Dr. Rosinha: Silêncio dos conselhos de Medicina só contribui para agravar a situação e a negação do SUS
Tempo de leitura: 4 minDe indigente a não cidadão
DR. ROSINHA, especial para o Viomundo
Corria a metade da década de 1960 quando em mim despertou o sonho de ser médico. Sonho, e como todo sonho que se sonha acordado, tinha grande possibilidade de não ser realizado.
No meu caso, era quase impossível realizá-lo: filho de trabalhador rural, morava e trabalhava na e com terra, ou seja, era, como meu pai, trabalhador rural. Meu pai, junto com seus irmãos e meu avô, era dono de pouca terra e, para cultivá-la, era em família: a família toda (homens, mulheres e crianças) trabalhava na agricultura.
Na agricultura familiar, se cultiva e se cria tudo que é possível, e busca-se cultivar o impossível, o sonho. No nosso caso, cultivávamos café, arroz, milho, feijão, batatas, hortaliças, vegetais, frutas e animais (galinhas, porcos, gado e animais de tração).
Na época, com pouca tecnologia e mesmo que ela existisse, sem capacidade econômica para ter acesso à compra de, no mínimo, um trator, tudo era feito na enxada, enxadão, machado, foice e facão. Portanto, um trabalho penoso.Por ser um trabalho difícil e penoso, meu pai sempre dizia que não queria isto a seus filhos. Portador de um hercúleo esforço, fez de tudo para que estudássemos. Portanto, além de trabalhar na roça, ele nos forçava a estudar e, mesmo morando no sítio, frequentei a escola primária, fiz o ginásio e, na época, o científico, tudo graças às exigências e aos esforços do meu pai e da minha mãe. Em um período estudava e, no outro, na roça trabalhava.
Terminado o ginásio, comecei a sonhar ser médico. Morando na zona rural do interior do município de Rolândia, um dia parti para Curitiba para terminar o terceiro científico e tentar o vestibular para cursar medicina. Depois de dois anos em Curitiba, estudando e trabalhando (fui encadernador e impressor), consegui passar na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Católica do Paraná, atualmente, PUC.
Na época, mais que hoje, os filhos de pobres que só estudaram em escolas públicas tinham poucas possibilidades de entrarem em universidades públicas. Na faculdade, continuei a trabalhar, agora de garçom.Enquanto estudava e trabalhava, fui fazendo a minha formação profissional e política. Antes e durante a década de 1970, período em que estudei medicina, os trabalhadores só tinham acesso (precário) ao serviço de saúde se tivessem carteira de trabalho assinada, caso contrário, ou pagavam pela consulta e internamento ou eram atendidos como indigentes. Sim, indigentes.
Nos ambulatórios, enfermarias e corredores dos hospitais, homens e mulheres que não tinham carteira assinada ou que não conseguiam pagar eram a maioria. E, na maioria das vezes, chamados de indigentes. Quando internados nas enfermarias, na cabeceira do leito, junto ao nome do cidadão ou cidadã, existia a sigla “N/C” (não contribuinte).
Na época, também precariamente existia o FunRural, para o atendimento dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, mas toda vez que se ia usar, tamanha eram as exigências, que acabava-se sendo atendido como indigente. Portanto, caso eu ou minha família viéssemos a necessitar de um atendimento médico, ou vendíamos parte ou tudo do pouco que tínhamos, ou seríamos tratados como indigentes, ou para aliviar o adjetivo, como “N/C”.
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Neste ambiente, fiz a minha formação médica e política, pois não há como não se politizar com tamanha injustiça. Homens e mulheres trabalham e trabalharam a vida inteira, lutam e lutaram a vida inteira para melhorar suas vidas e estudar, sem que seus filhos tivessem o direito sequer a um atendimento médico digno, isso me indignava e indignava muita gente.
Foi por essa razão histórica e nessa conjuntura que muitos profissionais da área de saúde, inclusive muitos médicos e médicas, começamos a lutar por um sistema público de saúde, e com qualidade. Foi assim que conseguimos conquistar que na Constituição constasse que saúde é um dever do Estado e direito do cidadão. Foi assim que conquistamos o Sistema Único de Saúde (SUS), agora, tão aviltado por médicos e médicas sob o comando das entidades médicas, principalmente dos conselhos regionais e do Conselho Federal de Medicina.
Estas entidades, ao se posicionarem contra o programa “Mais Médicos”, além de se opor ao SUS, contribuíram para a construção de uma relação, no mínimo, agressiva, entre muitos médicos e médicas em relação aos cidadãos e cidadãs.
Poderia aqui listar uma centena de casos de desrespeito dentro de serviços de saúde, simplesmente porque o paciente ou a paciente demonstrou qualquer simpatia pelo PT ou pela presidenta Dilma. E isto tem acontecido, principalmente, desde a implantação do “Mais Médicos”.
Não farei uma lista de exemplos de desrespeito que circulam na internet, mas dois exemplos são significativos entre os milhares de casos, um mais antigo e outro, recente.
O antigo é um relato de Priscila Gontijo, publicado no Brasil 247. É um depoimento que mostra o quanto um médico “apolítico”, de viés fascista, atende uma paciente que pensa diferente que ele. Submete a paciente a um torturante interrogatório fascista.
O segundo, tampouco preciso transcrevê-lo, foi publicado aqui no Viomundo: “Médica faz política contra Dilma à beira do leito de paciente infartado, alcoólatra e pobre, internado em UPA”.
Tanto o primeiro como este último caso ocorrem todos os dias, nos serviços de saúde e a resposta dos conselhos regionais e do Conselho Federal de Medicina é um rotundo silêncio.
O silêncio só contribui para agravar a situação. O silêncio contribui para negação do SUS. E negar o SUS é negar a cidadania. Sem o SUS, seria a volta do meu tempo de estudante, do atendimento ao indigente ou, se quiser, do “N/C”, com outro conceito: não cidadão.
Dr. Rosinha, médico pediatra e servidor público, ex-deputado federal (PT-PR).
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Comentários
Marcos Pinto Basto
DR.ROSINHA! Grande cidadão! Homem valente! Suas palavras são um estímulo para continuarmos apelando pelo bem estar social de todos! Um médico de verdade!
Julio Silveira
O Dr. Rosinha deve primeiro se preocupar com os rumos que querem dar ao SUS, se vindo do PMDB ou de seu partido pouco importa, importa é que os indicativos que são dados pelos nomes que surgem para administrar a Saude no país são preocupantes. E não vai adiantar essa atitude distante, monástica que enxerga em sua meditação as soluções para os problemas do mundo. As ferramentas estão nas mãos do grupo que o sr. pertence, se não mais, rebele-se. Estou decsaco cheio de enganadores que pedem para estar em posição de resolver e depois atribuem a conjuntura a propria incompetencia. Chega de discurseiros quero trabalhadores indignados no poder.
Afonso Guedes
Excelente artigo.
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