Por Lelê Teles
Por Lelê Teles*
o menino nasceu, e como um souvenir de deus, o pequeno peralta já pulou da manjedoura operando milagres e fazendo estripulias.
deu um nó no rabo do porco, puxou a barba do velho josé, montou no lombo burro e saiu dando pinote pelas ruas desertas da palestina.
vive alegre e fagueiro como convém a um deus, conta piadas e recita poemas e conversa com os bichos.
nasceu nu como um indígena e indigente como um refugiado.
nasceu livre, mas não em liberdade, pois viverá numa terra ocupada por estrangeiros.
não experimentará o sabor de uma lágrima, mas se nutrirá das deliciosas gargalhadas infantis.
terror dos falsários, chicoteará os vendilhões, dará alimento aos famintos, consolo aos desenganados e motivo aos revoltosos.
morrerá em breve, magro, cabisbaixo e com uma coroa de espinhos a lhe sangrar a fronte.
seu corpo ficará suspenso no madeiro, fustigado pelo sol, só, renegado pelos seus e abandonado pelo pai.
Apoie o VIOMUNDO
morrerá como um mártir e não como um herói.
lutou o bom combate e venceu ao ser derrotado.
sim, terá uma longa breve vida, morrerá, mas permanecerá vivo eternamente.
palavra da salvação.
*Lelê Teles é jornalista, publicitário, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).
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Lelê Teles
Lelê Teles é jornalista, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Comentários
Zé Maria
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“O Menino na Caverna, Sua Mãe Maria e Um Evangelho Para Meu Filho”
“Eu me pergunto quantas pessoas entre as que celebraram o Natal,
o deste ano ou os do passado, se lembram que Jesus nasceu na Palestina.
Eu, por exemplo, que nasci de pais vindos de um lugar que dista poucos
quilômetros da terra do Cristo, sempre pensei que ele pertencia mais
a outros povos e a outros lugares que não os meus.
O Ocidente se chamou a si o Cristo mas não quis que trouxesse consigo
a Palestina em que nasceu.
Pergunto-me também quantas lembrarão do que acontecia, e acontece,
na Palestina enquanto celebravam.”
Por SALEM NASSER, no Selective Blindness (via Substack, Dec. 29, 2024)
No último Natal, de 2023, estava já em curso, em Gaza, um festival de atrocidades, de crimes de guerra, de Genocídio, que tinha por palcos as escolas, os hospitais, as casas e os edifícios residenciais… e tinha por vítimas aquelas crianças que o Cristo chamava a si e as mães das crianças… sem que, como se diz em árabe, tivessem sequer tremido os cílios da chamada sociedade internacional e dos indivíduos…
Um ano depois, o festival sangrento segue seu curso.
Quem já não queria ver também segue seu caminho, a tranquilidade afetada, talvez, apenas pelo tédio de ter, aqui e ali, que aguentar o protestos de quem insiste em ver, e dizer, que algo de muito errado acontece no mundo…
Quem já via, e continua a ver, vive o desespero de descobrir, talvez mais uma vez, a tragédia e a desesperança da vida humana…
Diante dessa permanência, dessa constância, se falamos contra o vento, se o que dizemos não muda muito, ou nada, às vezes podemos nos perguntar se não estamos falhando, nós, se não deveríamos dizer diferente, se a culpa da nossa impotência não está, ao menos em parte, em nós…
Queria dizer mais, e melhor, neste ano… mas quis o destino que, no carro, enquanto viajava com meus filhos, tocasse uma canção que eu queria que eles entendessem e que eu mencionei no texto que publiquei em 24/12/2023…
Lembrei-me então do texto e quis relê-lo; pensei que poderia republicá-lo aqui no Substack, já que agora ele só estaria disponível para assinantes pagos e que valeria a pena, para alguns, a releitura e, para outros, a sua descoberta…
Vi, ao reler, que tinha as marcas de certa urgência; vi que era preciso impor maior lentidão ao texto…
Por isso, não publico agora uma cópia exata do que escrevi há um ano, mas uma variação, ainda imperfeita, mas melhor, espero…
Eu começava dizendo que Jesus era provavelmente meu palestino favorito, que talvez só perdesse, nas minha preferências, para sua mãe, Maria.
A esta altura, muitos leitores sabem que sou muçulmano.
