Diogo Coutinho, Octávio Ferraz e Conrado Hubner: Somente a fila única para vacina passa no teste da decência
Tempo de leitura: 4 min
Da Redação
No início da manhã desta terça-feira. 26-01, Daniel A. Dourado postou no twitter:
1. Hoje há escassez de vacinas no planeta.
2. Se o setor privado comprar, serão menos vacinas disponíveis.
3. Mais vacinas não ajuda na estratégia se forem usadas em pessoas de menor risco antes dos prioritários.
4. Única forma de ajudar é disponibilizar na fila única pelo SUS.
Daniel é médico e advogado sanitarista, professor e pesquisador de Direito e Política de Saúde. Atualmente, está na Universidade de Paris.
Na sequência, em resposta ao seu próprio tuíte, @dadourado postou:
Há 2 semanas, já era possível saber que esse problema chegaria ao ponto atual.
Diogo Coutinho,@octavio_ferraz e @conradohubner analisaram muito bem aqui nesse artigo.
Apoie o VIOMUNDO
Diogo Rosenthal Coutinho é professor associado do Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da USP.
Octávio Luiz Motta Ferraz é professor do King’s College London e co-diretor do Transnational Law Institute.
Conrado Hubner é pesquisador e professor de Direito da USP.
O texto referido por Daniel Dourado é este: Fila única para a vacina, publicado em 12 de janeiro, na Folha de S. Paulo, na seção Tendências/Debates, em 12 de janeiro.
Mário Lobato foi quem nos sugeriu a publicação do artigo.
Mário é médico aposentado e ex-servidor do Ministério da Saúde.
Ele aguarda pacientemente a sua vez na fila do SUS para ser vacinado.
Abaixo, a íntegra
FILA ÚNICA PARA A VACINA
Por Diogo R. Coutinho, Octávio Luiz Motta Ferraz e Conrado Hubner, na Folha
Os argumentos a favor da vacinação privada no Brasil podem soar bastante plausíveis à primeira vista.
Diante de um governo federal omisso e incompetente, parece irracional e até mesmo injusto que se proíba a oferta de vacinas pelo setor privado.
Quem pode pagar aliviaria o SUS e aumentaria o número de vacinados na população. Um cenário em que aparentemente ninguém perderia. Mas a questão não é tão simples, por diversas razões que se entrelaçam.
Em primeiro lugar, porque vacinas não são bens médicos de consumo e benefício individual como, por exemplo, uma operação de cataratas ou a colocação de uma prótese.
Vacinas só funcionam com a imunização coletiva, o que demanda inoculação de um número enorme de pessoas (entre 60% e 95% da população, a depender da eficácia da vacina e de outros fatores, segundo a Organização Mundial da Saúde).
Ninguém está imune até que a comunidade esteja imune.
Nem mesmo os afortunados que conseguem garantir sua dose antes no sistema privado —na melhor das hipóteses, algo em torno de 25% a 30% de brasileiros com plano de saúde. Se o vírus não é eliminado, pode infectar até mesmo os já vacinados (lembre-se de que nenhuma vacina tem 100% de eficácia) e sofrer mutações que o tornem ainda mais pernicioso, como já está ocorrendo.
Mas a vacinação de um quarto da população, se tanto, já não seria uma enorme ajuda? Não diminuiria o ônus do Estado?
Não necessariamente. Num contexto de escassez de doses de vacina como o atual, a vacinação privada inevitavelmente competiria com a pública. Aumentaria, não diminuiria, o ônus do Estado.
Mesmo que empresas privadas comprem apenas lotes de laboratórios que não estejam em negociação com o governo no presente momento, os riscos não desaparecem.
O sistema público precisará ampliar seu rol de fornecedores para atender a toda a população.
Se estes já estiverem presos a contratos com clínicas privadas, as opções diminuem e os custos aumentam. A hipótese de o Estado não estar interessado na vacina A ou B, liberando-as para o mercado, vira profecia autorrealizável.
A esses problemas de competição predatória entre sistema público e privado no meio de uma emergência sanitária somam-se outros, de natureza ética e estratégica.
A retórica de que a vacinação privada não implicaria “furar a fila” —mas apenas criar uma “outra fila”, ou que se opor à vacinação privada não passa de “purismo ideológico”— só faz sentido numa sociedade em que noções de igualdade e solidariedade abandonaram o vocabulário moral.
Quando se trata de bens coletivos como vacina, transplante de órgãos ou segurança pública, somente a fila única passa no teste da decência.
Esse consenso alcança até mesmo países liberais sem sistemas universais de saúde, como os EUA.
A suposta garantia de que os mesmos critérios de prioridade da política pública seriam seguidos pelas clínicas privadas pode seduzir, mas simplesmente confunde.
O poder aquisitivo segue sendo o critério de acesso. Além disso, facultar à elite econômica o direito de pular fora (“opt-out”) do sistema no meio de uma pandemia não é apenas imoral, mas também estrategicamente perigoso.
Anestesia sua imensa capacidade de pressão sobre o governo e pode gerar a falsa sensação de proteção nesses grupos, adicionando ainda mais combustível à pandemia.
Teoricamente não seria impossível imaginar um papel subsidiário, justo e eficiente para clínicas privadas num programa de imunização.
Se o sistema público estivesse abastecido e avançado em um plano de vacinação bem desenhado, e tivesse capacidade de formular e implementar uma regulação robusta —um cronograma para o início da comercialização privada, parâmetros para eventual requisição administrativa pelo SUS e regras de prevenção de abusos, entre outras medidas—, a vacinação privada poderia eventualmente contribuir para o esforço público. Não é o caso.
Por mais paradoxal que pareça, a omissão e incompetência do governo tornam a participação de clínicas privadas neste momento da crise sanitária menos, e não mais, justificada.
A melhor opção ainda é mobilizar com urgência toda a estrutura e experiência acumuladas do sistema público num programa maciço de vacinação, acessível a todos em condições de igualdade.
Muitos estados e municípios já estão nesse caminho, e o sistema federal, a contragosto, está sendo empurrado na mesma direção.
Não é hora de arriscar esse esforço com a autorização —apressada, sem salvaguardas regulatórias, eticamente reprovável e de eficácia dúbia— da vacinação privada.
Comentários
Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!
Deixe seu comentário