Lelê Teles: A parteira, o barquinho ancorado e o coveiro

Tempo de leitura: 2 min
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Por Lelê Teles

Quadro mostra Antígona diante do corpo do irmão Polynice. Tela do pintor grego Nikiforos Lytras (1832–1904); Foto: Wikimedia Commons

A PARTEIRA E O COVEIRO¹

“pulvis es, tu in pulverem reverteris”, padre antônio vieira².

Por Lelê Teles*

a chegada.

nós chegamos ao mundo como chegaram, um dia, aquelas grandes embarcações barulhentas.

tudo é novo diante de nossos olhos virgens.

as primeiras lufadas de ar que arquejamos nos sufocam.

os primeiros focos de luz nos cegam.

em seguida, são eles que nos trazem a lucidez do mundo lizidio.

no primeiro momento, tudo em volta é confusão e desconforto.

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uma vez que estávamos acostumados à calmaria do berço vêntrico com sua liquidez amniótica.

nascemos para ser feliz, entretanto, ninguém nasce sorrindo.

o choro é o nosso grito primordial.

choramos para pedir comida, para dizer que temos frio ou sono, pra exigir carinho…

o choro é a nossa primeira forma de linguagem.

mas esse choro primevo não tem o significado emocional dos choros subsequentes.

as primeiras lágrimas que gritamos são destituídas de tristeza.

elas são uma vontade de dizer.

o choro da bebê é um ato primitivo de fala.

quando aprendemos a sorrir, descobrimos a alegria.

e, só a partir daí é que, por contraste, o choro ganha um novo significado.

então, o choro perde o seu atributo de palavra e passa a ser a expressão de um sentimento.

lembremos que é sempre as mãos de uma terceira pessoa que nos inaugura no mundo da vida.

não surgimos como a filhote de uma baleia que já nasce sabendo nadar.

ou como uma girafinha que despenca de uma grande altura e, em seguida, fica de pé, caminha e come.

nós precisamos da sutileza diante do ato violento que retira, de dentro de uma caverna escura, um ser demasiadamente frágil.

até o menino-deus precisou das delicadas mãos de uma salomé.

a parteira é o porteiro, não o que guarda a porta, mas o que guarda o porto.

é ela quem desata o nó da nau da vida e permite que a nau navegue livre.

no ventre, éramos um barquinho ancorado.

durante um certo tempo mamamos, amamos, choramos, sorrimos, falamos, respiramos ares e enxergamos todas as cores do mundo.

depois vem o naufrágio.

somos uma nau frágil, por isso, uma hora soçobramos.

inexoravelmente virá o dia em que deixaremos de enxergar a luz e o ar nos faltará.

é o tempo da partida.

ou da volta.

o tempo em que esse tempo acaba.

e, novamente, mãos terceiras nos devolverão a uma caverna escura.

para começar tudo de novo.

por isso, antígona lutou tanto para que seu irmão polinices tivesse o direito ao túmulo.

os ritos de passagem, em todas as culturas, têm sempre o túmulo.

porque enterrar é como plantar uma semente.

o coveiro é como o bom semeador, ele é o porteiro de um outro porto.

no momento que ouvimos a batida da porta que se fecha às nossas costas, vemos entrar a luz da outra porta que se abre à nossa frente.

é caronte, o barqueiro sombrio, quem nos ajuda a fazer a passagem.

e depois dele haverá, sempre, uma salomé.

a parteira que iniciará uma nova partida.

e assim, vida e morte se complementam, eternamente.

palavra da salvação.

¹poepitáfio para um tio que partiu hoje.

²sois pó, e em pó vos haveis de converter (sermão da quarta-feira de cinzas).

*Lelê Teles é jornalista, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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Lelê Teles

Lelê Teles é jornalista, roteirista e mestre em Cinema e Narrativas Sociais pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).


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Comentários

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Sandra

Texto muito bonita, uma justa homenagem ao seu tio.

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