Wálter Oliveira, sobre a “nova” política de saúde mental: “Houve manobras parecidas às usadas para comprar votos no Congresso”
Tempo de leitura: 8 minpor Conceição Lemes
Em 30 de janeiro de 2018, a Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, encaminhou ofício (na íntegra, ao final) ao ministro da Saúde, o engenheiro Ricardo Barros, solicitando informações a portaria nº 3.588, que mutilou a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM).
Deu dez dias úteis para ele responder.
O prazo vence nesta quinta-feira, 15 de fevereiro.
“A mudança foi praticamente clandestina, com manobras muito parecidas às usadas para a compra de votos no Congresso, o que chamou atenção das pessoas e entidades da área de saúde e da Procuradoria”, afirma Wálter Oliveira, presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme).
Foi na reunião de 21 de dezembro de 2017 da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) do Sistema Único de Saúde (SUS), que é integrada por três partes: Ministério da Saúde, Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass) e Conselho Nacionais das Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).
De forma açodada e intempestiva, de forma nunca vista antes, a CIT aprovou a “nova” política de saúde mental.
Tudo em poucos minutos, pilotado com mão de ferro pelo ministro da Saúde, o engenheiro Ricardo Barros, sob a bovinice geral, inclusive do coordenador de Saúde Mental, psiquiatra Quirino Cordeiro.
A truculência do ministro foi tamanha que ele se recusou a dar a palavra a Paulo Amarante, professor da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz) e pesquisador respeitado internacionalmente.
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Tampouco a Ronald Santos, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), instância máxima de deliberação do SUS.
Diante de tudo isso, Conselheiros Nacionais de Saúde exigem que o Ministério da Saúde revogue a portaria nº 3.588.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (PFDC/ MPF), como já dissemos no início, também inquiriu o ministro sobre as mudanças (na íntegra, ao final).
“A interpelação feita pela procuradora Deborah Duprat retrata exatamente a detecção de uma violação por parte do Ministério da Saúde”, diz Wálter Oliveira.
“Ela denuncia a maneira espúria como se tenta trocar políticas baseadas em evidências científicas e apoiadas por ampla participação social por atos sem sustentação técnica, sem respaldo da sociedade e sem consulta aos diversos atores envolvidos”, observa.
Wálter Oliveira é médico, mestre em Saúde Pública e doutor em Filosofia. É professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde coordena o Grupo de Pesquisas em Políticas de Saúde /Saúde Mental (GPPS).
Viomundo — O que representa a “nova ” política de saúde mental aprovada pela CIT?
Wálter Oliveira – Na minha avaliação, os interesses de determinados grupos econômicos, como as comunidades terapêuticas, e a defesa ideológica da mentalidade manicomial. A nova “política retoma o financiamento dos hospitais psiquiátricos e cria serviços ambulatoriais, em prejuízo do investimento em serviços de base territorial e comunitária.
Viomundo – Como avalia o coordenador de Saúde Mental do ministério, Quirino Cordeiro, e o ministro Ricardo Barros na condução da mudança proposta?
Wálter Oliveira — Não houve, por assim dizer, uma decisão, no sentido de ações e estratégias definidas. Nenhum dos dois conduziu suas propostas de maneira republicana. Muito menos da maneira como as discussões na área da saúde são tradicionalmente conduzidas.
Viomundo — Afinal, quem elaborou a proposta, já que ninguém do controle social do SUS foi ouvido?
Wálter Oliveira — Boa pergunta. O coordenador de Saúde Mental não compartilhou nem mesmo com sua própria equipe a proposta de mudança. Algo absolutamente inusitado, jamais visto. O coordenador de Saúde Mental humilhou a própria equipe.
Viomundo – Qual a explicação?
Wálter Oliveira – Pelo teor do plano, os passos percebidos antes e o sincronismo com os encaminhamentos da Política de Álcool e Drogas, imaginamos que a proposta de mudança foi feita pelo coordenador de Saúde Mental e o ministro em conjunto com a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e o ministro Osmar Terra, do Desenvolvimento Social e Agrário.
Viomundo – Apenas foram favoráveis à mudança — antes e depois de aprovada — a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e a Federação das Comunidades Terapêuticas. O que leva usuários a defender essa proposta?
Wálter Oliveira — As comunidades terapêuticas obviamente têm interesse no aporte desse dinheiro. Portanto, não dá para considerar aí uma manifestação desinteressada.