Não sou propriamente um praticante, mas ser muçulmano faz parte da minha identidade (mais sobre isso, que é um grande tema, em textos vindouros).
Mas, como cresci e vivi no Ocidente, estive submetido sempre aos símbolos e às imagens, religiosos, culturais, históricos e civilizacionais do Ocidente.
E isso inclui o Cristo… Igrejas, museus, quadros, romances, filmes, ao longo de uma vida, tudo isso construiu para mim um homem que, enquanto ideal, é difícil superar…
De algum modo, que não tentarei explicar aqui e agora, a mãe do Cristo,
Mariam em árabe, ganhou para mim a sua dimensão extraordinária pela impressão que têm dela o Islã e os muçulmanos…
É possível ver os dois juntos em inúmeras imagens que registram um de dois momentos extremos e opostos:
o do bebê que se alimenta ao peito da mãe e o da mãe que sustenta no colo o corpo do filho descido da cruz…
Confesso que tenho um fraco pelas “Pietás”…
Eu me pergunto quantas pessoas entre as que celebraram o Natal, o deste ano ou os do passado, se lembram que Jesus nasceu na Palestina.
Eu, por exemplo, que nasci de pais vindos de um lugar que dista poucos quilômetros da terra do Cristo, sempre pensei que ele pertencia mais a outros povos e a outros lugares que não os meus.
O Ocidente se chamou a si o Cristo mas não quis que trouxesse consigo a Palestina em que nasceu.
Pergunto-me também quantas lembrarão do que acontecia, e acontece, na Palestina enquanto celebravam.
Em Belém, onde os Reis Magos foram testemunhar o recém-nascido e seu milagre, não houve celebração neste Natal ou no anterior.
Em toda a Palestina não houve celebrações.
Alguém disse que o menino ficaria em sua caverna, sofrendo pelas crianças massacradas ou tornadas órfãs em Gaza.
Acho que esse alguém se queria referir a um verso de uma canção belíssima que sempre ouço na voz de Fairuz, a voz do Líbano por excelência.
A letra fala de uma Jerusalém violentada pelos seus invasores de 1967 e a certa altura diz do “menino na caverna, e sua mãe Mariam [que são] duas faces a chorar”.
Gosto muito dessa imagem.
A mulher em fuga, temerosa por si e pelo filho que dará à luz, a quem foi prometido que dela adviria a esperança e a salvação, chora a dor das mães e das crianças, e o filho chora porque a salvação que traz não é deste mundo.
Imagens assim, algumas frases, cenas… me servem de sustento:
alguém viu algo real, precioso… e encontrou as palavras, encontrou as cores, os contornos…
Esses sinais que vou encontrando pelo caminho, essas boas novas, me fazem pensar às vezes em compor um Evangelho muito pessoal, talvez para que eu possa legá-lo a meus filhos.
Nele o Cristo apareceria com frequência.
Algumas poucas imagens que comporiam esse meu Evangelho eu compartilho agora. As outras aparecerão nos próximos textos.
Como é tempo de Natal, o primeiro dos conteúdos que revelarei aqui é Morte e Vida Severina, um auto de Natal Pernambucano.
Nessa peça em versos de João Cabral de Mello Neto, um migrante nordestino, tentando fugir da vida desesperançada, encontra ao longo do caminho tantos outros sofredores e muitas vezes a morte. Ao final da peça, nasce uma criança e as pessoas ousam esperar novamente. As qualidades do recém nascido são cantadas. Alguém diz então ao retirante Severino: “…é difícil defender, só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, Severina, mas se responder não pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu com sua presença viva.”
A ideia de um recém-nascido que carrega consigo a resposta da vida ficou gravada em meu espírito quando a moça que viria a ser minha esposa e mãe dos meus filhos citou o Guimarães Rosa de Grande Sertão, por ocasião do nascimento de uma sobrinha: “um menino nasceu – o mundo tornou a começar.”
E para dar conta de um Cristo brincalhão e alegre, leve, meu Evangelho
conterá também um poema de Fernando Pessoa, o Poema do Menino Jesus. (http://arquivopessoa.net/textos/1487)*
Nele Jesus se faz menino novamente e desce dos céus para brincar na terra.
Não é um poema canônico e não corresponde à ortodoxia (que eu pessoalmente posso dispensar), mas me agrada pensar que:
“Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.”
