Sanitarista alerta: Operação casada de Temer, donos de faculdade e entidades médicas vai reduzir ainda mais o número de médicos no Brasil
Tempo de leitura: 7 minNo topo à mesa, da esquerda para direita: dr. Carlos Vital, ex-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), deputado Luiz Henrique Mandetta (DEM/MS), senador Ronaldo Caiado (DEM/GO), Florentino Cardoso, presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), e dr. Otto Baptista, presidente da Federação Nacional dos Médicos (FENAM). Abaixo, o senador Pedro Chaves (PRP/MS) com o presidente Michel Temer (MDB/SP). Chaves é o autor do projeto e Caiado, o relator. Fotos: Agência Senado
por Conceição Lemes
De tempos em tempos, a proposta de exame de ordem dos médicos, tal qual o existente para advogados, volta à baila nas corporações profissionais do setor e na mídia.
Neste momento, tramita na comissão de Educação do Senado o projeto de lei 165/2017, que “dispõe sobre os Conselhos de Medicina e dá outras providências, para instituir o exame nacional de proficiência em Medicina”.
O senador Pedro Chaves (PRP/MS) é o autor, e Ronaldo Caiado (DEM/GO), o relator.
Desde estudante, essa questão preocupa o médico sanitarista Hêider Pinto, professor de Medicina da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB).
Tanto que, em 2000, ele foi vice-presidente da Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico – a Cinaem.
Realizado de 1991 a 2001, em mais de 90 escolas de medicina, o projeto Cinaem foi o maior processo de avaliação do ensino médico no Brasil.
Mais recentemente, na condição de responsável pelo Programa Mais Médicos de 2014 a 2016, voltou a se debruçar sobre o assunto.
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POr isso, decidi entrevistá-lo.
Viomundo – O que acha do projeto que está no Senado e propõe exame de proficiência para os médicos poderem exercer a profissão?
Hêider Pinto – Sou contra, é péssimo.
Viomundo – Algum fato especial gerou esse projeto agora?
Hêider Pinto – A proposta não é nova, é um projeto requentado, combatido e derrotado inúmeras vezes e que vive sendo ressuscitado.
Em condições normais de debate e democracia, ele seria derrotado como foi todas as vezes em que apareceu.
Só que, agora, além de apoiado pelo governo Temer, ele é sustentado pelo inusitado conluio da parte mais atrasada da corporação médica com as escolas “fábricas de diplomas”.
Viomundo – Explique melhor esse conluio.
Hêider Pinto – O projeto que está no Senado responde aos interesses de dois grupos conservadores, no momento em conflito, que resolveram propor esse exame de proficiência como solução.
O setor mais conservador da corporação médica quer fazer reserva de mercado e é contra o aumento de médicos no Brasil. Por isso, é contra o Mais Médicos e a abertura de escolas de medicina.
Já o setor privado de educação, quer, obviamente, expandir escolas, independentemente de terem qualidade ou não. Sem exigência, sempre farão o mínimo e o mais barato. E se para baratear custos tiverem que perder qualidade, perderão.
Espero que o tiro saia pela culatra. A população precisa saber o nome de cada parlamentar que atuar em prol dessa proposta deletéria.
Viomundo – No governo Collor (março/1990 a dezembro/1992), houve uma tentativa de exigir esse exame de ordem, não houve?
Hêider Pinto — Houve, sim. Em 1991, o governo Collor tentou empurrar para os médicos a responsabilidade de uma crise na saúde, dizendo que eles eram despreparados e não tinham compromisso com a população.
Na época, isso fez com que a parte mais conservadora das entidades médicas tentasse jogar a culpa nas costas dos estudantes, dizendo que eram mal formados. E, aí, propuseram algo tão ruim quanto essa atual do exame de ordem.
Felizmente, houve uma forte, rápida e construtiva reação dos estudantes e da maioria dos professores de medicina. Daí, nasceu em 1991 a Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (Cinaem).
A Cinaem existiu por 11 anos, de 1991 2001. No auge teve não só o movimento estudantil, mas também várias entidades, como Associação Brasileira de Educação Médica, Conselho Federal de Medicina, Federação Nacional dos Médicos, Conselho Nacional de Secretarias de Saúde. Todos contra o exame de ordem é bom lembrar.
O projeto Cinaem foi a maior avaliação do ensino médico no Brasil. Envolveu de forma participativa estudantes e professores de mais de 90 escolas no Brasil.
Viomundo — As avaliações da Cinaem foram uma certa contraposição ao exame de ordem proposto então?
Hêider Pinto – Sim, com certeza. E a complexidade da avaliação mostrou que o exame de ordem não era a solução. Foram avaliações muito profundas, durante 10 anos nessas escolas.
Para você ver, Conceição, os conhecimentos produzidos pelas avaliações da Cinaem na década de 90 foram base para mudanças que aconteceram nos governos Lula e Dilma na educação médica. Por exemplo, as mudanças curriculares e a lei do mais médicos.
