De olho na caixa preta
Por Barbara Simões*
Em diplomacia, estuda-se que uma guerra é como um acidente de avião. É preciso que ocorram vários erros sucessivos, que são elos de uma corrente que vão se fechando até se chegar ao acidente. Um avião nunca cai apenas por um motivo.
Nesse sentido, a guerra, como vemos agora escancarada e feia diante de nós, não foi causada apenas por um erro, mas por uma corrente em que cada elo é um erro que se une a outro e que no fim detonou a primeira bomba sobre a Ucrânia.
Fazer a leitura disso é essencial para indicar os próximos passos das relações diplomáticas e, mesmo com o avião no chão, tentar salvar o que restou dentro dele.
1. Ucranianos se lembram dos sucessivos conflitos com os russos e dos embates repressivos a partir de 1930. Se até essa época, mesmo como parte da URSS, havia certa tolerância a traços culturais nacionais, com Stálin a repressão passa a ser intensa, a ponto de ficar lembrada como genocídio ucraniano.
As histórias de traumas são contadas de geração a geração sobre um povo submetido pelo medo. Diferenças culturais, narrativa nacional do “todos pelo um”, como nos ensinou Benedict Anderson, e o trauma dos que foram silenciados por uma ditadura que durou quase um século. Dominação gera ódio contido. Primeiro elo da corrente.
2. Quando os nazistas tomam o leste europeu, são recebidos em alguns territórios de fato como “libertadores”, porque ali estava a dominação vermelha que já havia mandado todos os opositores para a Sibéria. Mas os europeus do leste pulam logo do barco da euforia ao vivenciarem a ocupação alemã.
Depois da guerra e de volta à dominação comunista na plenitude de sua perseguição ideológica, haverá espaço para grupelhos neonazistas equivocados em nome da dicotomia falsa “isso aqui ruim x aquilo lá melhor”, sendo tal discurso acionado pela Rússia de Putin hoje como justificativa para a invasão, a “limpeza” de nazistas, missão de 1945 e recontada como mito a seus seguidores, enviada ao mundo por suas empresas de propaganda. Segundo elo da corrente.
3. Internamente, Putin há alguns anos enfrenta uma crise política e de rejeição sobretudo das novas gerações ao seu governo. Tal ponto de insatisfação interna e a crise política se intensificam no momento da pandemia e apesar de toda a sua máquina estatal de propaganda contínua. Essa máquina oferece a narrativa do inimigo externo para ser combatido, com vantagens de espólio de guerra a serem conquistados. Terceiro elo.
Apoie o VIOMUNDO
4. O acirramento das questões pós pandemia e o endurecimento das posições da Rússia nos últimos anos em questões sérias que envolvem Direitos Humanos estavam postos nos fóruns de discussão do tema na ONU.
Posicionamentos que Rússia traz ultimamente antidireitos humanos, alinhando-se em vários momentos cruciais a países tradicionalmente contrários a essa agenda trouxe a todos preocupações adicionais, que poderiam ter sido discutidas e olhadas com mais cuidado. Outro elo da corrente.
5. Ao fim da invasão da Geórgia e da crise com a Crimeia, sanções são impostas à Rússia, que se movimenta em direção a alianças com a China.
Em outras palavras, a Otan e os EUA jogam a Rússia “no colo” da China ao cortarem possibilidades pelo lado ocidental. Ali, poderiam ter sido negociados outros tratados, com atenção. Não fizeram. Outro elo.
6.O crescimento da ultradireita e dos seus valores de ofensiva militar e espírito bélico, interligados no mundo inteiro e alimentados por perigosas e abrangentes redes de fake news, é real.
Nessa agenda, também o desprezo pelos direitos humanos, o culto a ações radicais e aos líderes fortes que agem como touros, para lembrar o invasor de capacete que invadiu o Capitólio em janeiro de 2021 nos Estados Unidos, é outro elo da corrente.
7. A pandemia, que abre um vazio político no mundo. Toda situação de crise como esta, inédita em nossa geração e sem precedentes iguais, é um sinal vermelho para o surgimento de grandes conflitos ou de eixos de poder que tentarão se afirmar no vácuo causado pela crise mundial. Mais um elo da corrente.
8. A questão da Otan, de que muitos no Brasil falam, é um dos elos dessa corrente. Mas antes de seus últimos movimentos, que seriam o próximo elo, falo aqui da sua própria existência sem uma reconfiguração, sem o acompanhamento das relações pós-guerra fria.
Explico melhor. Quando criada, no pós-guerra, a Otan tinha como princípio: os americanos dentro, URSS fora e Alemanha rebaixada.
O mundo mudou, a URSS acabou e, de certa forma, os termos que poderiam relaxar em acordos mais inclusivos a existência de um órgão criado em contexto de guerra fria não foram feitos.
A Rússia em vários momentos poderia ter sido “aproximada” , a Otan poderia ter sido repensada. Não aconteceu. Sem espaço pelo ocidente, a segunda maior potência militar do mundo aliou-se à segunda maior potência econômica do mundo, a China. Outro elo.
9.A quebra dos acordos que garantiriam que a Otan não se expandiria “uma polegada” para leste da Alemanha.
Outros países queriam entrar, e entraram. O leste europeu, formado de pequenos Estados que precisam de tratados e formados por uma população que rejeita dominação russa por motivos históricos, escolhe aliar-se ao tratado do Atlântico Norte e fazer parte do “grupo dos escolhidos”.
O mundo mudou, a potência soviética não existe mais, e agora são outros contextos. Mas outros acordos não são renegociados com a Rússia, que vê a promessa de que a Otan não cresceria para leste “uma polegada” rompida. Nono elo da corrente.
