Sobre caciques e partidos
Cláudio Gonçalves Couto, Valor Econômico, reproduzido no Maria Frô
06/06/2012
A birra de Marta Suplicy, ausentando-se do ato de lançamento da candidatura de Fernando Haddad à Prefeitura de São Paulo, enseja uma boa oportunidade para discutir o papel das lideranças individuais nos partidos políticos.
Ela serve para mostrar que o caciquismo é um fenômeno mais complexo do que sugerem análises apressadas sobre a influência de certas lideranças na definição dos rumos das organizações partidárias.
Quanto a isto, um aspecto ganha relevo: enquanto alguns líderes criam sucessores, atuando na produção ou reforço de novas lideranças (crucial para a sobrevivência organizacional), outros embotam essa criação, contribuindo para a esclerose organizacional.
O problema é distinguir entre caciquismo – um tipo de liderança que subjuga a organização à vontade pessoal inquestionável do líder – e influência.
Uma liderança influente no partido logra convencer os correligionários, sem contudo impor-lhes decisões inquestionáveis.
Assim, se a persuasão é requisito para a obtenção de anuência, não há caciquismo.
Trata-se de diferença de grau, que ultrapassados certos limiares se converte em distinção de natureza.
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Há situações nas quais se migra, ao longo do tempo, de um estado para outro. Assim, caciques podem converter-se apenas em lideranças influentes, seja por que se debilitam ou ajustam a conduta, seja porque um reforço organizacional do partido lhes reduz o espaço para o arbítrio. Inversamente, líderes influentes podem, em certas conjunturas, tornar-se caciques; algo mais provável em organizações partidárias frouxas ou enfraquecidas – o que não é a mesma coisa.
Caciques são os que se colocam acima do partido
Para existir, o cacique necessita do apoio de um subconjunto organizacional dentro do partido: sua entourage, uma facção majoritária ou posições-chave na burocracia. Assim, enquanto o partido como um todo é fraco organizacionalmente, esse subgrupo é relativamente forte, impondo a vontade de seu líder. Contudo, há uma condição principal, decisiva distinguir o caciquismo da influência: o cacique subordina os interesses da organização aos seus próprios; é o projeto pessoal do cacique que sempre prevalece sobre o do partido – e mesmo sobre o de sua claque.
Há quem veja no patrocínio de Lula à candidatura de Fernando Haddad evidência de caciquismo, demonstrando que o PT nada mais seria do que um partido sem vontade própria, a reboque do grande líder. Será mesmo? Isto não se coaduna com características notórias do partido: organização forte, disputa intensa entre facções, espaço para contestação seguido de alinhamento a decisões tomadas pelo conjunto. Na realidade, Lula é muitíssimo influente, mas não um cacique no sentido próprio do termo. E isto não só por méritos próprios dele, mas pelas características do partido que construiu – que restringe o caciquismo.
No caso paulistano, antes mesmo de Marta desistir da candidatura, já enfrentava – além de Fernando Haddad – a oposição interna de antigos aliados, agora pré-candidatos, os deputados Jilmar Tatto e Carlos Zarattini. Candidata duas vezes derrotada à prefeitura, a senadora já não desfrutava da condição de escolha óbvia da agremiação – como foi em 2008. A imposição de seu nome – a despeito de outras postulações, de um clamor interno por renovação e da grande rejeição aferida pelas pesquisas ¬- é que seria caciquismo. Em tal contexto, o apoio de Lula à renovação operou mais como contrapeso à tentativa de caciquismo em nível local do que se mostrou ele próprio uma imposição inconteste.
Compare-se com a autoimposição de José Serra no PSDB, contra Aécio Neves. Verificou-se no ninho tucano uma estratégia de sufocamento da disputa interna pela interminável postergação do embate, até que o ex-governador mineiro jogou a toalha, considerando que não teria tempo hábil para se viabilizar.
A solução pelo alto, dessa ardilosa vitória pelo cansaço, repetiu-se agora na escolha da candidatura tucana à prefeitura paulistana. Após meses alegando que não se candidataria, o que ensejou uma animada disputa entre quatro pré-candidatos (sugerindo renovação partidária) o ex-governador mudou de ideia, inscreveu-se na prévia após o prazo regulamentar, provocou a desistência de dois postulantes e prevaleceu. Serra obteve na prévia apenas pouco mais de 50% dos votos, num embate contra postulantes muito menos expressivos – tanto no que concerne à envergadura política quanto à história. Isto mostra o tamanho do desagrado que sua soberba causou na base tucana.
Fosse o PSDB dotado de maior densidade organizacional, os dois episódios da imposição serrista deflagrariam uma crise interna – como a que deve se produzir no PT de Recife neste ano. O caráter elitizado da agremiação e a baixa intensidade da vida partidária (sobretudo se comparada à do PT) permitem que as manobras dos caciques e seus embates permaneçam basicamente como um problema deles mesmos.
A renovação, neste caso, ocorre apenas nas franjas da disputa política (como nas eleições de deputado estadual e vereador), pelo ocaso das lideranças ou por algum acidente; raramente por uma estratégia bem definida. Em São Paulo, a oportunidade da renovação foi perdida; o risco da esclerose cresceu.
É nisto que as atuações de Lula e Serra se distinguem como influência, no primeiro caso, e caciquismo, no segundo. Enquanto o ex-presidente interveio no processo de modo a promover uma renovação de lideranças e atuando segundo a lógica da organização partidária, o ex-governador apenas fez prevalecer seu projeto pessoal de poder, às expensas do partido, que tornou seu refém. Isto permanece, a despeito de quem venha ganhar ou perder as eleições de outubro.