Viomundo – O que propunham?
Hêider Pinto – O óbvio: o melhor era melhorar as escolas.
Para os alunos, propunham uma avaliação de verdade, ao longo do curso, que considerava o aprendizado e aquisição de competências para ser médico. Avaliava também as escolas. Afinal, se os estudantes vão mal, algo precisa ser feito com a escola para que ela passe a formar bem.
Muito do que se descobriu nas avaliações da Cinaem virou lei depois com o Programa Mais Médicos, por exemplo, a avaliação do estudante que a Lei prevê que deve ser feita quando o estudante está no 2°, no 4° e no 6° anos.
E, agora, mesmo com toda a experiência da Cinaem e do Programa Mais Médicos, o governo Temer volta com essa proposta atrasada, ineficiente.
Viomundo – A proposta é do governo Temer também?!
Hêider Pinto – A proposta é de um senador, só que, na verdade, é um movimento casado com o governo Temer que suspendeu sem nenhum motivo aparente a avaliação prevista na lei dos mais médicos que eu citei agora há pouco.
Viomundo – Na prática, essa proposta resultará em quê?
Hêider Pinto – No seguinte consenso. Você, dono de escola, pode abrir quantas quiser, desde que eu, corporação médica, possa decidir quantos dos seus alunos poderão ser médicos, exercer a medicina.
Só que essa solução é péssima para a população e injusta para os estudantes.
Típico de um governo ilegítimo, que todos os dias abre sacos de maldades em nome de interesses particulares e privados. Acho que é mais uma daquelas tentativas de aprovar a todo o custo o que nunca seria em condições normais, de debate e democráticas.
Viomundo — Mas muita gente à primeira vista vai raciocinar: “Se o médico não passar no exame é porque não sabe”.
Hêider Pinto –Não há quem não ache importante avaliar o preparo e a qualidade de um profissional que cuida da saúde e vida das pessoas.
Tanto que há menos de 4 anos foi aprovada a lei 18.271, a lei do Mais Médicos, que cria a avaliação à qual me referi e que não é só no fim do curso, mas ao longo da formação do médico, em tempo, portanto de corrigir essa formação.
Além disso, não é só uma prova teórica como a proposta do exame de ordem. Há também uma prova prática, que avalia habilidades e atitudes importante para a humanização do atendimento.
Por isso, de cara chama a atenção o seguinte: por que propor outra lei e exame, já que há menos de quatro foi aprovada a Lei do Mais Médicos?
Por que querem substituir algo comprovadamente melhor por algo pior?
Tem muitos interesses por trás, que são facilmente percebidos quando a gente identifica a grande diferença entre o projeto em discussão no Senado e a lei vigente.
Viomundo – Quais as diferenças, além da periodicidade e do tipo de prova?
Hêider Pinto – Pela lei vigente, a responsabilidade de fazer a avaliação do estudante é do governo federal.
Ao avaliar o estudante, o governo tem a obrigação de agir firmemente junto à escola para que ela corrija e melhore a formação.
Como a primeira avaliação é no segundo ano de faculdade, o estudante pode ter ido mal no início do curso, mas se recuperar ao longo da formação.
Isso vale tanto para o estudante se corrigir quanto para a escola. A escola que forma mal os seus alunos deve ser cobrada e, caso não melhore, punida, com a suspensão do vestibular até o fechamento do curso.
Ou seja, na lei vigente a responsabilidade é do governo federal e ele age e responsabiliza a escola.
Na lei proposta por Temer, a responsabilidade é toda transferida para o estudante.
O aluno faz 6 anos de curso e se for reprovado no exame porque a escola o forma mal, seja pública (portanto, responsabilidade pública), seja privada (custa mais R$ 500 mil reais nos 6 anos de estudo), só ele paga o pato.
É uma inversão, um absurdo, mesmo na lógica econômica e simplória do direito do consumidor: o cara paga imposto ou mensalidade, não recebe o que lhe é prometido e ainda é punido.
Viomundo — Que interesses estão por trás?
Hêider Pinto –Eis aí a grande questão. Do ponto de vista técnico, a proposta não se justifica. ela é a expressão camuflada de um conluio de interesses indefensáveis à luz do dia.
De um lado, ao colocar a responsabilidade no estudante por uma avaliação no fim do curso e que não seria mais feita pelo Ministério da Educação, o governo deixaria de ser responsável assim como as escolas.
Então, as más escolas, que são “fábrica de diplomas,” poderão atuar livremente, lucrar à vontade. Elas poderão vender “gato por lebre” sem ser punidas.
De outro lado, há o interesse escancarado da parte mais conservadora e atrasada da corporação médica, que vê na baixíssima quantidade de médicos no Brasil um ponto positivo para a reserva de mercado e não como um problema que há anos prejudica a saúde da população.
Viomundo – São as mesmas entidades que foram contra o Mais Médicos?