10. Por fim, a vizinha Ucrânia quer também fazer parte do clube do qual a Rússia está permanentemente excluída, clube que necessariamente posicionará poder bélico em suas fronteiras. Sem carta de negociação, invade um país soberano. Último elo da corrente.
Antes de qualquer reflexão, vale dizer que o uso da violência/guerra como solução de conflitos de forma unilateral não está mais acolhido de acordo com os capítulos 6 e 7 da Carta das Nações Unidas, devendo prevalecer sempre o princípio da solução pacífica das controvérsias, com uma excepcionalidade única para o uso da força como recurso extraordinário quando autorizado pelo conselho: isso é o “dever ser” , mas o direito sempre será o “dever ser”, em situação doméstica ou internacional.
A exceção estaria no capítulo 51, como uso da força em legítima defesa, mas inexistente de forma preventiva no direito internacional. Tal princípio, infelizmente, não foi cumprido.
O avião caiu, há muitos mortos e feridos. Mas ainda existe gente viva lá dentro.
É preciso agora usar o caminho que sempre foi o único. O caminho da conversa, da mesa e da diplomacia. E o acordo terá de ser feito de forma que pareça que todas as partes estão ganhando, sabendo-se que alguém sairá perdendo um pouco mais e cedendo um pouco mais que o outro, e isso é o serviço dos diplomatas.
O conflito precisa parar, os mortos presos na fuselagem retirados, e ainda há tempo de salvar os feridos e os vivos.
Se no acidente de avião às vezes é tarde demais, na mesa diplomática sempre há tempo para que alguma coisa se salve.
Esperamos que a atual crise tenha solução de repensagem, nunca de acirramento dos erros que formaram os elos da corrente que levou este avião a cair.
Por fim, terminamos com Dalai-lama: “Seja gentil quando for possível. Sempre é possível” (Be kind whenever possible. It is always possible)
Um bom voo a todos, que superemos as turbulências.
Barbara Simões é doutora em Literatura Comparada, pesquisadora associada do Homa (Centro de Direitos Humanos e Empresas) e professora associada da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde, de 2016 a 2021, foi diretora de Relações Internacionais.
Leia também:
Bolzan: Contorcionismos da mídia para encobrir e apoiar grupos nazistas na Ucrânia
Jornalista denuncia guerra suja da mídia pró-EUA em favor das forças neonazistas na Ucrânia
Bando de ucranazis, palhaço e ex-miss desafiam uma potência nuclear. É sério isso?
Um diplomata americano veterano e sua visão pró-Rússia no conflito com a Ucrânia
José Luís Fiori: A guerra na Ucrânia e seus efeitos na Europa, Rússia, EUA e China
Porta-voz do governo chinês lista 64 intervenções dos EUA: “A História não esquece”
Lelê Teles: Jornalistas europeus exibem racismo velho de guerra na Ucrânia
Comentários
marcio gaúcho
Se a verossimilança é um fato, imagino que na Rússia todos os museus também retiraram todas as imagens e estátuas de celebridades ocidentais. Discordo do ato em si, porque essas figuras não podem ser esquecidas. Devemos ver as suas imagens todos os dias como exemplo a não ser seguido. Vale, igualmente, para as figuras notórias ocidentais, que sempre, de alguma forma, colaboraram para o genocídio de etnias e nações pelo planeta afora. A grande maioria dos humanos (99%)querem paz e igualdade entre os povos. Os capitalistas querem a manutenção do “status quo”, a destruição e mortes para construir o novo e ganhar mais poder e capital para si.
Zé Maria
https://s2.glbimg.com/eNENY3iqnrP_pIf30v9aqM0bjdY=/0x0:1280×720/984×0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_59edd422c0c84a879bd37670ae4f538a/internal_photos/bs/2022/b/l/MwvyZiRWa42TTVUkP2AQ/whatsapp-image-2022-03-02-at-10.38.40.jpeg
A Onda de Insanidade Coletiva provocada no Mundo
pela OTAN (UE/EUA) contra a Rússia já chegou no RS.
O Museu de Cera de Gramado (RS) retirou a Estátua
de Vladimir Putin que estava exposta entre outras
mais de cem Estátuas de Cera de várias Celebridades.
O atual Presidente da Rússia não voltará a ser exibido
enquanto não cessar a Guerra na Ucrânia. Agora vai!
https://www.mercadoeeventos.com.br/noticias/parques-e-atracoes/museu-de-cera-de-gramado-remove-estatua-de-presidente-da-russia/#:~:text=O%20Dreamland%20Museu%20de%20Cera,travada%20entre%20R%C3%BAssia%20e%20Ucr%C3%A2nia.
Lasquinha Eleitoral
O Palácio Piratini, sede do governo do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre,
foi iluminado na terça-feira (1º) em azul e amarelo, cores da bandeira da Ucrânia.
O gesto representa, para o governador Eduardo Leite, uma ‘singela homenagem à resistência do povo ucraniano’.
Zé Maria
Guerra Total
Na França, o Museu Grévin, em Paris, retirou a estátua de Putin
em protesto contra a invasão da Ucrânia pelas tropas do russas.
A peça foi criada em 2000 e foi transferida para um armazém.
O museu considera substituir a imagem de Putin por uma estátua
do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. [SIC]
[G1-RS.Globo]
Zé
Cada um abre a caixa que quer, da cor que quer. Sugiro à profa. Bárbara a leitura do texto do prof. Coggiola reproduzido nesse sítio, os textos diversos de Pepe Escobar (que não têm sido publicados por este VioMundo). Além disso, e por que não, para uma especialista em literatura, a releitura (caso já tenha lido) de “Guerra e Paz”, na tradução de Rubens Figueiredo.
Deixe seu comentário