Eliara Santana e Walter Carnielli: Casa Grande e Senzala nas eleições 2022

Tempo de leitura: 5 min
Em pleno século 21 o Brasil ainda convive com o "voto acabrestado" decorrente das estruturas sociais da Casa Grande e Senzala, discussão imortalizada pelo livro do sociólogo Gilberto Freyre, lançado em 1933, e pelas telas e óleos do pintor francês Jean-Baptiste Debret, que viveu no Brasil de 1816 a 1831

Por Eliara Santana e Walter Carnielli*, especial para o Viomundo

F., 35 anos, trabalha há muito tempo como faxineira numa casa em um condomínio de alto padrão em uma cidade do interior paulista. Neste ano, ela disse à patroa, quando foi perguntada, que vai votar em branco para presidente. Mas F, de verdade, vota em Lula. Só que ela não tem coragem de declarar ou de responder à patroa qual é sua intenção de voto porque tem medo de perder o emprego. Já que a patroa anuncia aos quatro ventos que Jair é o melhor.

J., 50 anos, é jardineiro. Ele se esmera no cuidado com as plantas nas residências onde presta serviço, também num condomínio de uma cidade do interior paulista. Ele capricha muito no que faz, disse que adora mexer com as plantas, é muito falante e está sempre sorridente. Quando puxam a conversa, ele vai contando as coisas. E disse, por exemplo, que está avisando a todos os patrões que vai votar em branco nestas eleições. Mas J., assim como F., vai votar em Lula para presidente. Ele fica cabreiro, mas acaba declarando o voto e diz que fala em votar em branco porque tem medo de perder o trabalho, já que todos os patrões votam em Bolsonaro, falam mal de Lula e perguntam em quem ele vai votar.

A., motorista de táxi em Salvador, não vota em Lula nem em Bolsonaro. Mas, no táxi, ele olhou de soslaio os passageiros saindo do aeroporto – um homem e uma mulher brancos, vindos de São Paulo – e deduziu que os passageiros paulistas votavam em Bolsonaro. No táxi, puxando conversa, ele começa falando bem de Bolsonaro e diz que acha que vai votar nele. Mas um dos passageiros, o homem branco, diz, pra surpresa do motorista, que vai votar em Lula. A prosa muda de rumo, A., fica mais à vontade para falar de verdade o que pensa sobre Bolsonaro e acaba dizendo, reflexivo: “É… pensando melhor, acho que eu vou votar numa das meninas”.

Esses três exemplos são verdadeiros. Eles ocorreram recentemente nesses lugares citados, mas não vamos identificar os personagens por questões óbvias.

Eles ajudam a mostrar, tristemente, talvez uma remodelagem do voto de cabresto agora nas eleições 2022 no Brasil do século 21, que amarga a posição de um dos países com maior desigualdade no mundo.

Espalhados pelos vários condomínios de luxo, mansões, casas, apartamentos na zona sul, aeroportos, milhares de Js, As e Fs escondem seu voto.

Esses casos até poderiam ser considerados recortes daqueles fenômenos conhecidos como “voto envergonhado”, pelo qual eleitores do PT são socialmente intimidados, com vergonha de serem taxados como “quem vota em ladrão gosta de ladrão”, ou “voto amedrontado”, pelo qual eleitores evitam colocar adesivos de campanha em seus carros, com medo de sofrerem arranhões e chutes, ou preferem não usar vermelho, com medo da violência.

As ruas nunca estiveram tão  vazias de “santinhos”, sem carros com adesivos de candidatos e silêncio em locais públicos. Ninguém mais conversa sobre política nos elevadores, nas padarias, nos bares, nos almoços de família.

As únicas manifestações que vemos, em todos os estados do Brasil, são de uns poucos carros bem caros  com grandes bandeiras do Brasil no capô.

No entanto, o movimento que esses exemplos acima denotam revela um terceiro fenômeno, um outro tipo de voto, o “voto acabrestado”.

