Em discurso antológico, Stedile celebra lutas históricas: ‘Medalha Farroupilha é para todos os lutadores da reforma agrária’. VÍDEO
Tempo de leitura: 9 minPor Conceição Lemes
Na tarde de 16 de dezembro de 2024, o Salão Júlio de Castilhos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul viveu um momento memorável.
João Pedro Stedile, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), recebeu a Medalha Mérito Farroupilha, a maior honraria do Parlamento gaúcho.
Proposta pelo deputado Adão Pretto Filho (PT), a honraria foi aprovada por unanimidade.
“É um companheiro de luta, de causa e de sonhos”, começou dizendo Adão Pretto Filho, referindo-se ao homenageado. ”Um lutador social, reconhecido não só no estado, mas no Brasil e no mundo.”
Ao resgatar a história do MST, o deputado relembrou o pai Adão Pretto e os números que resultaram de “atos de coragem que marcaram uma geração de lutadores”.
Atualmente, há 400 mil famílias assentadas no Brasil. No Rio Grande do Sul, são 13 mil.
João Pedro Stedile fez um discurso antológico.
Mais abaixo, sob o título Uma medalha farroupilha para as lutas históricas do povo gaúcho!, está o que o homenageado preparou antecipadamente.
Como vão perceber, Stedile traça uma linha do tempo para contar essa história.
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Mas, na hora, à medida que discursava, ele foi acrescentando detalhes fantásticos, imperdíveis.
Por exemplo, a carta do crítico literário, sociólogo e professor Antonio Candido (1918-2017), um dos maiores intelectuais da história do Brasil.
Antonio Candido era amigo do MST.
Em abril de 2011, ele datilografou numa máquina ”Lettera 44” uma carta ao movimento e deixou-a na sua escrivaninha, onde ela ficou até 12 de maio de 2017, quando faleceu, aos 98 anos.
Só depois a carta foi descoberta e entregue pela neta ao MST.
Em seu discurso, Stedile compartilhou o trecho em que Antonio Candido diz: ”Na bravura do MST, em sua luta histórica, palpita o coração do Brasil!”
”Nesses 40 anos de luta, tivemos vitórias, conquistas, mas também pagamos com a vida de diversos companheiros/as assassinados”, escreveu e discursou Stedile.
Roseli Celeste Nunes da Silva foi uma delas. Em 1987, teve a interrompida no trevo de Sarandi (RS) por lutar pelo direito de viver com dignidade no campo.
Rose, como era conhecida, lutava pela reforma agrária e os direitos das mulheres.
Na madrugada de 29 de outubro de 1985, mais de 7 mil trabalhadores sem terra, entre os quais Rose, ocuparam a então fazenda Anonni, um latifúndio improdutivo de mais de 9 mil hectares no município de Pontão, norte do Rio Grande do Sul.
Três dias depois da ocupação, em 1º de novembro de 1985, Roseli deu à luz ao filho Marcos Tiaraju Correa da Silva, a primeira criança a nascer num acampamento do MST.
Em 31 de março de 1987, um caminhão avançou sobre um ato pacífico de trabalhadores sem-terra na BR-386, em Sarandi (RS), atropelando-os.
Matou três.
Roseli Nunes, 33 anos de idade e três filhos, era uma delas.
À época, ela jamais imaginaria que o filho nascido na ocupação do MST se tornaria médico um dia.
Pois foi o que aconteceu 25 anos depois devido a um convênio firmado entre o MST e governo de Cuba.
Em 2006, o filho de Rose foi para Cuba cursar Medicina, onde ficou por seis anos e meio.
Em outubro de 2012, Marcos Tiaraju retornou ao Brasil, revalidou o diploma estrangeiro para atuar em Nova Santa Rita. Atualmente, Tiaraju vive no município de Sério, no Vale do Taquari, e é supervisor do Programa Mais Médicos para o Brasil.
“Dos 1080 médicos brasileiros formados, 580 são do MST”, contou Stedile.