Quanto aos usuários, vários tiveram sucesso com o tratamento oferecido em algumas comunidades.
O problema maior não é o modelo de trabalho das comunidades terapêuticas, mas o fato de a maioria não cumprir o próprio modelo que preconizam.
Isso poderia ser discutido de forma mais adequada, mas o açodamento, a truculência, a forma como o ministro enfiou essas propostas goela abaixo da nação não permitem que acreditemos que se discutia de fato o tema. Pelo contrário. É enorme a desconfiança de que havia — e há — ouros interesses por trás.
Do contrário, por que o ministro não deu a palavra sequer ao presidente do Conselho Nacional de Saúde?
Por que o coordenador de Saúde Mental escondeu o andamento da proposta de sua equipe?
Por que os profissionais de várias áreas da saúde mental não foram consultados?
Por que, mais uma vez, se usou de maneira quase clandestina o atropelamento e truculência para passar medidas tão importantes e que mexem profundamente com a estrutura da saúde do país?
Por que estão tratando o País como um lugar sem lei, sem princípios, sem ética e sem lei?
Por que os secretários de saúde se renderam ao ministro da Saúde e aprovaram uma proposta tão importante sem discutir?
Não se vêm com capacidade para a discussão?
Ou foram usados outros “métodos” para os senhores aquiescerem?
Viomundo – No final de janeiro, a procuradora Deborah Duprat enviou ofício ao ministro da Saúde, interpelando-o sobre as mudanças. O que achou?
Wálter Oliveira — A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (PFDC/MPF) é um órgão de alerta para quaisquer violações que afetem negativamente a cidadania.
A interpelação feita pela doutora Deborah retrata exatamente a detecção de uma violação por parte do Ministério da Saúde.
Ela denuncia a maneira espúria como se tenta trocar políticas baseadas em evidências científicas e apoiadas por ampla participação social por atos sem sustentação técnica, sem respaldo da sociedade e sem consulta aos diversos atores envolvidos.
A mudança da política nacional de saúde mental foi praticamente clandestina, através de manobras muito parecidas às usadas para a compra de votos no Congresso, o que chamou atenção das pessoas e entidades da área de saúde e da Procuradoria.
Viomundo — O que muda para os usuários?
Wálter Oliveira — Em primeiro lugar, foi retirada da política a ênfase na reabilitação. Foi retirada também a proposta de trabalho com economia solidária, o que corta uma iniciativa de sucesso e que inclusive tem peso econômico.
Isso, por si, é um escândalo, contrariando um princípio fundamental do sistema de saúde, o da autonomia das pessoas em situação de enfermidade.
Em segundo lugar, faz-se um aporte muito substancial de dinheiro público para o negócio das comunidades terapêuticas.
Para se ter uma ideia, a minuta falava em R$ 24 milhões, mas esse valor foi retirado da proposta, provavelmente por estratégia, para não escandalizar, pois os outros serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) juntos não chegavam à metade deste dinheiro.
Retorna-se à ênfase dos manicômios com financiamento de leitos de hospitais psiquiátricos e aumento de números de leitos em hospitais gerais, de uma forma que não permite um cuidado de qualidade.
Viomundo — Na prática, quais as consequências dessas mudanças?
Wálter Oliveira — A retirada da ênfase na reabilitação psicossocial e na economia solidária aponta para um caminho de volta a pessoas dependentes, sem incentivo para torarem-se produtivas, tuteladas.
A ênfase nas internações retrocede aos típicos loucos de manicômios, ociosos, dopados, sob a tutela impiedosa de profissionais cuja função é muito mais de carcereiro que de terapeuta.
A ênfase nas comunidades terapêuticas traz um aporte de dinheiro para estas instituições, muitas delas tendo sido denunciadas como locais de tortura, exploração do trabalho dos pacientes e de encarceramento privado.
Tudo isso é absolutamente contra o que se tem de conhecido sobre eficácia terapêutica e sobre uso eficiente de dinheiro público.
Viomundo — Para a Abrasme, como tem de ser o cuidado da pessoa com transtorno mental?
Wálter Oliveira — Um cuidado visando sua reabilitação psicossocial, privilegiando a busca de sua autonomia e independência, entendendo esta pessoa como sujeito de direitos iguais ao restante da população.
Um cuidado que leve em consideração as famílias, a estrutura comunitária, que tenha base territorial e que evite, ao máximo, o confinamento, a retirada do sujeito do convívio social.