É um fenômeno deste Brasil do século 21 que ainda convive com estruturas sociais da Casa Grande e Senzala, discussão imortalizada pelo livro do sociólogo Gilberto Freyre, lançado em 1933.

Neste país de agora, o sistema eletrônico de votação eliminou o antigo “voto de cabresto”, uma prática cristalizada pela desigualdade, em que o coronel dono de terras e poderoso determinava o voto dos seus subordinados ou daqueles cidadãos empobrecidos, que recebiam um pé do sapato antes das eleições, e o outro, só depois que mostrasse o comprovante de voto no candidato indicado.

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Segundo o portal do TSE, “o voto de cabresto era aquele em que o eleitor escolhia um candidato por determinação de um chefe político ou cabo eleitoral. Muitas vezes, o cidadão nem sabia exatamente em quem votava”.

O sigilo absoluto da participação pessoal nas eleições reduziu a zero o valor do voto – ninguém consegue demonstrar seu voto, ainda que queira. Por mais  que circulem boatos de que milícias avisam que se o candidato da região não ganhar vai haver represália, isso se torna uma questão estatística – ninguém pode ser pessoalmente responsabilizado.

Voltemos à nossa ideia de um “voto  acabrestado”, que se trata de outra coisa: talvez uma adaptação contemporânea desse fenômeno social que durou tanto tempo no país.

Não é o cabresto propriamente, ou a imposição determinante do voto, mas a ameaça velada ou explícita a partir do poder econômico exercido pelos patrões sobre os empregados, especialmente os empregados domésticos – essa herança escravocrata que ainda permanece no Brasil do século 21 – , ou sobre os trabalhadores precarizados, bem antes das eleições.

É o  monitoramento, é a Casa Grande que permanece na estrutura de um país absurdamente desigual, ameaçando a Senzala moderna de que não vai ter mais trabalho no mês seguinte, dependendo de como aquele empregado vote – e os senhores e senhoras de engenho e coronéis modernos exaltam e berram o nome de seu candidato preferido, neutralizando qualquer chance de dissonância.

A partir da constatação desse fenômeno, a grande questão no momento, para além do grave e perene problema de injustiça social, é o seguinte: como as agências de pesquisa eleitoral e de opinião pública levam em conta esses fenômenos?

Como se computam as intenções de votos dos que escondem sua intenção, ou mudam de ideia dependendo do lugar onde são entrevistados, ou se recusam a responder, por medo, vergonha ou temor econômico?

Como são levados em conta as contradições e os buracos nas pesquisas, aquelas que não fecham 100%?

As pesquisas levam em conta “Brancos e Nulos”  e incluem o resto, para fechar o  formulário, em um bloco de “Não sabem/ não responderam”, que pode ter uma porcentagem bastante alta.

Por exemplo, a pesquisa da Paraná Pesquisas, divulgada em 27 de setembro de 2022, no item “Pesquisa eleitoral espontânea para presidente: 1º turno”, sem lista de candidatos, informa que 22,4% “Não sabem/não responderam”.

Já em 2020 se via algo assim, que não estaria sendo levado em conta:“Datafolha: Pesquisa espontânea mostra índice elevado de votos brancos ou nulos”

O que se vê é que estes “Não sabem/ não responderam” marginalizados nas pesquisas flutuam entre 4% e 8% em geral.

Num país de mais de 150 milhões de eleitores aptos, cada 1% representa 1.500.000 votos.  Mais votos que os eleitores de Recife,  em números redondos, com cerca de 1.200.000 eleitores; Curitiba, com 1.400.000 eleitores; e Porto Alegre, com 1.100.000 eleitores.

Os institutos de pesquisa, mesmo os mais confiáveis, não levam isso em consideração. Não procuram usar ferramentas  matemáticas, lógicas e estatísticas mais sofisticadas para avaliar este grande colégio eleitoral entre amedrontado, envergonhado e acabrestado.

