Ana Costa: Aborto não é questão exclusiva da mulher, mas assunto para as famílias

Tempo de leitura: 5 min

por Ana Maria Costa, no Blog do Cebes

O dia 28 de setembro é o dia de luta pela descriminalização do aborto na América Latina. Isto, porque o aborto é grave problema de saúde pública nos países de nosso continente e a magnitude de sua ocorrência no Brasil e as complicações à saúde por causa de sua clandestinidade ocasionam mortes que poderiam ser evitadas por atenção adequada e oportuna.

Tal atenção somente será possibilitada com a ampla legalidade do aborto, hoje permitido apenas quando a gravidez resulta de estupro; constitui ameaça à vida da mulher; ou nos casos de anencefalia. Como a grande maioria dos abortos são realizados de forma clandestina, precária, arriscada  e insegura, milhares de hospitalizações desnecessárias são feitas diariamente, gerando um grande problema para a saúde pública no país.

Para melhor dimensionamento do problema, um inquérito nacional realizado em 2010 (1) mostrou que 22% das mulheres de 35 a 39 anos que vivem em zonas urbanas  declararam já ter provocado um aborto. Os que desconhecem o assunto tendem a retratar as mulheres que interrompem a gravidez como pessoas desviantes e irresponsáveis, extremamente jovens, sem valores, e que não estariam em união. Não é isso o que acontece.

Esta pesquisa revelou que os abortos são praticados por mulheres que, em sua maioria casadas e mães de família, não desejam aumentar a prole em função de gravidezes indesejadas. Tal situação deveria mudar muito a maneira como se encara o fenômeno e, desta forma, mudar o tom do debate sobre aborto no Brasil, já que  é um evento comum na vida de mulheres comuns, ou seja, mulheres das relações sociais de qualquer pessoa. Em nossa sociedade, o assunto vem sendo polarizado para reforçar uma moralidade de dogmas religiosos relacionados ao aborto com julgamento preconceituoso às mulheres que o praticam.

Nos últimos anos, apesar das enormes dificuldades na realização de pesquisas sobre aborto, especialmente por tratar se de um evento clandestino, muitos estudiosos têm contribuído com esclarecimentos importantes que vêm desconstruindo velhos argumentos e crenças sobre essa questão no Brasil.

Hoje está comprovado que a decisão por um abortamento na maioria dos casos é compartilhada, e não individual como se pensava. Os estudos mostram inclusive que, quando as mulheres são jovens e não têm autonomia ou dinheiro, a família – ou seja, os pais e as mães – intervém e providencia o recurso necessário para a realização do procedimento. Isso acontece geralmente nas classes médias e altas.

Assim, a questão do aborto que parecia, a princípio, um assunto exclusivo de mulher, é de fato um assunto para as famílias quando se trata de mulheres solteiras ou casadas, envolvendo pais, mães ou maridos.

Esta situação reforça o grau de hipocrisia com o qual o aborto é tratado no Brasil pois, seja na condição de amigo, amiga, mãe, pai, tio, companheiro, namorado ou marido, a grande maioria dos brasileiros já viveu e compartilhou alguma situação envolvendo a decisão ou o apoio a uma mulher que realizou o aborto. O que fica patente é a existência de uma dupla moral, a que condena o aborto e a outra, tolerante, quando o assunto está no âmbito privado.

Mesmo com a proibição pela Anvisa da venda do misoprostol (Cytotec), um poderoso abortifaciente, os estudos mostram que metade das mulheres que abortam utiliza medicamentos. A aquisição destas drogas também ocorre clandestinamente e as mulheres pagam caro pelo produto e não tem qualquer garantia quanto à sua qualidade.

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De toda forma, estas mulheres tem menor numero de complicações em relação àquelas outras que buscaram solucionar a interrupção da gravidez com curiosas ou métodos mais perigosos.