Ao longo do discurso, você terá a oportunidade de conhecer nomes e histórias de outros lutadores gaúchos da reforma agrária
Entre eles, Sepé Tiaraju, Paulo Schilling, Adão Pretto (o pai), Enid Backes, Zecão (de Palmeiras das Missões), Toinho (de Nonoai), Jair Calixto, Itamar Siqueira…
“A Medalha Farroupilha é para todos os lutadores da reforma agrária, desde Sepé Tiaraju até o Itamar Siqueira que nos deixou na semana passada”, frisou.
Stedile fez questão de homenagear todos os companheiros e companheiras.
Muito emocionante.
Gesto de grandeza e gratidão de alguém que certamente é ponto fora da curva.
O discurso completo está no vídeo que aparece no topo da página. Foi o leitor Zé Maria que nos enviou.
Vale a pena assistir cada minuto.
Stedile nasceu em Lagoa Vermelha (RS), em 1953. É graduado em Economia pela Pontificia Universidade Católica do RS e pós-graduado pela Universidade Nacional Autônoma do México.
Ativista social, ainda na juventude atuou em sindicatos do meio rural e em ações da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no final da década de 70. Em 1984, ajudou a fundar o MST, onde atua até hoje, além de outros organismos do movimento social, como Via Campesina e Assembleia Internacional dos Povos (AIP) e ALBA Movimentos.
Abaixo, o texto escrito pelo próprio Stedile com pontos abordados no discurso.
Uma medalha farroupilha para as lutas históricas do povo gaúcho!
1. A medalha não é para méritos pessoais, é para o coletivo do MST. Apenas me tocou a tarefa de emprestar o peito.
2. O MST é herdeiro das lutas históricas do povo gaúcho na luta pela democratização e pelos direitos à terra.
3. Desde os tempos imemoriais até 1756 viviam pacificamente neste território os povos Guarani, Kaigang, Charrua e Xokleng. Usavam a terra como bem comum. Não havia propriedade privada nem cercas nem exploração. Seu sangue e cultura marcam até hoje o povo gaúcho.
4. Mas a metrópole europeia da monarquia espanhola e portuguesa, abençoada pelo Vaticano, invadiu esse território e promoveu a chamada guerra guaranítica. Massacrou aqueles povos em troca da colônia de Sacramento que era dos portugueses e passou a ser espanhola lá no Uruguai
5. Milhares de pessoas foram assassinadas, outras migraram para Missiones e o Paraguai. E seu líder, Sepé Tiarajú, nosso padroeiro, morreu em combate, dia 7 de fevereiro de 1756.
6. E, sob a força do canhão, nasceu nesse território o latifúndio agropastoril, que, em seguida, implantou a propriedade privada.
7. Seguiram-se lutas entre os grupos de fazendeiros disputando território, descritos por nosso escriba maior Érico Veríssimo.
8. E em muitas estâncias latifundiárias se instalou a escravidão, em especial nas charqueadas, adotando a forma mais vil de exploração do ser humano.
9. De 1835-45, muitos trabalhadores negros escravizados foram envolvidos na Guerra dos Farrapos, com a promessa de liberdade e terra. Porém, os líderes farroupilhas os traíram, e o principal batalhão de lanceiros negros foi entregue à sanha das forças imperiais que massacrou todos.
10. Uma guerra organizada pela oligarquia rural para não pagar impostos à monarquia. E foram derrotados, por falta de causa popular.
11. Mais tarde, de 1864-70, nosso povo se viu com a guerra do Paraguai, que só interessava ao império inglês. Muitos trabalhadores pobres, sem-terras e escravos foram, de novo, iludidos com a promessa de Duque de Caxias de liberdade e terra.
12. Com a insustentabilidade da escravidão e a necessidade de mão-de-obra e produção de alimentos, Dom Pedro II, estimulou, a partir de 1874, a migração de milhares de camponeses pobres, famintos, vindos da Europa em busca de terra e liberdade. Receberam terra, ainda que tivessem que pagá-la. Entre eles, estava meu bisavô, com um irmão, que se instalaram na região de Antônio Prado.
13. Sabe-se de inúmeras revoltas de “colonos” por direitos e promessas não cumpridas. Que infelizmente a história oficial não registra. Alguns se aglutinaram em torno da fé rpara resistir, como aconteceu com a revolta dos Muckers, na colônia alemã, que foi liderada por uma religiosa.