Haveria maneiras de computar e avaliar esses vieses com teorias de probabilidade avançadas, mas não parece ser conveniente.

O resultado das urnas vai mostrar  o preço do descaso:  pode não ser alto, mas, e se custar caro?

*Eliara Santana é jornalista, doutora em Linguística e Língua Portuguesa e pesquisadora do Observatório das Eleições e da Democracia e pesquisadora colaboradora do IEL/Unicamp. Coordenou o curso “Desinformação, Letramento Midiático e Democracia no Brasil”, promovido pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), e foi co-coordenadora do I Ciclo de Letramento Midiático do PPGL da Universidade Federal do Rio Grande

*Walter Carnielli é matemático e lógico, atuando também em filosofia da ciência. É professor titular do Departamento de Filosofia da UNICAMP e membro do Centro de Lógica, Epistemologia e História a Ciência (CLE). É vice-presidente do Advanced Institute for Artificial Intelligence de São Paulo, autor de mais de 100 artigos científicos e de 10 livros, e recebeu o Prêmio Jabutí e a Medalha Telésio-Galilei.

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Comentários

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Zé Maria

https://sintrajufe.org.br/wp-content/uploads/2022/10/satra.jpg
Casos de assédio eleitoral vêm se repetindo;
voto a cabresto é ilegal

Empresário Bandido Bolsobarista Porco
ameaça demissões em massa
se LULA vencer o Segundo Turno.
Ministério Publico do Trabalho
investiga denuncia do Sindicato

Empresa do interior do RS ameaça “reduzir sua base orçamentária”
caso Lula vença as eleições;
comunicado visa intimidar trabalhadores

Nessa segunda-feira, 3, um dia após
o primeiro turno eleitoral, voltaram
as ameaças de empresários.

A empresa de máquinas e implementos agrícolas Stara, que opera no interior do Rio Grande do Sul e cujo dono é um político apoiador de Jair Bolsonaro (PL), divulgou documento ameaçando “reduzir sua base orçamentária” caso Lula (PT) vença as eleições.

O documento foi enviado a fornecedores e afirma que “diante da atual instabilidade política e possível alteração de diretrizes econômicas no Brasil após os resultados prévios do pleito eleitoral deflagrado em 02 de outubro de 2022 e, em se mantendo este mesmo resultado no 2º turno, a empresa deverá reduzir sua base orçamentária para o próximo ano em pelo menos 30% (trinta por cento), consequentemente o que afetará o nosso poder de comprar e produção, desencadeando uma queda significativa em nossos números”.

A Stara tem operações em Santa Rosa e em Não-Me-Toque, cidade da qual seu dono, Gilson Trennepohl, é vice-prefeito, pelo União Brasil, e apoiador de Bolsonaro desde 2018. De acordo com o TSE, Trennepohl fez R$ 1 milhão em doações nesta campanha, sendo R$ 350 mil à candidatura de Bolsonaro e R$ 300 mil para Onyx Lorenzoni (PL), que disputa o governo do estado.

O presidente do Sindimaquinas de Carazinho, que representa os trabalhadores da categoria, Luiz Sérgio Machado avalia que o documento se trata de uma ameaça aos trabalhadores da empresa e de seus fornecedores:
“O recado é para os fornecedores, mas o objetivo é atingir os trabalhadores”, denuncia.

O caso já foi enviado ao Ministério Público do Trabalho (MPT), que deverá realizar apurações sobre a situação.

Vêm se acumulando nas últimas semanas denúncias de empresários ligados a Bolsonaro que ameaçam os trabalhadores de suas empresas. No final de setembro, na Bahia a empresária Roseli Vitória Martelli D’Agostini Lins, sócia da empresa Imbuia Agropecuária LTDA, que produz soja, divulgou um vídeo nas redes sociais estimulando outros empresários a demitirem trabalhadores e trabalhadoras que forem votar no ex-presidente Lula (PT) nas eleições de outubro. O caso da empresária repercutiu nas redes sociais nas últimas semanas. Em seus perfis, ela publicou o vídeo no qual é clara: “Eu queria falar algo para os nossos agricultores: façam um levantamento, quem vai votar no Lula e demitam. Demitam sem dó”. E foi além: “Nós, agricultores, temos que tomar posição. E não venham me dizer ‘ah, não, tem que [respeitar] o direito’. Não é direito, é questão de sobrevivência”.