O certo é que o acesso aos medicamentos é difícil, mas existe um conhecimento adquirido e transmitido entre as mulheres sobre o modo de usar e as doses destes medicamentos e até mesmo sobre o momento e situação em que devem buscar ajuda em um hospital. Isso tem reduzido muito as mortes destas mulheres.

Se mudou o panorama da sobrevivência de mulheres que praticam abortamento, o mesmo não ocorreu na qualidade da atenção médica hospitalar destinada a elas. Os profissionais de saúde geralmente as tratam com discriminação, maus-tratos e até mesmo com omissão de socorro oportuno, caracterizando, de fato, condição de violência institucional (2).

As frequentes denúncias do movimento de mulheres sobre problemas enfrentados por elas, que são usuárias de serviços de saúde, incluem a dificuldade de acesso à vaga até situações de maltrato e discriminação sofridas durante a internação. Muitos estudos tem evidenciado esta modalidade de violência em serviços públicos como praticada por profissionais de saúde, principalmente enfermeiras.

Nesse sentido, a legalização do aborto é uma pauta para a democracia social, pois, além dele ser um direito sexual e reprodutivo universal, sua ilegalidade recai de forma injusta e desumana sobre as mulheres mais pobres, que, com menos recursos para a realização da interrupção de sua gravidez indesejada, acabam se submetendo a maior risco.

Essas mulheres são cotidianamente vítimas de atentados aos direitos humanos por omissão do estado em socorrê-las quando realizam o procedimento, chegando aos hospitais em busca da sobrevivência, com sangramentos e hemorragias graves – sendo em seguida maltratadas, denunciadas, discriminadas.

Elas sujeitam sua saúde ao risco por causa de uma legislação atrasada e desajustada em relação às necessidades da sociedade e à vida real das mulheres e das famílias, já não condizente com a atual situação do país que merece e precisa de um estado laico, livre das intervenções de grupos e dogmas religiosos nos assuntos coletivos.

O Brasil vem assistindo nas ultimas décadas a um crescimento das forças conservadoras no Congresso Nacional e esta grande aliança envolve diversos partidos de todas as matizes politicas. Esta frente contra a legalização do aborto tem levado o governo à condição de refém, negociando votos nas matérias de interesse governamental até mesmo contra possíveis avanços do poder executivo.

Estabeleceu-se uma verdadeira vigilância destes parlamentares às ações do Ministério da Saúde, envolvendo sua reponsabilidade institucional como órgão máximo da saúde pública nacional. E é inadmissível que o Ministério seja imobilizado no cumprimento de seu papel de financiar pesquisas , normatizar e qualificar serviços para melhor conhecer e atender as mulheres brasileiras quando abortam.

Enquanto o poder Legislativo permitir que esse debate ocorra sob a égide da moralidade, e não assumir a sua gravidade como problema de saúde publica, o Congresso estará em falta com as mulheres brasileiras. Enquanto o poder Executivo baixar a cabeça como refém destas forças conservadoras que retardam a ampliação dos direitos reprodutivos e a legalização do aborto, as mulheres brasileiras estarão traídas e com seus direitos humanos mutilados.

Por fim, se o Brasil quer se postar entre os países mais avançados do planeta, urge que sejam tomadas atitudes concretas para o aperfeiçoamento da democracia e a primeira tarefa para nós, mulheres, para nós que defendemos a saúde publica, é tirar o aborto de baixo do tapete. Vamos debater o tema amplamente e vamos encarar esta como uma questão de saúde pública fundamental para a nossa Democracia.

Referências

(1) Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), Universidade de Brasília (UnB).

(2) Estudo feito pela pesquisadora Estela Aquino, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), com 2.562 mulheres em hospitais de três capitais brasileiras – sete de Salvador (BA), oito de Recife (PE) e quatro de São Luís (MA) – indica que o julgamento moral dos profissionais de saúde sobre o aborto interfere no atendimento prestado por eles às mulheres que dão entrada em hospitais depois de tentar a interrupção da gravidez.

 Ana Maria Costa é médica e presidenta do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes).

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