Stiglitz: O sonho de King não se cristalizou nos EUA, demonstram estatísticas
Tempo de leitura: 5 minComo o Dr. King moldou meu trabalho na economia
Por Joseph E. Stiglitz, no New York Times
Eu tive a grande sorte de estar no meio da multidão em Washington quando o reverendo Martin Luther King Jr. fez o eletrizante discurso I have a Dream, no dia 28 de agosto de 1963.
Eu tinha 20 anos e recém terminara a faculdade.
Em duas semanas, ia começar meu curso de graduação em estudos econômicos no Instituto de Tecnologia de Massachussets.
Na noite anterior à Marcha a Washington por Empregos e Liberdade, fiquei na casa de um colega de faculdade cujo pai, Arthur J. Goldberg, era juiz assistente da Suprema Corte e estava empenhado em promover a justiça econômica.
Quem poderia imaginar, 50 anos depois, que esta mesma instituição, que um dia pareceu determinada a construir Estados Unidos mais justos, que incluissem todos, se tornaria instrumento para preservar desigualdades: permitindo gastos praticamente ilimitados de empresas para influenciar campanhas políticas, fazendo de conta que o legado da discriminação eleitoral não existe mais e limitando os direitos dos trabalhadores e de outros demandantes que processam empresas e empregadores por mau comportamento.
Ouvir o Dr. King falar suscitou várias emoções em mim. Apesar de jovem e protegido como eu era, fazia parte de uma geração que viu as desigualdades herdadas do passado e estava comprometida com a correção dos erros. Nascido durante a Segunda Guerra Mundial, eu me tornei adulto enquanto mudanças silenciosas mas inquestionáveis varriam a sociedade norte-americana.
Como presidente do Conselho Estudantil do Amherst College, eu liderei a viagem de um grupo de colegas ao Sul para brigar pela integração racial.
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Nós não conseguíamos entender a violência daqueles que queriam preservar o antigo sistema segregacionista.
Quando visitamos uma faculdade só de negros, sentimentos intensamente a disparidade das oportunidades educacionais dadas a eles, especialmente se comparadas com as que recebíamos em nossa faculdade privilegiada e isolada.
O campo era desigual e fundamentalmente injusto. Era um remendo da ideia do sonho americano com o qual crescemos e no qual acreditávamos.
Foi porque eu tinha esperanças de que algo poderia ser feito a respeito disso e de outros problemas que vi vividamente, ao crescer em Gary, Indiana — pobreza, desemprego episódico e persistente, discriminação sem fim contra os afro-americanos — que decidi me tornar economista, me afastando da intenção anterior de estudar física teórica.
Logo descobri que ingressara em uma estranha tribo. Enquanto havia alguns acadêmicos (incluindo vários dos meus professores) que se importavam profundamente com os assuntos que me levaram à area, a maioria não estava preocupada com a desigualdade; a maioria rezava aos pés do (mal interpretado) Adam Smith, do milagre da eficiência da economia de mercado.
Eu pensei que se esse era o melhor dos mundos possiveis, eu queria construir e viver em um outro mundo.
Neste estranho mundo da economia, o desemprego (se existisse) era culpa dos trabalhadores.
Um economista da Escola de Chicago, o Premio Nobel Robert E. Lucas Jr., mais tarde escreveria: “Das tendencias que são daninhas a uma economia sólida, a mais sedutora — e na minha opinião mais venenosa — é o foco na questão da distribuição [de renda]”.
Outro Nobel da Escola de Chicago, Gary S. Becker, tentaria demonstrar como em um mercado de trabalho verdadeiramente competitivo a discriminação não teria como existir.
Enquanto eu e outros escrevemos vários artigos explicando o sofisma, o argumento dele caiu em ouvidos prontos para recebê-lo.
Como tantos outros, olhando para os últimos 50 anos, eu não posso deixar de me sentir golpeado pelo abismo entre nossas aspirações e o que realizamos.
É verdade, um “teto de vidro” foi estilhaçado: nós temos um presidente afro-americano.
Mas o Dr. King percebeu que a luta por justiça social deveria ser concebida de forma mais ampla: era uma batalha não apenas contra a segregação racial e a discriminação, mas por igualdade econômica e justiça para todos.
Nao foi à toa que os organizadores da marcha, Bayard Rustin e A. Philip Randolph, a chamaram de Marcha a Washington por Empregos e Liberdade.
Em tantos aspectos, o progresso nas relações raciais foi erodido, e até mesmo revertido, pela crescente divisão econômica que aflige todo o país.
A batalha contra a discriminação, infelizmente, está longe do fim: 50 anos depois daquela manifestação, e 45 anos depois da adoção da Lei da Moradia Justa, grandes bancos dos Estados Unidos, como o Wells Fargo, continuam discriminando com base na raça, visando cidadãos mais vulneráveis para suas práticas de empréstimos predatórios.
A discriminação no mercado de trabalho é predominante e profunda.