Poucos dias depois, vídeo gravado na unidade da Imetame Metalmecânica, de Aracruz, Espírito Santo, mostrou o gerente dizendo para os funcionários para não reclamarem no dia que ficarem sem emprego, caso votem no candidato que “diz absurdos com relação às famílias e a quem empreende”.

“Assuntos absurdos com relação às famílias, assuntos absurdos com relação a quem empreende, contra quem tem a coragem de fazer o que nós fazemos e que é estar aqui investindo, sempre para gerar emprego.

Quando você vê pessoas falando coisas negativas de quem faz realmente esse país ir pra frente, e você ainda tem coragem de votar nessas pessoas, no futuro você não vai poder reclamar. No dia que você não tiver mais emprego, você não vai poder reclamar, porque você escolheu”, diz o gerente da unidade no vídeo que vazou.

Orientações das Centrais Sindicais
sobre Assédio Eleitoral no Trabalho

Em meio a crescentes denúncias de coação e assédio eleitoral, nove centrais sindicais produziram e estão divulgando um folheto sobre o tema, explicando que a prática é um crime previsto na legislação brasileira e dando informações sobre como e onde os trabalhadores e as trabalhadoras podem denunciar. A orientação principal é que esses casos devem ser levados aos sindicatos que representam o trabalhador ou a trabalhadora, de forma que a entidade possa atuar no combate ao problema.

https://sintrajufe.org.br/ultimas-noticias-detalhe/empresa-do-interior-do-rs-ameaca-reduzir-sua-base-orcamentaria-caso-lula-venca-as-eleicoes-comunicado-visa-intimidar-trabalhadores

João de Paiva

A jornalita e o matemático que assinam o presente artigo nem tentaram, mas poderiam discorrer sobre a grande diferença entre o índices atribuídos ao bozo-miliciano-pai pelas “pequisas” e o que foi constatado na votação do ultimo domingo. Sete pontos percentuais (até dez dependendo do instituto) é MUITO mais do que qualquer das margens de erro (de +/-3%) divulgadas. Seriam esses eleitores do bozo-miliciano-pai também “envergonhados”? E a migração de votos (quase 100% de ciristas e terceira viáticos) para o bozo-miliciano-pai? Matemática, estatística e probabilisticamente algum deles consegue explicar?

Pedro de Alcântara

Está faltando o capitalismo no artigo. O recurso ao atraso brasileiro, escravidão, Casa Grande, etc., é argumento fraco para os nossos tempos. As eleições nos Estados Unidos, país do capitalismo mais desenvolvido, país imperialista que cultiva o assalto à mão armada em todo o mundo, não tem urnas eletrônicas. É um sistema eleitoral – aliás coisa curiosa no país capitalista mais desenvolvido – híbrido de voto aristocrático com democracia. O assim chamado voto popular passa lá por uma forma de voto muito, muito curiosa. Não está muito longe de curral eleitoral. Faço uma pergunta: por que os países capitalistas não imitam o Brasil no caso das urnas eletrônicas? Tem coisa aí! Recentemente vimos, com surpresa, declarações de embaixadores de que as urnas eletrônicas do Brasil são um modelo a ser imitado. O controle sobre os eleitores nunca deixou de existir por parte dos capitalistas. No fundo são eles que votam. Constantemente fazem ameaças, a de perda de emprego, como no caso da Havan, uma das lojas mais modernas em termos capitalistas. E vai por aí neste nosso mundo democrático!

Zé Maria

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por Partidos ou Empresários Antipetistas,
sob encomenda. Não é uma empresa séria.

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