O que seria de nós se não houvesse sonhos de um sono abençoado, de uma Graça brincalhona, de berços divinos em que pudéssemos descansar?
A ideia de um Cristo feito criança, penso agora, talvez sirva a nos revelar o que há de sagrado nas crianças…
Ontem, enquanto tentava conter nos braços o agito de um bebê brincalhão, pensava que não só as crianças são livres de pecado (tema de outro capítulo da meu Evangelho vindouro, na voz de Ivan Karamazov…), mas são, antes de tudo, promessas de vida, esperanças de futuro, histórias por construir…
E que desperdício de vida, que crime contra a esperança comete quem mata, dia após dia, às dezenas, às centenas, aos milhares, as crianças da Palestina!
E o que dizer das que sobrevivem, do sofrimento que terão experimentado tão cedo e em tão pouco tempo, excessivo se distribuído por décadas de vida, e que terá violentado nelas tudo que havia de inocente…
É porque neste mundo há tanto desperdício, tanta vida e tanta esperança se perdendo tão cedo, que meu Evangelho não se pode bastar com a promessa dos recém-nascidos que, por surgirem no mundo o fazem tornar a começar e defendem a vida mesmo quando ela é Severina.
Por isso, para que o Evangelho inspire a lutar contra o desperdício e sua injustiça, eu incluiria uma crônica de Rubem Braga, Conto de Natal.
Nele, m casal de retirantes com seu filho de seis anos busca abrigo, a mãe está para dar à luz.
Ao perceberem que noite de Natal, resolvem dar ao recém-nascido o nome de Jesus Cristo.
Mas o bebê não sobrevive.
Neste caso, igualmente Severino, o desperdício fica por conta da precariedade, da pobreza…
Meu Evangelho incluiria, portanto, uma frase do Imam Ali Ibn Abi Taleb:
“se a pobreza fosse um homem, eu o mataria”.
Finalmente, o último Cristo do meu Evangelho que citarei aqui e hoje é aquele de um conto de Hemingway, Today is Friday (Hoje é Sexta-Feira).
Três soldados romanos acabam de participar da crucificação de Jesus e vão à taberna beber.
Um deles, o mais sensível, não se cansa de repetir, admirado, referindo-se ao Cristo na cruz:
“ele estava bem lá em cima”, “ele me pareceu muito bem lá em cima” (He looked good out there).
A impressão que devia lhe causar o crucificado talvez decorresse do saber prévio sobre o próprio martírio, da certeza de que cumpria seu destino inescapável, de que salvava a humanidade.
Devia haver alguma serenidade, alguma paz que emanava do homem supliciado…
Hoje, pensando nesse Cristo, eu olho para o indescritível sofrimento por que passam os palestinos e olho para as crianças de Gaza.
Muitas dessas crianças não sabem a que serve a sua própria morte, a de seus irmão e amigos, a de seus pais, a de suas famílias inteiras.
Algumas percebem que pagam com o próprio sangue pelo direito de viverem, enquanto povo, em sua própria terra, e que este preço só é tão alto porque o mundo lhes virou as costas.
Não sei se algum soldado israelense, nas tabernas em que se brinda às vitórias contra a inocência, estará dizendo sobre as crianças supliciadas o que digo: “como estavam bem lá fora, como estavam bem lá fora!”
Elas não eram nem são o Cristo, mas como ele as deve amar, se existir!
Antes de acordarmos, sonhemos que de fato existe, que feito menino novamente as esteja recepcionando uma a uma no parque de diversões do céu, onde passarão a eternidade a brincar com os anjos.
A cada uma ele dirá que o preço está pago e que já não sofrerão, que agora podem sonhar à vontade…
Salem Hikmat Nasser é Graduado em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo;
Doutor em Direito Internacional, pela
Universidade de São Paulo (USP);
Professor de Direito e Pesquisador na
Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo; e
Coordenador do Centro de Direito Global
& Desenvolvimento da FGV Direito SP.
É Membro Titular do Grupo de Trabalho sobre
Combate ao Discurso de Ódio e ao Extremismo
do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
https://salemhnasser.substack.com/p/o-menino-na-caverna-sua-mae-maria
(*) Canto VIII de “O Guardador de Rebanhos”.
In Poemas de Alberto Caeiro.
