Cloroquina e hidroxicloroquina: Entidades de saúde coletiva e bioética pedem ao CFM revisão imediata de liberação para covid-19
Tempo de leitura: 7 minpor Conceição Lemes
Em 23 de abril de 2020, o Conselho Federal de Medicina (CFM) liberou o uso da hidroxicloroquina e cloroquina em três situações, inclusive no início de sintomas sugestivos de covid-19 e em ambiente domiciliar.
O anúncio foi feito pelo próprio presidente do Conselho, Mauro Ribeiro, após reunir-se com presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), e o seu ministro da Saúde, Nelson Teich.
Na ocasião, Ribeiro entregou às autoridades um parecer do conselho sobre a administração da substância em pessoas com Covid-19.
No mesmo dia nós publicamos aqui uma entrevista com o professor Heleno Corrêa Filho, pesquisador colaborador da Universidade de Brasília (Unb).
Em entrevista exclusiva ao Blog da Saúde, o professor Heleno criticou:
“Ao decidir permitir ‘embora sem autorizar’ o emprego de terapêutica que não tem suporte científico publicado, o Conselho Federal de Medicina extrapolou suas competências e atribuições”.
Esta repórter questionou então o professor Heleno:
— O doutor Mauro Ribeiro está inaugurando a terceirização da responsabilidade, tirando das costas do médico e jogando nas do paciente? Se o paciente morrer devido aos efeitos colaterais a responsabilidade será dele?
Professor Heleno respondeu:
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É uma ação irresponsável jogar sobre o paciente em estado de angústia, sofrimento e até agonia a decisão, sem conhecimentos, sobre a medicação que é de responsabilidade médica.
O paciente não está em condições de analisar mesmo precariamente informado.
É diferente de informar para tomada de decisão com conhecimento prévio de efeitos adversos.
No dia 28 de abril, os presidentes Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes) e a Rede Unida enviaram ofício ao CFM contra a decisão nº 4/2020, de 23 de abril de 2020, que liberou o uso da cloroquina e hidroxicloroquina para tratamento da covid-19.
O documento (na íntegra, abaixo) destinado ao presidente do CFM, Mauro Ribeiro, é assinado por Dirceu Greco, Lúcia Couto e Túlio Franco.
No ofício, eles destacam, entre outros pontos, que:
— Está cientificamente comprovado que até o momento não há qualquer medicamento que tenha se mostrado eficaz em ensaio clínico controlado, aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa
— Especificamente em relação à cloroquina/hidroxicloroquina, estudos, geralmente pequenos, não controlados, impossibilitam avaliar sua eficácia, mas têm demonstrado efeitos colaterais significativos e, muitas vezes, graves e mortais.
Sobre o parecer, eles apontam as várias impropriedades do parecer do CFM, cujo relatório é o próprio presidente Mauro Ribeiro.
Uma delas:
O Parecer explicita que nos casos com sintomas leves, a utilização será “a critério do médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente, sendo ele obrigado a relatar ao doente que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID- 19, explicando os efeitos colaterais possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso”.
Mesmo com o reconhecimento da inexistência de estudo que comprove o benefício, este parecer transfere para o paciente, que está extremamente vulnerável e em relação completamente desigual com o médico, a responsabilidade pela decisão e, consequentemente, dos eventuais efeitos adversos.
E perguntam: Isto é eticamente aceitável?
Outra impropriedade apontada diz respeito à conclusão do CFM.
O parecer de Mauro Ribeiro diz taxativamente:
“Diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado da pandemia, não cometerá infração ética o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina, nos termos acima expostos, em pacientes portadores da COVID-19”.
Os presidentes da Sociedade Brasileira de Bioética, Cebes e Rede Unida contestam:
Como assim?
Isto quer dizer que mesmo utilizando medicamento sem indicação cientificamente baseada, especialmente para aqueles “com sintomas leves”, o médico não cometerá infração ética?
Não está nas normas do Conselho, que decisão como essa só ocorrerá após o devido processo administrativo?
Os três presidentes concluem o documento, propõem que o parecer seja imediatamente revisto e modificado.
Justificam:
É inócuo no caso do uso off-label compassivo, mas pode ser muito prejudicial nas fases iniciais da infecção, sem o adequado acompanhamento.
Como eu disse no início, o ofício foi encaminhado ao CFM no dia 28 de abril.
Porém, até hoje, 30 de abril, o Conselho não respondeu, sequer confirmou o recebimento.
Diante disso, os doutores Dirceu Greco, Lúcia Couto e Túlio Franco, respectivamente, presidentes da SBB, Cebes e Rede Unida decidiram tornar público o documento.
Abaixo, a íntegra do ofício da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) e da Rede Unida ao CFM
Ao Dr. Mauro Luiz de Britto Ribeiro
Presidente do Conselho Federal de Medicina
Assunto: posição contrária ao Parecer do Conselho Federal de Medicina nº 4/2020, de 23 de abril de 2020, relacionado ao “uso da cloroquina e hidroxicloroquina, em condições excepcionais, para o tratamento da COVID-19.”
Senhor Presidente,
A Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), juntamente com a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e a Rede Unida, têm participado intensamente de diversas ações relacionadas aos aspectos bioéticos, sociais, de saúde da epidemia da COVID-19.
Essas entidades, com assento no Conselho Nacional de Saúde (CNS), têm se pautado na defesa dos direitos das pessoas em risco ou infectadas pelo SARS-CoV-2, na solidariedade com todos os profissionais que estão na linha de frente de confrontamento desta pandemia, no apoio incondicional ao Sistema Único de Saúde (SUS) e no papel crucial desse sistema no enfrentamento da pandemia.