14. Em 1924, centenas de soldados gaúchos e mais de 80 valentes mulheres [a história esconde a participação delas] se levantaram em armas, e saíram de Santo Ângelo e São Luís Gonzaga rumo à capital, para lutar, de novo, por liberdade e pelo direito universal ao voto.
Nascia a coluna Prestes. Marcharam por mais de 20 mil quilômetros, invencíveis, derrotando as forças públicas e as oligarquias rurais com suas milícias. Neste ano [2024], celebramos o centenário dessa epopeia histórica de militares gaúchos.
15. Veio a industrialização a partir da década de 30, e com ela o surgimento de uma burguesia industrial, que fez uma aliança com os camponeses, para integrá-los na agroindústria. E, ao mesmo tempo, não teve coragem nem interesse para romper com o latifúndio improdutivo e fazer reforma agrária, como acontecia em toda Europa, Estados Unidos e Japão.
16. O século XX dividiu nosso estado entre a fronteira sul dominada por um latifúndio pastoril atrasado, com os piores índices de desenvolvimento humano, e o norte industrial.
17. Na crise do capitalismo industrial da década de 60, se ampliam as lutas de massa e produzem o primeiro governo popular e de esquerda do país, aqui no Rio Grande do Sul, sob a liderança de Leonel Brizola.
18. Brizola retomou a ideia da necessidade da reforma agrária, criou o IGRA, o primeiro instituto do país para o tema, a primeira lei de terras e iniciou as primeiras desapropriações. Era assessorado por um dos pioneiros do estudo da agricultura gaúcha e defensor da reforma agrária clássica, nosso querido Paulo Schilling, secretário da Casa Civil.
19. Entrou para história a desapropriação da fazenda Sarandi, um enorme latifúndio improdutivo, de capitalistas uruguaios, os Mailios, que aqui exploravam apenas madeira e erva-mate. Centenas de agricultores sem terra foram beneficiados. Muitos familiares dos que hoje engrossam as fileiras do MST. Foi a primeira grande vitória da reforma agrária no Rio Grande do Sul e no Brasil.
20. Brizola e o PTB incentivavam a organização dos camponeses na sua luta por terra e, assim, surgiu o Master (Movimento dos Agricultores Sem Terra), que realizou muitas lutas, das quais emergiram líderes históricos, como Jair Calixto, João sem terra, a família Muller, etc
21. Porém, sofremos um golpe militar e veio a ditadura empresarial-militar de 1964 e, com ela, o terror no campo, prendendo, torturando, levando ao exílio muitos militantes e lutadores da reforma agrária. E exterminaram o Master, o Igra e brecaram a reforma agrária.
22. O capitalismo concentrador acelerava o controle da agricultura, sob a proteção dos militares. E aos pobres restava “exportá-los” para a fronteira agrícola da Amazônia, ou o êxodo rural, para serem mão-de-obra barata das fábricas.
23. Na década de 80 o capitalismo entrou novamente em crise, e com ela ressurge a mobilização popular, que levou á derrota do regime político da ditadura.
24. Ressurgem as lutas pela terra em todo país, iniciadas aqui no Rio Grande do Sul. A ditadura reage e intervém com o coronel Curió. No entanto, a sociedade gaúcha e, em especial as pastorais das igrejas e o movimento sindical, defenderam os sem-terra e ele teve que recuar e voltar pro Bico do Papagaio. Os sem-terra da época festejaram com o grito de que ”em terra de quero-quero, curió não pia!” Estava nascendo o MST!
25. A luta no campo se propaga, defendendo a reforma agrária e as mudanças necessárias. Do outro lado, os descendentes da oligarquia, dos escravocratas, dos maragatos e chimangos, se organizaram na UDR, e seguiram sua sanha de tentar impedir a democratização da terra.
26. Muitos governos estaduais conservadores passaram a usar as forças públicas para proteger os interesses dos latifundiários.
