Alcides Miranda: ‘Médicos pelo Brasil’, imitação do Mais Médicos e agenciamento empresarial
Tempo de leitura: 13 minPrograma “Médicos pelo Brasil”: simulacro reciclado e agenciamento empresarial
por Alcides Miranda*, no site da Abrasco
Com “pompa e circunstância” e com as inevitáveis sandices proferidas em discurso presidencial, o Governo Federal lançou no último dia primeiro de agosto o “Programa Médicos pelo Brasil” (PMB), que visa substituir gradualmente o combalido “Programa Mais Médicos” (PMM).
Tal iniciativa contou com o entusiástico apoio da maior parte das representações associativas e sindicais da categoria médica, assim como, do Conselho Federal de Medicina, críticos contumazes e ferrenhos do PMM vigente.
De acordo com informações divulgadas pelo atual Ministro da Saúde, Luís Henrique Mandetta, até o final de 2020 deverão ser ofertadas 18.000 vagas para médicos brasileiros registrados em Conselhos Regionais de Medicina ou para médicos formados no exterior que tenham realizado o exame de revalidação (Revalida) e obtido os respectivos registros.
Os médicos a serem selecionados para o novo PMB que não possuam especialização na área de “Medicina de Família e Comunidade” (MFC) deverão trabalhar e, concomitantemente, realizar tal especialização por um período de dois anos, durante o qual receberão uma bolsa entre R$ 12.000 a R$ 18.000.
Os médicos com a referida especialização deverão ser contratados por uma agência específica em regime CLT, com remuneração variável de R$ 12.600 a R$ 31.000.
O novo programa visa priorizar a alocação de médicos em municípios de “difícil provimento”, de “alta vulnerabilidade”, além de Distritos Sanitários Especiais Indígenas e comunidades ribeirinhas.
Discursos e informações à parte, o que houve de concreto foi a assinatura da Medida Provisória n° 890/2019, que “institui o Programa Médicos pelo Brasil, no âmbito da Atenção Primária à Saúde” do Sistema Único de Saúde (SUS), também autorizando o governo federal a “instituir um serviço social autônomo” denominado como “Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde”.
Uma leitura atenta deste documento revela a iniciativa de reciclagem da estratégia programática anterior (PMM) sob nova “marca” e pela via de seu agenciamento em uma institucionalidade mais centralizada e vertical, sob a égide do Direito Privado.
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Sobre premissas
Registrado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pela candidatura de Jair Bolsonaro, o “programa de governo” para as políticas públicas de Saúde era pífio e permeado por proposições “de varejo”, descritas em apenas duas páginas.
Dentre tais proposições constavam: o credenciamento universal de médicos para atenderem concomitantemente no SUS e em “Planos de Saúde”; a criação de uma carreira estatal para médicos; e a exigência de revalidação de diplomas para médicos cubanos permanecerem no “Programa Mais Médicos”.
Em 2017 o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou dispensa de diploma revalidado de estrangeiros no caso do PMM, ao julgar demandas que questionavam tal requisito. Mesmo assim, o então candidato Bolsonaro declarou que “expulsaria” os médicos cubanos em função da inexistência de diplomas revalidados no Brasil [1].
Ainda ao final do governo Temer, em parte devido às declarações do presidente eleito, o governo cubano optou por romper unilateramente o convênio firmado com o governo brasileiro e intermediado pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS).
No decorrer de cinco anos da participação no PMM, aproximadamente 20.000 médicos cubanos tinham atuado em cerca de 3.600 municípios, sendo que, na ocasião permaneciam aproximadamente 8.500 deles, correspondendo a mais da metade da força de trabalho atuante no referido programa.
A saída dos médicos cubanos do PMM no final de 2018 provocou impactos significativos de desassistência, principalmente em municípios de menores portes populacionais.
Na ocasião, o governo Temer se apressou em abrir novas vagas para reposição com médicos brasileiros. Momentaneamente houve grande quantidade de inscritos (aproximadamente 6.400), embora somente 35% tivessem efetivamente confirmado a escolha de municípios para atuarem e uma proporção ainda menor tivesse efetivamente assumido suas funções [2].
Notícias esparsas, não detalhadas pelo Ministério da Saúde, revelaram que posteriormente houve muitas desistências de médicos após o início de seus trabalhos.
Os registros do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) evidenciam que de julho de 2018 (13.306 registros) a junho de 2019 (3.656 registros) houve um decréscimo proporcional de 72,5% do total de médicos cadastrados e atuantes no PMM, incluídos os brasileiros e estrangeiros.
De fato, houve intempestividade e desmonte do PMM e o novo governo levou seis meses para apresentar sua alternativa de estratégia institucional para lidar com a questão de reposição e fixação desses profissionais, consubstanciada na Medida Provisória em questão.
