por Conceição Lemes
A liberdade de expressão é um direito protegido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.
O seu artigo XIX diz (o negrito é nosso):
Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 garante a liberdade de expressão e de imprensa, consquentemente o direito à informação:
Art. 220 A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 2º – É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
Há oito dias o secretário de Saúde do Distrito Federal (DF), Humberto Fonseca, desrespeitou esse direito de Otávio Augusto. Portanto, afrontou também a Constituição.
Otávio Augusto é um jovem repórter do Correio Braziliense. Desde 2015, é setorista na Secretaria de Saúde
Na quarta-feira passada (15/02), o secretário Humberto Fonseca convocou uma coletiva de imprensa para anunciar mudanças no programa Saúde da Família no DF.
Otávio perguntou: Secretário, essas mudanças são para facilitar a passagem da gestão para as OSs? Ou significam que o projeto das OSs não irá adiante?
Parêntese. OSs é abreviatura de Organizações Sociais de Saúde, modelo introduzido pelos tucanos em alguns hospitais públicos estaduais da cidade de São Paulo, na década de 1990. Daí, se espalhou para mais hospitais estaduais, também para ambulatórios e serviços de diagnóstico, outros municípios e estados.
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Teoricamente as OSs são entidades filantrópicas, o que as livra do pagamento de milhões de imposto de renda. Na prática, porém, funcionam como empresas privadas, pois o contrato com o poder público — Prefeitura, Estado ou Distrito Federal — é por prestação de serviços.
Elas recebem os equipamentos de saúde absolutamente aparelhados, de mão beijada. E tudo o que gastam é pago pelo cofre do governo. Além disso, cobram taxa de administração, cujo valor não aparece normalmente nos contratos de gestão assinados. Falta, portanto, transparência e controle público sobre elas.
Significam a privatização da saúde pública, através da terceirização.
No final de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) tornou legais os contratos com elas ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1923, que se arrastava desde 1998. Fechando parêntese.
Visivelmente irritado, o secretário Humberto Fonseca respondeu que as OSs não eram o foco da coletiva, mas que, sim, o projeto para implantá-las não irá adiante.
Repórteres de outros veículos presentes valeram-se do gancho e abriram as respectivas reportagens com ele.
Otávio Augusto publicou no site do Correio Braziliense três matérias sobre o tema, além de fazer a versão impressa.
O secretário de Saúde, no entanto, detestou.
Ainda na quarta-feira, 15 de fevereiro, ele telefonou para uma das editoras do Correio Braziliense. Disse-lhe com todas as letras que não tinha gostado da cobertura do jornal sobre a reformulação do Saúde da Família e havia ficado incomodado com uma pergunta de Otávio Augusto na coletiva.
Comunicou-lhe ainda que: 1) não atenderia mais Otávio Augusto; e 2) havia determinado à Assessoria de Comunicação da Secretaria da Saúde (Ascom) que não respondesse mais nenhuma demanda do repórter.
“Estranhei”, conta Otávio ao Viomundo. “Afinal, nunca tive qualquer desentendimento com o secretário”.
“Na quinta-feira, contatei a Ascom e lá me passaram a informação que já havia sido dado à minha editora, ou seja, que eu não seria mais atendido lá”, prossegue o repórter.
Na sexta-feira, o próprio Correio Braziliense entrou em campo.
Tentou resolver a situação com a Secretaria de Comunicação do governo Rodrigo Rollemberg (PSB). O secretário Humberto Fonseca manteve-se irredutível.
No domingo, o Correio publicou esta nota de repúdio.
“Fui censurado, por fazer o meu trabalho”, observa. “Se aconteceu comigo, pode acontecer com qualquer outro colega.”
OSS, A PRINCIPAL PROPOSTA DO GOVERNO ROLLEMBERG NA SAÚDE
Em 2008, no governo José Roberto Arruda (DEM), que foi cassado, o Distrito Federal teve a sua primeira experiência com o modelo de OSs.