Estamos também atentos frente aos dilemas éticos em situações de insuficiência de recursos e na discussão e avaliação dos medicamentos, visando o tratamento de todos que deles necessitem.
Consideramos fundamental a realização de pesquisas cientificamente controladas para estabelecer, de modo adequado, o necessário tratamento.
Em relação às possibilidades de tratamento farmacológico de pacientes com a infecção pelo SARS-CoV-2, assunto específico deste Ofício, ressaltamos:
– Está cientificamente comprovado que até o momento não há qualquer medicamento que tenha se mostrado eficaz em ensaio clínico controlado, aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa;
– Vários medicamentos, incluindo a hidroxicloroquina, a cloroquina, associadas ou não à azitromicina, o interferon, a associação lopinavir/ritonavir e o remdesivir, estão atualmente sendo avaliados em ensaio multicêntrico internacional (Estudo Solidarity, coordenado pela Organização Mundial da Saúde).
O Brasil participa deste estudo, corretamente planejado e eticamente adequado, mas que levará algum tempo para ter resposta conclusiva;
– Especificamente em relação à cloroquina/hidroxicloroquina, estudos, geralmente pequenos, não controlados, impossibilitam avaliar sua eficácia, mas têm demonstrado efeitos colaterais significativos e, muitas vezes, graves e mortais.
Em referência ao Parecer CFM 04/20:
– O Parecer faz diversas considerações sobre o “estado da arte” do conhecimento sobre estes dois medicamentos e conclui:
“Com base nos conhecimentos existentes relativos ao tratamento de pacientes portadores de COVID -19 com cloroquina e hidroxicloroquina, o Conselho Federal de Medicina propõe “três situações nas quais estes medicamentos podem ser considerados/utilizados”. E, apesar de discorrer no preâmbulo sobre a inexistência de comprovação de sua eficácia para enfrentar a atual pandemia, propõe seu uso em todas as fases da infecção, desde a fase inicial (“sintomas leves”), intermediária (“pacientes com sintomas importantes-sic”), nos casos graves e no seu “uso compassivo em pacientes críticos recebendo cuidados intensivos”.
Há várias impropriedades:
1. Apesar de ter iniciado, em seus considerandos, com razoável citação da literatura atual sobre estes medicamentos, a qual mostra inequivocamente a inexistência de evidência científica robusta para recomendar o seu uso, este Parecer contraditoriamente indica a possibilidade de utilizá-los em todas as fases da infecção.
E sobre eventos adversos, cita nota da Sociedade Brasileira de Reumatologia e não considera relatos na literatura, nacional e internacional, de efeitos graves, e até mortais, secundários ao uso da cloroquina quando utilizada para o tratamento da COVID-19.
Neste sentido, a Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos, recomendou cuidados quanto ao uso da cloroquina e hidroxicloroquina fora do ambiente hospitalar para o tratamento do novo coronavírus.
Entre estes inclui: “A FDA está ciente dos relatórios sobre problemas graves de ritmo cardíaco de pacientes com COVID-19 que se trataram com hidroxicloroquina ou cloroquina, combinado também com azitromicina e outros medicamentos”.
2. Evidentemente o risco de eventos graves, inclusive sobre o coração, que podem ser agudos e até mortais, poderá ter consequências ainda mais sérias em pacientes com sintomas leves, porque além disso, estarão em tratamento ambulatorial, sem o devido monitoramento.
O Parecer explicita que nos casos com sintomas leves, a utilização será “a critério do médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente, sendo ele obrigado a relatar ao doente que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID- 19, explicando os efeitos colaterais possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso”.
Mesmo com o reconhecimento da inexistência de estudo que comprove o benefício, exatamente num momento de dúvida sobre a possível evolução da sintomatologia, este parecer transfere para o paciente, que está extremamente vulnerável e em relação completamente desigual com o médico, a responsabilidade pela decisão e, consequentemente, dos eventuais efeitos adversos. Isto é eticamente aceitável?
3. E no último item da conclusão: “Diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado da pandemia, não cometerá infração ética o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina, nos termos acima expostos, em pacientes portadores da COVID-19”.
Como assim? Isto quer dizer que mesmo utilizando medicamento sem indicação cientificamente baseada, especialmente para aqueles “com sintomas leves”, o médico não cometerá infração ética?
Não está nas normas do Conselho, que decisão como essa só ocorrerá após o devido processo administrativo?
Em conclusão, propomos que este parecer seja imediatamente revisto e modificado, pois é inócuo no caso do uso off-label compassivo, mas pode ser muito prejudicial nas fases iniciais da infecção, sem o adequado acompanhamento.
Cumpre enfatizar que este Parecer, apesar de direcionado ao médico, terá repercussão significativa para a sociedade e especialmente para os pacientes, extremamente vulneráveis nesta fase da epidemia e que correrão risco acrescido de reações adversas graves.
Em nossa avaliação, o CFM deveria reforçar o que se sabe hoje: manter o autoisolamento, associado aos cuidados preventivos de distanciamento social e higienização de mãos, e à informação pública correta e exclusivamente aquela baseada em evidência científica e eticamente adequada.
Além disto, seria de grande importância que o Conselho Federal de Medicina reforçasse o papel fundamental do SUS e a urgente necessidade de seu maior financiamento, visando mitigar os riscos de falta de cuidados de saúde, desde o diagnóstico até, e agora principalmente, de acesso a cuidados intensivos.
Atenciosamente,
Dirceu Bartolomeu Greco – Sociedade Brasileira de Bioética (SBB)
Lucia Souto – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES)
Túlio Franco – Rede Unida
28 de abril de 2020
Comentários
Zé Maria
E o Ministério Público Federal? Nada?
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