota da esquerda menos de um ano após a posse de Boric, um jovem de esquerda que ganhou visibilidade em 2006 na chamada Revolta dos Pinguins, movimento puxado por estudantes secundaristas que reivindicava melhoria no sistema de educação do Chile, e se consolidou como liderança no país com as revoltas de 2019.

Independente do texto reformulado que será aprovado daqui a alguns meses, a nova Constituição é uma resposta às manifestações de 2019, quando milhões de chilenos foram às ruas cobrar mudanças no país comandado pelo então presidente Sebástian Piñera.

A convenção constitucional que conduziu o processo foi presidida pela acadêmica mapuche Elisa Loncon. Os mapuches estão entre os povos indígenas mais tradicionais e perseguidos do Chile.

Para Pedro Santander, o ódio étnico especialmente contra os mapuches, a desinformação e erros estratégicos da esquerda decidiram o plebiscito em favor do rechaço.

Confira a entrevista:

Agência SAIBA MAIS: Professor, em novembro de 2021 o senhor me disse que as fake news não teriam tanto poder de influenciar o resultado das eleições para presidente e um mês depois as urnas consagraram Gabriel Boric. Quase um ano depois, as fake news estão sendo apontadas como um dos fatores para a rejeição da nova Constituição. O que mudou desde então, em tão pouco tempo?

Pedro Santander: Creio que te disse que não me parecia que os boots (robôs) estavam tendo um efeito determinante.

Não as notícias falsas, mas os boots. E efetivamente os boots não tiveram um efeito significativo na batalha da comunicação. Mas no embargo do plebiscito de 2022 as notícias falsas tiveram um papel importante, sim.

Creio que foi parte do arsenal comunicacional que a direita usou. Não foi o único, mas foi importante.

As fake news foram usadas por boots, por usuários de redes sociais anônimos e não anônimos; por gente não conhecida e por usuários importantes, muito conhecidos.

As fake news foram divulgadas por presidentes de partidos, por meios de comunicação, por jornalistas de direita, usadas por tantas pessoas e usuários que calaram o mundo.

Segundo o primeiro estudo que está nascendo agora, uma das principais razões – e mais importante – que muita gente alega para ter votado pelo rechaço no plebiscito, foi o medo de que, se ganhasse a nova Constituição, as casas das pessoas passariam a ser propriedades do Estado. Essa foi uma das fake news mais importantes, muito sensível para pessoas de poucos recursos e pegou profundamente.

As fake news tiveram um controle importante (na votação do plebiscito) e eu diria tão importante como a eleição de Bolsonaro em 2018.

Nessa mesma entrevista no final de 2021, você chamou a atenção para o discurso de ódio contra a nova Constituição e os povos representados na Carta Magna, como os Mapuche, por exemplo. A eleição de um governo de esquerda intensificou esse discurso?

A gente já tinha detectado que o discurso de ódio estava fortemente dirigido contra a convenção constitucional especificamente, contra a presidenta Elisa Loncon, por sua condição de mulher e de mapuche. Então houve muita fake news e mentira espalhada.

O segundo recurso usado pela direita para atacar o plebiscito foi o ódio. E contra o tema mapuche, o tema ético, racial e racista. E também muita gente se manifestou que votaria no rechaço porque (o novo texto) se tratava de uma “Constituição Mapuche”, ou seja, uma Constituição para os indígenas, com um sistema judicial para os índios, que afetaria os chilenos. Com fake news e também com ódio.

Então isso também foi um grande motivo para ser rechaçado o conceito de plurinacionalidade, que se trabalhou odiosamente e que teve um grande efeito de distância e rechaço contra as mudanças constitucionais. Então as fake news e o ódio criaram um ambiente, um clima social muito adverso para a nova proposta constitucional. E as forças populares não souberam enfrentar adequadamente.

Houve alguma ação do governo ou de autoridades judiciais contra esse discurso?

As ações por parte do governo de Boric ou das autoridades dos partidários do governo contra os discursos de ódio e contra as fake news foram tardias e insuficientes.

Um dos grandes erros do oficialismo foi pensar muito tarde e não entender que havia que enfrentar a campanha com mais atenção, organização e com ideias mais concretas, mais claras. Óbvio que das 13 milhões de pessoas que votaram, a minoria havia lido a Constituição. Isso é normal porque se trata de um documento com mais de 300 artigos, um texto difícil, como toda Constituição, e que também não era fácil de conseguir, pois custava mais de 5 dólares.

Então as forças progressistas não souberam enfrentar as fake news e o discurso de ódio adequadamente, e se contrapor a esse ódio e a essas mentiras com ideias sensíveis, simples, que se conectava com a grande maioria que, sem dúvida nenhuma, seria beneficiada com essa nova Constituição. Não houve capacidade e, no meu ponto de vista, também não houve criatividade nem rapidez intelectual para enfrentar comunicacionalmente o que a direita estava fazendo há mais de 1 ano em campanha.

O que o grupo de monitoramento de redes sociais que você coordena na PUC Valparaíso detectou durante o processo da nova Constituinte?

Detectamos uma coisa interessante: no mundo online, digital, das redes sociais os partidários do rechaço, diferente do que aconteceu em 2021, é que a direita operou com autoridades de redes que correspondiam a usuários de contas anônimas.