Para isso há que se privilegiar dispositivos que já provaram sua eficácia em nível nacional e internacional, como:
*Centros de Convivência
*Residências Terapêuticas
*Serviços prestados nas Unidades Básicas de Saúde
*Trabalho interdisciplinar
*Pequenas enfermarias para eventuais internações que devem ser preferencialmente de curto período e em hospitais gerais
*Emergências psiquiátricas em hospitais gerais
*Treinamento, capacitação e formação de profissionais de saúde para compreensão e utilização destes dispositivos
* Ações intersetoriais
Enfim, tudo o que já está previsto na Lei 10.216 e na formulação da RAPS.
Viomundo — Neste momento, o que o senhor a dizer aos usuários e familiares?
Wálter Oliveira — Que não se desesperem, que se mantenham firmes na luta por seus direitos, que busquem compreender cada vez mais as formas de trabalhar para reabilitação psicossocial, reinserção de pessoas em sofrimento por problemas psíquicos na comunidade e no mercado de trabalho.
Também que não caiam em conversas sem apoio de dados e que busquem profissionais diversos, que ouçam várias opiniões antes de simplesmente aceitar uma oferta de cuidado baseado apenas em um tipo de recurso, como medicação ou internação.
Há muitas formas, hoje, de efetivar um bom tratamento, combinando diversas maneiras de intervenção e os usuários têm direito ao melhor para seu bem-estar.
Viomundo — Daqui em diante, o que fazer para enfrentar a portaria nº 3.588?
Wálter Oliveira –É preciso buscar o diálogo e ser firme. Esperamos que o CNS assuma sua posição com dignidade, deliberando sobre a política.
Não há nenhum motivo plausível para mudar a Política Nacional de Saúde Mental. Em alguns casos, pode-se até ajustá-la, adequá-la, mas não há por que promover mudanças substanciais.
Temos que cobrar, sim, que a política que já existe seja cumprida, conforme as necessidades de quem precisa.
Não devemos aceitar as propostas do ministro e do coordenador de Saúde Mental feitas sem participação social, sem ouvir técnicos, sem esclarecer o por quê das mudanças e das alocações inexplicáveis de dinheiro público.
Temos que conversar com todas as pessoas sobre o assunto. Afinal, é uma questão que afeta não apenas a saúde mental. É uma ameaça à saúde como um todo, ao sistema público de bem-estar social e à democracia.
Diante das mudanças na política de saúde mental, feitas pelo governo Temer, é fundamental resgatar o passado e os riscos do modelo manicomial, para que sirvam de alerta. Segundo o livro Holocausto Brasileiro, da jornalista Daniela Arbex, o descaso que acompanhava a política de internação compulsória para pacientes com transtornos mentais em manicômios resultou na morte de cerca de 60 mil pessoas, expostas ao frio, à fome e à tortura. Esses registros fotográficos estão expostos no Museu da Loucura. Fotos: Lucas Di Capri e Mike Tavares
OFÍCIO Nº 39 /2018/PFDC/MPF
Brasília, 30 de janeiro de 2018.
A Sua Excelência o Senhor
RICARDO BARROS
Ministro da Saúde
Ministério da Saúde
Esplanada dos Ministérios, Bloco G
70.058-900 Brasília – DF
Assunto: Solicita informações da Rede de Atenção Psicossocial no País
Ref. PA 1.00.000.014900/2014-92
Senhor Ministro,
Cumprimentando-o, considerando a importância da implementação e fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para o processo de desinstitucionalização das pessoas com transtorno mental na perspectiva da lei 10.216/01 e de toda a normativa relativa ao assunto, solicito os seguintes dados:
a) o plano orçamentário destinado à Saúde Mental em 2018, sua aplicação, distribuição e forma de implementação dos recursos financeiros por equipamentos de saúde;
b) a relação dos municípios que foram elegíveis por corte populacional (número de habitantes) para construção de Centro de Atenção Psicossocial e que ainda não o possuem;
c) os serviços de saúde mental requisitados para habilitação na RAPS e ainda não concedida;
d) a previsão da maneira de executar as ações do art. 7º da Portaria Interministerial Nº 2, de 21 de dezembro de 2017, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ministério da Saúde, Ministério do Desenvolvimento Social e Ministério do Trabalho.
Consigno o prazo de 10 dias úteis para resposta.
Atenciosamente,
Deborah Duprat
Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão
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