Sobre os termos de priorização do “Programa Médicos pelo Brasil”
Na MP n° 890/2019, os chamados “locais de difícil provimento” estão definidos como os “municípios de pequeno tamanho populacional, baixa densidade demográfica e distância relevante de centros urbanos”; os “locais de alta vulnerabilidade” estão definidos como os “municípios com alta proporção de pessoas cadastradas nas equipes de Saúde da Família e que recebam benefício financeiro do Programa Bolsa Família, benefício de prestação continuada ou benefício previdenciário no valor máximo de dois salários mínimos”.
No quadro (veja abaixo), evidencia-se um mapa com a distribuição dos municípios brasileiros em quatro estratos estabelecidos a partir do cálculo de uma média da ordenação de cada um, considerados os seguintes índices e indicadores de 2010:
*Índice de Desenvolvimento Humano municipal – IDHm;
*Índices municipais de Vulnerabilidade Social – IVS (calculados a partir de 14 indicadores pelo Instituto de Políticas Econômicas Aplicadas -IPEA);
*Razão de renda entre os 10% de habitantes mais ricos e os 40% de habitantes mais pobres.
No mesmo quadro evidencia-se também, um mapa menor do município de São Paulo, com a distribuição de valores de IDH calculados para os seus distritos urbanos.
O mapa maior evidencia figurativamente “quatro brasis municipais” em razão de distintas condições de vulnerabilidade social.
Entretanto, tal recorte geopolítico não condiz com as manifestações reais e cotidianas das condições de riscos, vulnerabilidades e desgastes a que estão expostos e sujeitos determinados indivíduos, famílias ou grupos populacionais.
O que importa destacar é que, num país tão imenso e desigual como o Brasil, a definição de quaisquer medidas para a priorização de “vulnerabilidades sociais” deve levar em conta que o chamado “âmbito local” tende a ser uma delimitação variável e permeada de desigualdades diversas e dispersas (micro-áreas de riscos etc.).
Por exemplo, considerada a estimativa populacional do IBGE para 2018, se tomarmos o porte populacional de até 10.000 habitantes como medida municipal para o chamado “âmbito local”, tal definição corresponderia a quase a metade (44%) dos municípios do país, entretanto, para somente 6% da população brasileira.
No outro extremo, em somente 0,00001% dos municípios brasileiros, aqueles com estimativas de mais de 1.000.000 de habitantes, estaria aproximadamente 22% da população.
Os municípios mais populosos possuem de dezenas a centenas de “âmbitos locais”, além de uma multiplicidade também extremamente desigual de determinantes e condicionantes para riscos, vulnerabilidades e desgastes (ambientais, sociais, familiares, individuais).
Tal constatação desaconselha a definição de políticas públicas e estratégias institucionais, notadamente aquelas de caráter assistencial, ambientadas ou delimitadas estritamente em “municípios”, mesmo em se considerando, que, para as tratativas formais e procedimentos administrativos nas relações federativas (transferências de recursos financeiros etc.), seja necessária tal delimitação geopolítica.
No caso do PMB, tal delimitação é mais problemática porque prioriza somente “municípios” de pequeno tamanho populacional e baixa densidade demográfica…
Ou seja, ganha em abrangência e quantidade de entornos geopolíticos, mas exclui a maior parte da população brasileira.
Ainda assim, em se tratando de políticas públicas e suas correspondentes estratégias governamentais, alguém poderia questionar, que, sejam quais forem as medidas e os critérios adotados para se definir prioridades territoriais ou populacionais em termos de vulnerabilidades sociais, sempre será difícil e incompleto se dar conta sinergicamente de tamanha complexidade e abrangência.
De fato, quaisquer critérios ou termos adotados tendem a ser falhos e parciais, entretanto, causa espécie constatar que, embora existam informações melhores e mais consistentes para tal propósito, produzidas e disponibilizadas por instituições públicas confiáveis (IPEA, IBGE etc.), o atual governo federal insista em adotar critérios dimensionados somente pelo cadastramento de beneficiários de programas preexistentes.
A definição de critérios para a alocação prioritária de profissionais de saúde em função de políticas públicas e em razão de necessidades sociais não deveria ser assunto exclusivo para tecnocratas encastelados em platitudes ministeriais.
Pior ainda, se os mesmos se encontrarem amparados somente pelo espírito de “autoverdades”, enviesados em verticalidades autoritárias e assessorados por Chicago’s boys.
Sobre os termos de agenciamento empresarial
Nos últimos anos houve significativo incremento na transmutação de estabelecimentos de saúde da égide administrativa do Direito Público para o Direito Privado.
Tal fenômeno tem ocorrido no Brasil principalmente em função de mudança da institucionalidade estatal de Administração Direta para a Administração Indireta de Direito Privado (o que denomino como “empresariamento estatal”) e da contratação de associações privadas como Organizações Sociais (OS) e congêneres (o que denomino como “agenciamento empresarial) para o gerenciamento e prestação de serviços em estabelecimentos estatais [3].
