Entidades e parlamentares: Demarcação de terras indígenas no Ministério da Agricultura é genocídio

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Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Demarcação no Ministério da Agricultura é denunciada como retrocesso integracionista em audiência

Pedro Calvi, CDHM

Jornal do Brasil, 13 de julho de 1963: “Bandoleiros, assalariados por fazendeiros vizinhos, atacaram o acampamento dos índios Kanela. Foram dois ataques. O capitão Uirá pediu envio urgente de tropa federal porque os atacantes são apoiados por pessoas de prestígio. Não se se sabe que tenha tomada qualquer providência”

Jornal do Brasil, 12 de março de 1964 “Fazendeiros mandam memorando ao governo federal pedindo a retirada dos kanela porque a terra é muito boa e não pode ser estragada pelos índios” A etnia Kanela vivia, e ainda vive, na região do Rio Araguaia na parte que margeia o estado do Maranhão.

Essas notícias foram apresentadas pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), na audiência pública que reuniu três comissões da Câmara dos Deputados nesta quinta-feira (25).

O levantamento faz parte do Relatório Figueiredo descoberto pelo pesquisador Marcelo Zelig, que mostra como era a atuação do órgão indigenista na época em que era vinculado ao Ministério da Agricultura.

A história se repete, mas começa muito antes, ainda no período do Império.

“O genocídio indígena do tempo da monarquia continua. Passou pelo projeto integracionista criado em 1910 pelo então presidente Nilo Peçanha, com o nome de Serviço de Proteção ao Índio, que pretendia aculturar os índios sob o pretexto de integrar, aí veio a Funai em 1967 e hoje querem levar de volta os indígenas para o Ministério da Agricultura”, conta Antônio Bigonha, coordenador da 6ª Câmara da Procuradoria Geral da República.

O retorno se deve à Medida Provisória 870, do governo federal, que transfere para o MAPA a demarcação das terras indígenas e para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos a Funai e as políticas públicas para essa população.

Bigonha traz para o presente o que significa essa mudança que, para ele, vai também contra a Constituição de 1988.

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“O presidente da República tem legitimidade, mas tudo tem limites e eles estão na Constituição. Parece que vivemos numa época de desatinos. Estamos vivendo o triunfo do mau senso. De uma ditadura do politicamente correto seguiu-se a abertura de uma caixa de Pandora para que se fale todo tipo de atrocidades”, afirma o subprocurador.

Resistência

A audiência pública reuniu as Comissões de Direitos Humanos e Minorias, de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e de Integração Nacional, Desenvolvimento Regional e da Amazônia, e dezenas de representantes de várias etnias.

“O momento que vivemos em nosso país exige resistência e não há ninguém que consiga nos inspirar mais que os povos indígenas. Não há ninguém que resista mais que os povos indígenas. São eles que nos inspiram a resistir aos retrocessos contra a democracia, contra os direitos das minorias, na saúde e da demarcação das terras indígenas”, ressalta Helder Salomão (PT/ES), presidente da CDHM.

A resistência também é lembrada por Sônia Guajajara, coordenadora Executiva da Articulação Nacional dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Para ela, foram cinco séculos de resistência, mas 2019 chega em um contexto muito grave.

“Querem a volta do integracionismo, onde índios têm que ser iguais, todo mundo no mesmo padrão. Mas temos nosso modo de vida. Agora, um governo quer mudar a Constituição. Já somos cidadãos e queremos ser tratados assim, com direitos originais e sagrados”, diz Sônia.

A líder indígena pede a mobilização para impedir que o governo volte com “a velha matriz colonial, um período sangrento”.

Joênia Wapichana (Rede/RR), primeira deputada federal indígena e que faz parte do conjunto de deputados que pediu a realização do encontro, também contesta a medida provisória.

“Estamos aqui para reforçar as reivindicações dos povos indígenas contra o desmonte da estrutura da Funai. Essa medida provisória é uma afronta aos diretos indígenas, desmantelou a Funai. Sempre ponderamos que essa MP era uma estratégia para retirar o direito às demarcações terras. É um absurdo que prospere, além de ser inconstitucional”, protesta Joênia.

Expertise

A falta de competência do Ministério da Agricultura, para a demarcação de terras, e do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para cuidar da Funai, é questionada pelos indigenistas.

São situações que, segundo esses profissionais, exige expertise sobre os detalhes de como os povos funcionam.

“O Mapa é ligado ao agronegócio e para nós é desvio de finalidade ele tratar de questões indígenas. Existem particularidades na terra indígena, são posses coletivas e é preciso uma equipe especialista para fazer esse tipo de delimitação”, explica Andrea Prado, presidente da INA – Indigenistas Associados, um grupo formado por servidores da Funai.

Andrea afirma ainda que a mudança vai aumentar a burocracia e gerar insegurança jurídica.

Diálogo

David Calazans, da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, afirma que a questão da demarcação é antiga e que está “estourando agora”.

Ele também fez um apelo “ao diálogo democrático que respeite a alternância de poder com diferentes pontos de vista”.

João Felipe Scalia, Coordenador-Geral de Promoção ao Etnodesenvolvimento da Funai, apresentou a definição de terras indígenas na Constituição de 1988.

Ressaltou que os povos indígenas têm autonomia e que o governo tem o dever de ajudar a preservar suas culturas. Ele destacou ainda a participação de algumas etnias nos Programas de Aquisição de Alimentos e no de Alimentação Escolar, com a produção de suas lavouras.

João Carlos de Jesus Corrêa, presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), relatou que ainda existem muitas dúvidas sobre a aplicação da medida provisória e questionou “a manipulação das questões indígenas como palanque”.

Considerou a integração dos povos responsabilidade “gradual” deles mesmos e que a definição de desenvolvimento sustentável também tem que ser definida pelos indígenas.

 

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