Algo que confunde a percepção de papéis tão distintos são os estilos muito diversos de um e de outro. Enquanto Lula é um líder carismático e de estilo esfuziante, Serra é um líder gerencial e de estilo soturno. Intuitivamente, o senso comum identifica o primeiro com o improviso e o personalismo, e o segundo com a racionalidade e a institucionalidade. Uma análise mais cuidadosa revela exatamente o oposto.
*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP e colunista convidado do “Valor”.
Comentários
Julio Silveira
Impressionante.
Me desculpem, estou preocupado comigo mesmo. Acredito cada vez mais em na teoria da conspiração. Essa teoria, em que as autoridades e catedráticos, ligados ao sistema, de alguma forma produzem conceitos que servem para fazer afundar possíveis adversários e boiar possíveis partidários. Criando dança com as palavras, de forma a criar um samba conceitual muito bem dirigido para atingir o objetivo de consolidar imagens.
Lucas Gordon
me parece um belo exercício retórico colocar o processo de escolha do canditado do PT como exemplo de democracia e a escolha do candidato do PSDB como imposição, por mais que eu ache o PSDB um exemplo perfeito de decadência do modelo partidário de se organizar a política.
eu certamente apoiarei Haddad nestas eleições, São Paulo não aguenta por muito mais sob o império do neoliberalismo e do conservadorismo. Mas esses PTistas loucos tem que perceber que não tem que aceitar toda e qualquer coisa que o partido/Lula faz.
Vlad
Hahahaha…artigo malicioso.
Só faz é acentuar o que todo mundo já sabe.
Márcio Gaspar
Que o desejo do Serra é ser ditador.
Geysa Guimarães
Bola devolvida com maestria!
CLÁUDIO LUIZ PESSUTI
O PT caminha para atuar como o PSDB sempre atuou , partido elitista.A base pode contestar, mas é atropelada, sem cerimônia.Só as capitais são lembradas, mas sou morador de Santo André-SP, e o Lula aqui inventou um candidato.Pegou um cara do movimento sindical, fez campanha pra ele pra deputado estadual em 2010, ele ganhou, até telefonema gravado do Lula recebi.Agora , impôs ele como candidato a prefeito, na marra, todo mundo abaixou a cabeça, inclusive o candidato que na eleição passada recebeu no primeiro turno 48,5% dos votos e só perdeu no segundo turno por causa do cansaço com 12 anos de PT na prefeitura.Se isto não é caciquismo, não sei o que é .
Taques
O duro não é escrever um “artigo” deste.
Duro mesmo deve ser chegar em casa e encarar os familiares.
Só duas opcões restam para explicar o comportamento do articulista.
A cegueira é a menos ruim.
A outra … deixa pra lá.
abolicionista
Não sei, acho que o problema não é só renovação dos quadros. Líderes como o Lula surgem no cerne de movimentos sociais. Com o fechamento dos espaços públicos onde se possa exercer a democracia de fato, as lideranças não despontam. Com a repressão policial a greves e a manifestações, com a cooptação dos sindicatos, com a criminalização dos movimentos sociais e a despolitização agressiva das massas, fica difícil surgir uma liderança popular autêntica. E não vejo nem o PT, nem o PSDB, nem qualquer outro partido mover uma palha para mudar isso…
Willian
“-um tipo de liderança que subjuga a organização à vontade pessoal inquestionável do líder-”
Nunca vi um definição mais clara do Lula. Parabéns ao autor.
Rodrigo Leme
O autor finge que o mesmo processo não está acontecendo de maneira muito pior no Pernambuco: Lula impondo um candidato de outro partido, no interesse que melhor lhe cabe, indo contra prévias do seu partido. Situação que se reverteu pq o PSB cansou de discutir o sexo dos anjos e foi pra prática.
O autor do texto tenta tapar o sol com a peneira qdo tenta negar que o PT virou partido onde só se anda para onde o Lula manda. E não sei até que ponto isso é ruim, a não ser que o partido adore viver naquela hipocrisia de ser um partido democrático.
Wildner Arcanjo
Quem estudou um pouco a proposta política do partido do PT, para os últimos anos de governo (sobretudo o Federal) sabe muito bem que Lula é um instrumento de ligação entre a proposta política, e de desenvolvimento, e o povo. Nada mais do que isso. Ele manda, e mandava, tanto quanto a Dilma, o Dirceu, o Palocci ou qualquer outro dirigente do PT. Ao contrário do que você tenta induzir, o único partido que não tinha uma proposta política, de desenvolvimento (e sim uma proposta pessoal) era o PSDB e o DEM (ou DEM e PSDB?).
Mardones Ferreira
O que o PT fez em recife foi um ato de partido que não tem cacique. k k k
RicardãoCarioca
Que blá-blá-blá…
Jose Mario HRP
Por mais que se crie defeitos em Lula ainda assim sua luz e inteligencia se enchem de energia!
Junto com Getúlio e Luiz Carlos Prestes forma a triade dos homens de aço do nosso país!
Willian
Depois algumas pessoas questionam como pode Abraão oferecer seu filho Isaac em sacrifício.
Maria ce Lourdes Cardoso
Willian, quando irei ver o nosso povo não misturando os assuntos. Esta tragédia Grega de pai mata filho, esquece. Estuda.
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