No plebiscito de entrada em 2020, os partidários do rechaço tinham usuários com muitos graus de influências e pessoas conhecidas da direita como José Kast, Javier Macaya, pessoas da direita muito importantes no mundo das redes sociais. Agora a direita escondeu os rostos tanto on como offline das pessoas mais conhecidas, e operou com contas de cidadãos, de gente desconhecida e anônima.

E quais plataformas a direita chilena usou para divulgar as fake news? Qual é a plataforma mais popular no Chile para esse tipo de ação? Aqui no Brasil, por exemplo, a direita usa, com mais frequência, o whats app para disseminar as notícias falsas…

Não tenho dados objetivos, empíricos, mas o que sabemos é que a direita chilena investiu muito dinheiro no facebook e no youtube. São dados públicos, foi muito dinheiro.

De toda verba publicitária investida na campanha do Plebiscito no facebook, por exemplo, 90% correspondia à publicidade da direita e 10% pelos partidários do Aprovo.

Facebook e Youtube foram duas plataformas muito usadas para instalar fake news. Não temos elementos para comparar o uso de whats app, mas facebook e youtube foram plataformas importantes de investimento publicitário e em função das fake news.

Algumas análises sobre o Chile aqui no Brasil apontam como um das causas para a vitória do rechaço o fato de que o texto da nova Constituição não teria sido debatido com o povo, mas apenas com representações identitárias e ex-presos políticos. Esta avaliação está correta? Para além das fake news e do discurso de ódio, o que, na sua opinião, motivou a rejeição da nova Constituição ?

Sobre a análise de que a Constituição não dialogou com o povo, estou 100%, absolutamente de acordo com isso. Creio que essa teria que ter sido uma eleição para o mundo progressista chileno. E o mundo progressista e a esquerda chilena tem que deixar de dar voltas em temas micro-identitários, temas que só importam às minorias. Ainda que sejam respeitáveis, não podem ser o grosso do discurso da esquerda, do progressismo chileno.

São temas como a diversidade sexual… da diversidade em geral, das pessoas identitárias subalternas que não dizem nada à grande massa da população chilena, que hoje está sofrendo uma situação econômica muito complexa, uma situação social muito instável.

Os temas identitários durante muitos anos foram convertidos no centro do discurso da esquerda progressista chilena, mas só se conectam com uma elite e com uma minoria universitária, ilustrada. Não se conectam com a grande maioria que não importa se eu não disser se as pessoas, as mulheres, as meninas que não creem que a letra “O” nos oprime porque sabem que há um sistema Econômico desigual que nos oprime.

(A derrota no plebiscito) é uma grande lição para a esquerda e o progressismo chileno, por terem ido por ideias pós-modernas, que não mirarem o mundo social, por mirarem no discurso voltado somente às minorias achando que só isso vai resolver o problema maior. Não é assim. A direita dialogou com o mundo social e a esquerda dialogou com as minorias com esse discurso identitário absurdo.

Quando estive no Chile em novembro de 2021, parecia claro que as pessoas estavam mais entusiasmadas com o novo plebiscito constitucional do que com as eleições chilenas, que Boric venceu. Na sua opinião, o atraso de Boric em realizar as reformas que prometeu freou o entusiasmo das pessoas?

A respeito da demora de Boric em implantar as reformas, estou de acordo com você. A quantidade de eleitores que aprovou a nova Constituição foi a mesma que ele obteve no 2º turno da eleição contra José Kast. Ou seja, o governo não conseguiu crescer nada. Nem em números relativos nem absolutos.

Dito isso, o governo Boric cometeu um grande erro. A observação dos processos de transformação latino-americanos tanto no primeiro ciclo, na primeira hora com a chegada ao poder, como no segundo, nos demonstram algo claramente: que os governos que querem ser governos de transformações têm que ser ofensivos, e não podem começar numa defensiva.

Petro (Gustavo Petro, presidente da Colômbia), AMLO (Andrés Manuel López Obrador, presidente do México), Luiz Arce, presidente da Bolívia, nos demonstram: você tem que ser uma pessoa ativa porque senão vão te encurralar rapidamente. Porque você tem tudo contra: sistema midiático, sistema institucional, sistema financeiro, a forças armadas, tudo contra. A única coisa que você pode ter a seu favor é o povo, o povo mobilizado.

E se você não passar à ofensiva e ficar na defensiva, tratando as oligarquias, você não vai ter um povo que te apoie. Foi isso que se passou com Boric. E no meu ponto de vista, Boric cometeu um grande erro. Ele iniciou seu governo freando a quarta retirada dos fundos de pensão, algo que a Frente Ampla sempre apoiou (projeto previa a retirada de 10% das contas de aposentadoria pessoa física para ajudar as famílias prejudicadas durante a pandemia. O governo comemorou a derrubada do projeto pelo Congresso). Ele freou. Essa foi uma das primeiras medidas do governo, ao frear a retirada dos fundos de pensão das pessoas, projeto em discussão, Boric decepcionou e gerou uma frustração do amplo campo popular.

Leia também:

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Joana Salém: A encruzilhada chilena rumo à nova Constituição

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Zé Maria

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