27. ”. Lembro de alguns companheiros/as, entre tantos menos conhecidos, a Roseli Nunes (assassinada no trevo de Sarandi), a Enid Backes, que nos apoiou desde o inicio e foi, sem dúvida, a primeira feminista popular gaúcha, o Zecão, de Palmeiras das Missões, o deputado Adão Pretto, o Toninho, de Nonoai, e o Itamar Siqueira recentemente falecido.
28. A Medalha Farroupilha é para todos eles. É para todos os coletivos que lutaram pela terra, é para o conjunto do MST. É para a saga histórica de nosso povo na luta contra o latifúndio e pela democratização da terra.
E a crise do capitalismo continua…
29. O capitalismo não resolve os problemas do povo, ao contrário, sua lógica é apenas de acumulação de capital, concentrando terras e aumentando a desigualdade social de nosso povo brasileiro.
30. Pior, nosso território e nossa economia agora são disputados pelos interesses das empresas transnacionais, que nos impuseram o monocultivo da soja, do tabaco, do eucalipto, o uso de agrotóxicos, as sementes transgênicas, etc.
31. Quantos gaúchos morreram nesses 40 anos, fruto de enfermidades geradas pelos agrotóxicos, como o câncer?
32. Esse modelo do capital impôs mudanças nas leis ambientais, aumentou o desmatamento e as agressões a todos os biomas, assoreou rios e córregos, destruiu nascentes. Tudo em nome lucro.
33. O resultado foram secas, enchentes, temporais, ventanias. Cada vez mais fortes e todos os anos.
34. Quantos gaúchos foram atingidos apenas nos últimos anos? Só na agricultura se fala em prejuízos de 50 bilhões. O governo federal socorreu com mais de 70 bilhões, com dinheiro de todo o povo brasileiro. Mas nada foi aplicado em medidas preventivas. E, portanto, é fácil prever que as secas e enchentes voltarão, cada vez com mais força.
35. Na reforma agrária também temos mudanças programáticas. Não podemos mais pensar apenas em dividir o latifúndio improdutivo, como manda a constituição federal.
36. Incorporamos ao nosso programa novos paradigmas que orientam nossa ação política. A reforma agrária agora deve ser popular, para atender a todo povo, através da defesa da natureza e da produção de alimentos saudáveis, sem agrotóxicos.
37. O assentado não poderá ser apenas um bom agricultor, mas precisa ser também um zelador da natureza, protegendo as águas, as arvores, a biodiversidade, em nome da sociedade.
38. Para isso queremos enfrentar os desafios de massificar a agroecologia, com o controle das sementes, com desmatamento zero e um plano massivo de reflorestamento. Precisamos ter fábricas de fertilizantes orgânicos, fábricas de máquinas agrícolas para os camponeses e ampliar a organização de agroindústrias cooperativadas.
39. Incorporamos no nosso ideário o direito dos camponeses à educação no campo, em todos os níveis, desde a alfabetização até os cursos superiores. Pois sabemos que só o “conhecimento liberta verdadeiramente o ser humano”.
40. Essa é a nossa missão, nosso compromisso, com o povo gaúcho.
41. Recebemos a medalha como um reconhecimento a todo esse trabalho coletivo de toda base social. E a todos que, ao longo da nossa história, lutaram por justiça social e pela terra dividida. E recebemos como um incentivo a seguir a luta.
42. Antônio Cândido, o mais importante crítico literário do Brasil, escreveu uma carta em abril de 2011, para nosso movimento, e nela disse: ”Na bravura do MST, em sua luta histórica, palpita o coração do Brasil!”
43. E termino apelando ao nosso amigo e apoiador, também militante da reforma agrária, Chico Buarque, que na canção Assentamento, em homenagem ao MST, diz:
“Quando eu morrer
Cansado de tantas guerras,
Morrerei de bem,
Com minha terra!”
Comentários
Zé Maria
Colhendo os Frutos da Luta Popular
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Escola Nacional de Comunicação Popular do MST
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.
Zé Maria
Sem-Terra Acampados no Incra/RS pela “Reforma Agrária Popular” foram
em Marcha até a Assembleia Legislativa do RS Acompanhar a Cerimônia.
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Zé Maria
Lutas Históricas da Classe Trabalhadora Basileira.
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