A Real Sociedade Espanhola administrou o então recém-inaugurado Hospital Regional de Santa Maria (HRSM). Porém, no final de 2010, órgãos de controle cancelaram o contrato após indícios de irregularidades.
Em 2015, o governo Rollemberg ressuscitou a ideia de implantar o modelo de OSs no Distrito Federal. Tornou-se a sua principal proposta na área da saúde.
A intenção era adotar na atenção básica ou atenção primária em saúde, ou seja, no atendimento inicial dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).
O projeto começaria por Ceilândia, região administrativa do Distrito Federal, com 489 mil habitantes.
Em Ceilândia, a média de cobertura é de 22% da população. No DF, a taxa alcança 33%, segundo dados do Executivo local.
Porém, os órgãos de controle, como Ministério Público do Trabalho e Conselho de Saúde do DF, se posicionaram contra a implantação das OSs, assim como os servidores, sindicatos e população,
O governo Rollemberg também travou uma batalha na Câmara Legislativa.
A lei orgânica do DF veda a atuação de OSs em determinadas circunstâncias.
Em 2016, um projeto do governo Rollemberg tentou mudar a regras. Foi derrotado.
Diante disso, teve que mudar a estratégia.
Daí, provavelmente a bronca do secretário Humberto Fonseca com a pergunta de Otávio Augusto.
Afinal, teve de se manifestar sobre algo que provavelmente não quisesse falar: o projeto das OSs não irá adiante. Ou seja, um recuo em relação àquela que foi considerada a principal proposta da Saúde desde 2015.
— Qual a justificativa do governo Rollemberg para entregar a atenção básica para OSs? – perguntei a Otávio. – Seria apenas para diminuir os gastos?
“O principal objetivo era aumentar a cobertura da atenção primária de modo que os hospitais, sobretudo as emergências, fossem esvaziadas”, diz
O DF tem um problema crônico em relação aos serviços básicos de saúde. A oferta é pequena e de baixa qualidade. A rede sofre com constante desabastecimento.
Tanto que, das reclamações à Ouvidoria da Saúde, 60% relacionam-se a consultas, exames e cirurgias. Em 2016, somaram cerca 8,5 mil queixas.
“O governo falava em diminuição de gastos a longo prazo”, acrescenta.
A prática, porém, demonstra que é exatamente o contrário.
Levantamento realizado pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo revela que os serviços de saúde administrados por OSs custam 40% mais do que os gerenciados diretamente pelo poder público.
“GRAVE DESRESPEITO AO EXERCÍCIO PROFISSIONAL DO JORNALISTA”
A medida arbitrária, antidemocrática, abusiva do secretário Humberto Fonseca foi fortemente repudiada.
O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do DF soltou esta notade repúdio, na qual cobra explicações do secretário, a revisão da medida e se solidariza com o repórter Otávio Augusto:
O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do DF (SJPDF) repudia a atitude do secretário de Saúde do DF, Humberto Fonseca, em determinar que sua assessoria de imprensa não repasse qualquer informação referente a ações da pasta ao repórter Otávio Augusto, do jornal Correio Braziliense. Conforme denúncias repassadas ao sindicato, e também divulgadas pelo próprio jornal em sua edição do último domingo (19/02), a secretaria do GDF se recusa a responder pedidos de esclarecimento sobre a censura.
Segundo o SJPDF apurou, durante coletiva de imprensa na última quarta-feira (15/02), quando foram anunciadas mudanças no programa Saúde da Família, o secretário foi ríspido ao responder a uma pergunta formulada pelo repórter, setorista do jornal na Secretaria de Saúde. Após esse episódio, que deixou o profissional constrangido diante dos colegas, Humberto Fonseca proibiu a assessoria de comunicação do órgão de responder demandas e pedidos de entrevista do referido repórter. Diversos contatos foram feitos pelo repórter e pelo veículo de comunicação junto à assessoria, que se limitou a confirmar a ordem proferida pelo secretário.
