Marcio Sotelo: Na ditadura do capital, o estado é uma casca que não garante direitos, nem democracia

Tempo de leitura: 5 min
Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Uma ditadura de novo tipo

Marcio Sotelo Felippe, na revista Cult

O regime da Constituição de 1988 acabou.

Vivemos uma ditadura dissimulada, de novo tipo, com a aparência espectral de formas jurídicas e políticas de um Estado de direito.

O fim desse regime não seguiu o padrão histórico. Nós nos habituamos a ver uma ruptura quando uma Constituição é revogada e surge outra, seja por padrões democráticos, como a convocação de uma constituinte, seja por atos de força, como a outorga de um texto constitucional.

Assim, por exemplo, o Estado Novo em 1937, a 5º República francesa em 1958, a Constituinte de 1945, a Carta de 1967 e sua alteração em 1969 e a própria Constituição de 1988.

Mas esta foi uma ruptura contra a qual ainda não temos defesa porque fomos surpreendidos: o fim de um regime político com a preservação formal do texto constitucional desprovido de eficácia.

A Constituição passou a ser aquilo que o núcleo de poder real diz que deve ser em cada momento, conforme sua conveniência política. Não existe.

Um estado de anomia constitucional mascarado, em que a vigência inócua da Constituição tem o papel de conferir a aparência de legitimidade de um Estado de Direito clássico.

O que vimos, portanto, não foram violações pontuais da Constituição que podem ocorrer em Estados de Direito.

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Foi um processo sistemático em que se feria a letra clara e o espírito incontroverso da norma constitucional, revogando-a na prática, com um sentido e uma direção definidos.

A anomia constitucional pode ser facilmente identificável em dois momentos cruciais, sem prejuízo de outros menos impactantes.

A deposição da presidenta constitucional por fundamento nenhum; a prisão do candidato indesejado por força de um processo judicial que beirou o surrealismo, por um juiz que confessadamente ignorava a Constituição alegando conveniências políticas, sob o olhar cúmplice ou omisso da corte constitucional.

Quando a conduta do juiz (hoje significativamente alçado à condição de superministro) foi submetida a apuração disciplinar, a decisão que o absolveu invocou Carl Schmitt, teórico alemão nazista cuja obra, já antes da ascensão de Hitler, sustentava a legitimidade de medidas de exceção em situações excepcionais.

Nada mais simbólico e expressivo para representar uma ruptura de regime.

A decisão do STF de manter Lula no cárcere foi tomada sob ameaça de intervenção militar (ainda que fosse altamente improvável, depois de tudo que o STF fez, a decisão de soltá-lo).

O comandante do exército Villas Bôas já se sente à vontade para confessar que mandou recado naquele momento, no seu célebre tweet: “Ali, nós conscientemente trabalhamos sabendo que estávamos no limite. Mas sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse. Porque outras pessoas, militares da reserva e civis identificados conosco, estavam se pronunciando de maneira mais enfática (…) temos a preocupação com a estabilidade, porque o agravamento da situação depois cai no nosso colo. É melhor prevenir do que remediar”.

O remate foi uma eleição presidencial marcada pela fraude das mensagens eleitorais, pela desinformação, por uma violência imaterial que atingiu em cheio a consciência da massa, deformando-a.

Uma eleição ilegítima, um presidente ilegítimo, identificado com a parcela mais tenebrosa das Forças Armadas, aquela saudosa da repressão porque queria continuar operando nos porões, torturando e matando e que nunca se conformou com o regime de 1988.

A anomia constitucional permitiu afastar do processo político-eleitoral forças que eram obstáculos a um projeto político, social e econômico regressivos.

Abriu caminho para uma ditadura do capital, sem o conteúdo incômodo da Constituição de 1988, que tem (tinha) as características de um Estado de bem-estar social ao modo dos regimes sociais-democratas europeus do pós-guerra: direitos e garantias sociais, bens públicos – saúde, educação, habitação, previdência.

Ainda que entre nós isto tudo não tivesse tido a eficácia desejada, eram normas explícitas na letra da Constituição ou implícitas em seu espírito e marcos para uma sociedade mais justa.

O objetivo é um processo de transferência de renda, de sobreacumulação de capital pela aniquilação de direitos sociais, de garantia de apropriação do orçamento público por meio da reforma da previdência e pelo congelamento dos investimentos sociais em benefício do rentismo.

Uma ditadura do capital, com a forma política do neoliberalismo, que preserva, apenas como espectros, as instituições políticas e jurídicas do clássico Estado de Direito, mas as esvazia de substância democrática e social.

Para isso é necessário também intensificar os aparatos repressivos do Estado, seja para controle da massa de despossuídos com o instrumento do punitivismo penal, seja, como se anuncia agora, para deter movimentos sociais criminalizando-os, ou pelo exílio e prisão de seus líderes.

A tensão entre capitalismo e democracia (em suas mais puras expressões, inconciliáveis) ganha um novo momento.

O Estado não paira sobre a sociedade como um ente que resolve contradições.

Ele é parte da contradição, da contradição fundamental que estrutura todas as relações sociais capitalistas.

É fácil ver a relação de causalidade entre Estado moderno burguês e relações capitalistas. Após o aparecimento destas surgem as formas estatais que as garantem.

O direito que iguala formalmente sujeitos desiguais em uma relação contratual em que um, o despossuído, nada pode fazer a não ser submeter-se às condições do outro.