Hêider Pinto – Isso mesmo. Só que essa postura das entidades médicas causa sofrimento a uma parcela da população e impede o adequado desenvolvimento do SUS
Segundo a proposta de Temer, seria esse setor que faria a prova: é ou não entregar à raposa a tarefa de tomar conta do galinheiro?
Poderiam decidir o grau de dificuldade da prova para passar só metade dos concluintes dos cursos de medicina ou para fazer como fazem nas provas de revalidação de diploma para estrangeiros nas quais, depois do golpe, não passam mais de 25%.
Ou seja, todo o esforço dos governos Lula e Dilma, do Mais Médicos para ampliar o número de vagas seriam destruídos em uma prova que impediria os estudantes de serem médicos depois de terem estudado e lutado, no mínimo, 6 anos para isso.
Viomundo – Na prática, seria um acordo entre as empresas de educação e o setor mais atrasado da categoria médica?
Hêider Pinto – Exatamente. Veja bem. As grandes empresas de educação querem abrir o máximo de vagas nas faculdades a baixo custo e, sem regulação, de baixa qualidade (porque é mais barata). Já o setor mais corporativista e atrasado da medicina quer manter o Brasil com poucos médicos para que o trabalho médico no país siga proporcionalmente inflacionado.
O único jeito de esses dois segmentos entrarem em acordo com é com o exame de ordem. Repito: eu, escola, abro as vagas que quero, mas você, setor corporativista, só deixa exercer a medicina a quantidade que não atrapalhe seus planos.
É um escândalo!
Viomundio – O que fazer?
Hêider Pinto – Os estudantes de medicina, familiares, usuários que sofrem, no dia a dia com os longos tempos de espera para atendimento e a falta de médicos, no público e no privado, têm que fazer campanha nas suas cidades contra os parlamentares a favor dessa lei. Esses parlamentares que são a favor desse projeto são anti-Mais Médicos, anti-SUS e propõem uma responsabilização criminosa dos estudantes.
Comentários
Flavio de Oliveira Lima
Ou melhor, continuar sem fazer.
Eu
O sanitarista Hêider Pinto tem todo o meu respeito, principalmente por sua participação na elaboração do programa Mais Médicos. Contudo, não tocou nos dois principais problemas da formação e avaliação dos jovens médicos no Brasil:
1) A formação universitária dos jovens médicos, já de algum tempo, aderiu ao modelo estadunidense (como quase tudo em nossa sociedade, de resto) de medicina baseada em “protocolos”, o mais dispendioso e de pior relação custo-benefício do planeta. Modelo este que engessa a atividade dos médicos em regras de atuação que nem sempre favorecem as melhores evidências de atendimento, ao contrário do que costumam apregoar. Tais regras, em detrimento da medicina preventiva, favorecem o modelo diagnóstico-terapêutico, extremamente favorável às empresas da área da saúde. Que, não raro, influenciam na elaboração e aplicação das mesmas. Enquanto nos EUA e Europa há diversas tentativas de alertar quanto a este viés (criação de sites, etc), no Brasil isto foi incorporado docilmente pelas Universidades públicas e particulares como caminho único. Formar mais e mais médicos sob uma avaliação de proficiência que funcione apenas como avalista deste modelo estará fadada a tornar crônica uma medicina cada vez mais afastada da humanização do atendimento, e cada vez mais adequada ao enriquecimento dos empresários do setor;
2) Além disto, este modelo de medicina diagnóstico-terapêutica responde em grande parte pelo desinteresse pela medicina de natureza preventiva. E estimula o jovem médico a buscar serviço e fixar-se nos grandes centros urbanos, onde disporá de mais recursos diagnósticos e correrá menor risco de ser alvo da judicialização exacerbada do exercício médico já em curso. Isto é o principal fator de desguarnecimento de profissionais nas localidades com população menor que 20.000 habitantes, as mais frequentes na demografia brasileira, e nas regiões periféricas dos grandes centros urbanos, com um desinteresse progressivo pelo Programa de Saúde da Família. Formar mais e mais médicos sem levá-los a buscar trabalho em regiões desassistidas contribuirá apenas para piorar o inchaço dos grandes centros, sem resolver o problema dos abandonados do sistema.
No mais, nada tenho a discordar quanto ao seu diagnóstico do novo programa de “avaliação”, cujo vício de origem já explicita suas intenções perversas. Deve ser denunciado mesmo. Mas, em minha humilde opinião, o maior entrave está no modelo, onde a falta de pensamento estratégico do Estado se associa ao interesse particular para distorcer o rumo das coisas e favorecer as fábricas de toneladas de autômatos diplomados e a indústria da saúde, e isto não se resolverá com diferentes “avaliações” mas com um novo paradigma da saúde pública brasileira. Coisa que o sanitarista conhece sobejamente, e deve fazer-se ouvir mais frequentemente.
Flavio de Oliveira Lima
Concordo com a crítica do modelo. Mas não fazer exame de proficiência é um erro grave.
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