Entendendo que tal atitude é um grave desrespeito ao exercício profissional do jornalista, em sua função de apurar os fatos e levar informações de qualidade à população, o SJPDF cobra explicações do secretário Humberto Fonseca. Além disso, ressalta que, caso o mesmo não reveja tal posicionamento, tomará as medidas cabíveis para garantir o devido respeito ao repórter Otávio Augusto. Atitudes como essas não podem ser toleradas num momento em que o país vive a necessidade de reafirmar a democracia e o direito às liberdades de imprensa e de expressão.
Toda a nossa solidariedade ao repórter Otávio Augusto e aos demais colegas que passam por situações como essas no exercício de nossa profissão.
A Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do DF também repudiou a censura ao repórter do Correio Braziliense.
A Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) também condenou a medida.
Em nota, o seu presidente, o deputado Ricardo Vale, líder da bancada do PT na CLDF, lembra que o repórter estava “exercendo o direito à informação”:
Quando um repórter ou um veículo de imprensa solicita uma informação, ele não está fazendo um pedido, mas exercendo o direito à informação, e o poder público – no caso, a Secretaria de Saúde do DF – ao responder, não está fazendo um favor, mas cumprindo a singela obrigação de manter informada a população sobre fatos relevantes ao seu dia-a-dia, e que são de seu direito saber.
Com a desmoralização das instituições, com o uso da força para reprimir a insatisfação popular, com o uso da censura para manter a população desinformada, nascem ditaduras.
A RESPOSTA DA SECRETARIA DA SAÚDE AO VIOMUNDO
Esta repórter perguntou ao secretário Humberto Fonseca, através da assessoria de imprensa da Secretaria da Saúde, o motivo do seu veto ao jornalista do Correio Braziliense.
Depois de três cobranças, a Secretaria da Saúde enviou a seguinte resposta:
Não há nenhuma determinação legal ou expressa da Secretaria de Saúde no sentido de impedir o trabalho de jornalistas. O que houve foi uma mal-entendido, já resolvido. Os dados solicitados continuam sendo fornecidos pelas áreas técnicas da SES, para todos os profissionais de imprensa, sem exceção.
A Secretaria de Saúde ressalta que mantém sua política de transparência na comunicação pública e reitera que não impôs – nem impõe – qualquer restrição à informação de interesse público. Todos os questionamentos da imprensa seguem sendo respondidos normalmente pela Assessoria de Comunicação Social.
Essa resposta é uma ofensa à inteligência alheia.
Eu, Conceição Lemes, rebati:
O que significa isso?
Ou o secretário vai negar que ligou para a editora do CB dizendo que não havia gostado da matéria e que o Otávio não seria mais atendido?!
Mal-entendido ou o secretário voltou atrás após a repercussão?
Transparência?!
Infelizmente, a resposta da Secretaria é a maior prova de falta de transparência!
A Secretaria da Saúde do DF silenciou.
Postura horrível do governo de um partido (PSB) que se diz socialista.
A emenda ficou pior que o soneto.
Pior porque o secretário Humberto Fonseca não teve coragem de assumir o que fez .
Teria sido mais digno assumir que cometeu um erro.
Todos nós cometemos.
Em vez disso, saiu pela tangente, tentando responsabilizar a editora e o repórter do Correio pelo “mal-entendido”.
Ou seja, faltou com a verdade.
Aliás, governo de um partido que apoiou o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, faz parte da base de apoio do usurpador Michel Temer e ainda defende as suas medidas econômicas o que esperar?
Em tempo: nessa terça-feira, 21 de fevereiro, Otávio perguntou à Secretaria da Saúde se tinha uma fonte para falar sobre a morte de macacos por febre amarela.
Resposta: Não.
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Comentários
Roman
Apenas uma pequena correção, Ceilândia não é um município do DF, é uma região administrativa do Distrito Federal. O DF não é dividido em municípios.
Conceição Lemes
Obrigada, Roman. Vou corrigir já. abs
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