Esse Estado não existe, pois, para resolver as contradições da sociedade civil, como quer certa tradição, particularmente após Hegel, como quer o senso comum jurídico. É parte necessária da estrutura de dominação

Mas ao longo dos dois últimos séculos, lutas sociais e a consciência democrática abriram espaço para o exercício da política, entendida como possibilidade de expressão e conquistas sociais da parcela oprimida da sociedade, para a proteção universal sob a forma de direitos e garantias fundamentais, para o exercício das liberdades públicas, da liberdade de opinião e de participação na esfera política da sociedade, para regras constitucionais que significam algum limite do exercício do poder, o que é, clássica e singelamente, o conceito que distingue o Estado de Direito constitucional e ditadura

Isto, não tendo operado uma transformação ontológica do Estado, significou a conciliação possível da dominação de classe capitalista com algo de bem-estar social, mesmo que sem prejuízo da miséria em que está ainda mergulhada grande parte da população mundial. Tais conquistas democráticas não são desprezíveis.

A diferença entre ter algum conteúdo democrático sob o capitalismo (a chamada democracia burguesa) e uma ditadura é que nesta o mal social é imenso e profundo: mais pessoas morrem, tem a alma destruída, são torturadas, perdem o mínimo de garantias, perdem o espaço da política e perdem direitos.

Fecha-se a possibilidade de conquistas e de aprofundamento das lutas sociais.

A ditadura do capitão está no quadro desta etapa do capitalismo, o momento em que desaparece a convivência possível entre modo de produção capitalista e formas democráticas que concediam algum bem-estar social.

Uma ditadura de novo tipo do capital, dissimulada, sob a forma política do neoliberalismo: aparentemente se tem uma Constituição, mas ela é forma vazia. E se a Constituição não existe tudo é permitido.

Com a indefectível presença dos militares que, se em 1964 exerciam diretamente o poder, hoje governam pelo Twitter.

*MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP

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Comentários

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Eduardo

Prof. Marcio Sotelo, Rica, sólida e inquestionavel análise da situação política e social brasileira. A Falta de publicidade e ampla divulgação de seus pensamentos é mais uma prova do momento triste pelo qual passa o Brasil! Um vazio de homens públicos verdadeiros que anseiam o bem estar de seus semelhantes compatriotas. Um vazio de instituiçōes justas e comprometidas com o povo! Parabens, , há quem o leia e se sente feliz com seus escritos!

Marise

A realidade é que, para garantir o cumprimento das regras constitucionais, é preciso haver estado democrático de direito ( para, com e pelo povo), e República( bens de todos), mas isso, há muito, já foi esvaziado, pq o estado de direito é arquitetado com, pelo e para a classe dos privilegiados que se favorecem dele e da República que essas mesmas classes transformam a cada dia em “res” privatizada e “res” terceirizada.

Zé Maria

Moro e o Estado policial
Por Jeferson Miola, no GGN

No livro “Estado de exceção: a forma jurídica do neoliberalismo” (https://t.co/i7jNZY57sy), Rafael Valim afirma que “a exceção, ao negar a lei, principal produto da soberania popular, toma de assalto a democracia.
A pretensão de um governo impessoal das leis cede lugar ao governo pessoal dos homens.
O povo é destronado em favor do soberano, o que explica a afirmação de Giorgio Agambem de que a exceção é o absolutismo da contemporaneidade”.

Valim sustenta que os estados de exceção irrompem do antagonismo entre o neoliberalismo e a ordem democrática. E conclui que, “em última análise, o estado de exceção é uma exigência do atual modelo de dominação neoliberal”, e “o soberano na contemporaneidade é o mercado”.

Para atender ao interesse do mercado e do establishment, “A fim de preservar o estado de coisas vigente, o Estado empreende uma guerra incessante contra um inimigo virtual, constantemente redefinido, do qual se retira, em alguns casos, a própria condição de pessoa, reduzindo-os a um outro genérico, total, irreal. Em síntese, o mercado define os inimigos e o Estado os combate”.

Na opinião de Valim, “o principal e mais perigoso agente da exceção no brasil é o poder judiciário”.
Se poderia dizer que Sérgio Moro é o principal agente da exceção, ao passo que Lula é o inimigo definido pelo mercado para que o Estado o combata [ou o assassine].

Os tribunais superiores e o CNJ fecharam os olhos para os arbítrios e ilegalidades cometidas por ele e outros agentes da Lava Jato que pretextam o combate à corrupção para perseguirem e aniquilarem inimigos.

A nomeação do Moro como ministro do Bolsonaro avaliza a narrativa de que a Lava Jato foi instrumentalizada para banir Lula da eleição presidencial e viabilizar a vitória do antipetismo.

Bolsonaro entregou a Moro um superministério com hiperpoderes e satelizado por órgãos que podem ser desvirtuados para funcionarem como polícia política.

Com Moro no ministério da justiça, o Estado de exceção tende a avançar na direção de um Estado policial, inclusive para garantir as condições ambientais e institucionais para a consecução do devastador projeto econômico que será imposto não sem enfrentar enorme resistência popular.

Em breve este discurso do “combate ao crime organizado e à corrupção” será substituído pela retórica de “combate ao inimigo interno” e aos “terroristas” que se opõem ao regime, ou seja, o conjunto da cidadania, em especial os movimentos sociais, intelectuais, ativistas e militantes progressistas e de esquerda.

A implantação do Estado policial e o revigoramento do aparelho repressor que subsiste desde a ditadura é uma perspectiva absolutamente realista destes tempos sombrios em que os militares atuam com assombrosa desenvoltura.

O endurecimento autoritário do regime é, aliás, um requerimento para que o establishment consiga impor a selvagem agenda anti-povo, anti-nação e anti-democracia dos Chicago Boys e dos cônsules dos EUA que pretendem fazer do Brasil uma terra arrasada e dominada por interesses estrangeiros.

lulipe

O choro é livre, lula não. Aceitem que dói menos!

Zé Maria

A Ditadura de Mamom no Fascismo de Mercado.

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