[Heterônimo de] Fernando Pessoa.
(Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões
e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). – 32.
“O Guardador de Rebanhos”.
1ª publ. in Presença, nº 30.
Coimbra: Jan.-Fev. 1931.
http://arquivopessoa.net/textos/1487
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Zé Maria
https://bsky.app/profile/revistajacobina.bsky.social/post/3le53tpellk2d
Zé Maria
“O ‘Jesus Jacobino’ de Paulo Leminski”
Paulo Leminski é considerado um dos poetas mais importantes
da segunda metade do século XX no Brasil.
Sua produção se estendeu ao longo de vinte e cinco anos e foi
marcada pela Invenção na linguagem contemporânea brasileira.
Entre suas obras mais importantes estão “Catatau” (1975),
“Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase” (1980)
e “Caprichos & Relaxos” (1983).
Leminski escreveu as Biografias de “Jesus”, “Trotsky”, “Bashô” e
“Cruz e Souza”.
Trecho extraído do livro “Jesus” (Brasiliense, 1984):
Tradição Revolucionária
Um dos pontos essenciais de sua doutrina é a interiorização dos ritos.
Daí, sua hostilidade constante contra o exibicionismo da piedade
dos fariseus.
Jesus os detesta porque mandam tocar trombeta na hora em que vão
depositar esmolas no templo, para que todos saibam como eles respeitam
a Lei.
Os fariseus lhe devolvem o rancor na mesma medida,
classe ideologicamente dominante (o poder romano
era inteligente demais para mexer na religião dos seus
incontáveis súditos, pontuais pagadores de impostos,
que importa que não adorem?).
Influências essênias, contato com João o Batista,
Jesus acelera ao máximo essa tendência de
interiorização dos ritos judaicos, que já tinha começado
com os profetas, no século VII a.C.
O dentro e o fora começam a desaparecer:
exterior e interior tendem a se encontrar num ponto infinito.
Jesus está inventando a alma:
o super-signo que todos somos “dentro”.
Essa, talvez, foi a sua revolução,
a mais imperceptível de todas.
Jesus ocupa um lugar muito especial na lista dos Cromwels,
Robespierres, Dantons, Zapatas, Villas, Lenins, Trotskys, Maos,
Castros, Guevaras, Ho-Chi-Mins, Samoras Machel.
Talvez, seja inadequado aplicar à irradiação da doutrina de Jesus
o qualificativo de “revolução”, afinal, uma categoria política
essencialmente moderna, com implicações não apenas ideológicas
mas, sobretudo, econômicas, administrativas, sociais e pedagógicas.
E bélicas. Uma categoria essencialmente laica.
A saga de Jesus só faz sentido no interior de um mundo de intensidade
religiosa máxima, como o judaísmo antigo, onde as motivações da fé
comandavam todos os aspectos da vida. Uma existência inimaginavelmente
mais rica do que esta jângal sem grandeza, que é a vida das grandes massas
nas megalópoles abortadas pela Revolução Industrial.
Só um energúmeno iria pedir a um profeta da Galiléia, na época de Augusto,
programas concretos de reforma agrária, projetos de participação nos
lucros da empresa ou altas estratégias de tomada do poder através da
organização militar das massas.
Ninguém, porém, que conheça os evangelhos pode deixar de ver o caráter
violentamente utópico, negador (utopias são negações da ordem vigente:
o imaginário é subversivo), prospectivo, des-regrado (r), da pregação de
Jesus.
Nem vamos sublinhar o teor popular de sua doutrina.
Impossível superar esta bem-aventurança:
“Felizes os pobres,
porque deles é o reino dos céus.”
A contradição (binária) pobre x rico, a mais elementar de todas, Jesus viu.
E fulminou, brilhante:
“Mais fácil
passar um camelo
pelo buraco de uma agulha
do que um rico
entrar no reino dos céus.”
O profeta era radical:
“Não se pode servir
a dois senhores:
a Deus e a Mammon.”
Mammon, a divindade cananéia, cultuada pelos comerciantes,
que propiciava bons negócios e fortuna em dinheiro.
Íntegra do Excerto em:
https://jacobin.com.br/2020/12/o-jesus-jacobino-de-paulo-leminski/
[Ao Contrário de Santa Claus (Papai Noel),
Cristo recusou o Patrocínio da Coca-Cola.]
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