Pesquisas sugerem que os candidatos com nomes que soam afro-americanos recebem menos chamados para entrevistas de empregos.
A discriminação assume novas formas; avaliações baseadas em estereótipos ainda dominam as cidades norte-americanas, incluindo as revistas aleatórias da polícia que se tornaram padrão em Nova York.
Nosso indice de encarceramento é o mais alto do mundo, apesar de haver sinais, finalmente, de que estados em situação fiscal difícil começam a ver que é asneira, se não desumanidade, gastar tanto capital humano com prisões em massa.
Quase 40% dos presos são negros. Essa tragédia foi poderosamente documentada por Michelle Alexander e outros professores de Direito.
Os números brutos contam boa parte da história: não houve uma redução significativa na distância entre a renda dos afro-americanos (ou hispânicos) e dos norte-americanos brancos nos últimos 30 anos.
Em 2011, a renda média das familias negras norte-americanas era de US$ 40.495 anuais, 58% da renda média das famílias brancas.
Indo da renda para a riqueza, também vemos a discrepância da desigualdade.
Até 2009, a riqueza média dos brancos era 20 vezes a dos negros.
A Grande Recessão de 2007-2009 foi particularmente difícil para os afro-americanos (como tipicamente é para os que estão na base do espectro socioeconômico).
Eles tiveram uma queda de riqueza de 53% entre 2005 e 2009, três vezes mais que a dos brancos: uma discrepância recorde.
Mas a assim chamada recuperação foi pouco mais que uma quimera, com mais de 100% dos ganhos indo para o 1% no topo — um grupo no qual, não seria necessário dizer, não se encontra um número significativo de afro-americanos.
Quem sabe como a vida do Dr. King teria se desdobrado se não tivesse sido abreviada pela bala de um assassino?
Com apenas 39 anos quando foi morto, ele teria 84 hoje.
Enquanto provavelmente apoiaria o esforço do presidente Obama para reformar o sistema de saúde e defender a rede social de apoio aos idosos, pobres e doentes, é difícil imaginar que alguém com um senso moral tão agudo olharia para os Estados Unidos de hoje com algo menos que desespero.
Apesar da retórica sobre a terra de oportunidades, as perspectivas de vida de um jovem norte-americano dependem muito mais da renda e da educação de seus pais do que em quase todos os outros paises desenvolvidos.
Portanto, o legado da discriminação e da falta de educação e oportunidades de emprego se perpetua de uma geração para a próxima.
Com essa falta de mobilidade, o fato de ainda hoje 65% das criancas afro-americanas viverem em famílias de baixa renda não é o prenúncio de um futuro muito bom para elas, e nem para o pais.
Homens com apenas o segundo grau completo tiveram grandes quedas de renda real nas duas últimas decadas, uma queda que afetou desproporcionalmente os afro-americanos.
Enquanto a segregação declarada nas escolas com base na raça foi banida, na realidade a segregação educacional piorou nas últimas décadas, como Gary Orfield e outros estudiosos documentaram.
Parte do motivo é que o país se tornou mais segregado economicamente.
Crianças negras pobres tem muito mais chance de viver em comunidade com pobreza concentrada — 45% vivem assim, em contraste com 12% das criancas brancas pobres, como mostrou o Instituto de Política Economica.
Eu completei 70 anos no começo do ano. A maior parte dos meus trabalhos acadêmicos e servicos públicos nas últimas décadas — incluindo meu trabalho no grupo de Conselheiros Econômicos durante o governo Clinton e no Banco Mundial — foi voltado para a redução da pobreza e da desigualdade. Espero ter correspondido ao chamado do Dr. King, proferido há meio século.
Ele tinha razao ao reconhecer que essas divisões persistentes são um câncer na nossa sociedade, minando nossa democracia e enfraquecendo nossa economia.
A mensagem dele foi de que as injustiças do passado não eram inevitáveis. Mas ele também sabia que sonhar não era o suficiente.
Comentários
Stiglitz: O sonho de King não se cristalizou nos EUA, demonstram estatísticas | vinteculturaesociedade
[…] noite anterior à Marcha a Washington por Empregos e Liberdade, fiquei na casa de um colega de faculdade cujo pai, Arthur J. Goldberg, era juiz […]
Regina Braga
Mas não mesmo…O discurso do Obama foi uma heresia!Mas eu tenho um sonho e o povo Brasileiro tbém…já a elite fica com o Obama!
Luís Carlos
O racismo é m dos flagelos de nossa organização social. Aqui no Brasil sempre se manifestou abertamente também, e nos últimos dias se fez ainda mais visível. Desavergonhadamente presente no caso do Mais Médicos.
Mardones
Aqueles que vivem dizendo maravilhas dos EUA certamente desconhecem esses fatos descritos no artigo. O racismo segue firme e forte na ‘democrática’ América.
Não é à toa que nossa elite se desmancha em elogios aos yankees.
Eunice
Algumas almas são diferentes das almas comuns.Elas vão além.
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