Trata-se de fenômeno com significativa abrangência internacional, que ocorre por imposição do bloco histórico neoliberal, mas, com resultados questionáveis em termos de eficiência institucional ou de impactos sociais equânimes [4].
Assim mesmo, tornou-se hegemônica a falácia de inapelável falência da Administração Direta e a ladainha de que o “empresariamento” do setor público seria a melhor e a mais “eficiente” alternativa para a condução e consecução de políticas governamentais.
Óbvio que a direcionalidade política do governo Bolsonaro é sintônica com tais diretrizes neoliberais (ou, pelo menos, com seu sincretismo miliciano) e buscaria uma alternativa condizente, adotando uma institucionalidade sob a égide do Direito Privado para a condução do novo “Programa Médicos pelo Brasil”… O que causa espécie e curiosidade é o “coelho que foi tirado da cartola”.
Em termos da referida tendência de “empresariamento estatal”, as modalidades administrativas criadas têm sido preponderantemente as próprias “empresas estatais” e as chamadas “Fundações Estatais” de Direito Privado (em menor medida: os consórcios interfederativos de Direito Privado e outras autarquias em regimes especiais).
De repente, o Ministério da Saúde dispõe sobre a criação de um “Serviço Social Autônomo” (Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde – ADAPS) para agenciar tal estratégia programática.
Os Serviços Sociais Autônomos (SSA) existem desde a década de 1940 e têm se constituído como entidades privadas com fins de prestação de serviços sociais e de formação profissional, sendo geralmente vinculados com instituições sindicais e componentes do chamado “Sistema S”.
Conforme a legislação vigente, qualquer SSA vinculado à Administração Pública possui um caráter paraestatal, pois, não se trata propriamente de uma modalidade de Administração Indireta, mas de órgãos auxiliares na “execução de função pública” (STF: ADI n°. 1.864-9/2007).
Os SSA paraestatais não estão obrigados à observância dos princípios e normas constitucionais da Administração Pública e não estão submetidos às regras do referido regime administrativo, devendo apenas submeter-se ao controle da aplicação e prestação de contas de recursos de origem pública.
São exemplos típicos de SSA paraestatais o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex Brasil). No caso do setor público de Saúde, os exemplos são raros, podendo ser citada a Rede Hospitalar Sara Kubitschek.
No caso da nova ADAPS, a entidade paraestatal deverá ser conduzida por um Conselho Deliberativo formado por maioria de indicações ministeriais (quatro dentre sete, sendo as demais indicadas respectivamente pelos Conselhos de Secretários Estaduais e Municipais de Saúde e por “entidades privadas do setor de saúde”).
A Diretoria-Executiva da ADAPS deverá estar composta por três indicações do Conselho Deliberativo (uma para o cargo de “Diretor-Presidente”) e mandato de dois anos, podendo haver uma recondução. Todos os diretores deverão ser remunerados de acordo com “valores praticados pelo mercado”.
A entidade deverá operar com recursos financeiros transferidos de dotações consignadas como orçamento federal, mas poderá captar recursos de outras fontes, tais como: rendas e emolumentos provenientes de serviços prestados a pessoas jurídicas de direito público ou privado; recursos provenientes de acordos e convênios realizados com entidades nacionais e internacionais, públicas ou privadas; e outros recursos (inclusive inespecíficos).
O vínculo da ADAPS com o governo federal deverá ser estabelecido e regulado por “contrato de gestão”, no qual deverão constar todas as atribuições, ações e metas a serem efetivadas.
Para a realização de suas tarefas assistenciais a ADAPS deverá selecionar, contratar e administrar pessoal sob o regime CLT para duas categorias: Médicos de Família e Comunidade e Tutores Médicos, podendo contar ainda com servidores cedidos pelo Ministério da Saúde.
A escolha de tal modalidade específica (SSA) não seria propriamente para um “empresariamento estatal”, mas para um “agenciamento empresarial”, só que, em vez da contratação de uma Organização Social ou congênere, optou-se por um regime executivo acessório, com abertura para a captação de recursos financeiros para além do provimento estatal. Em outros termos, a escolha deveu-se principalmente a:
– Maior centralização e verticalidade do Ministério da Saúde no controle da condução administrativa;
– Possibilidades de financiamento pela via de cobranças por serviços prestados para outras instituições, inclusive privadas;
– Possibilidade de “colateralizações” na contratação de profissionais médicos, consideradas as recentes reformas de regimes trabalhistas em derivações da CLT;
– Maior controle vertical na imposição de remodelagem com ênfase na Atenção Primária à Saúde;
– Menor possibilidade de controle público, principalmente a partir do Conselho Nacional de Saúde.
Provimento não é garantia para a fixação de profissionais de saúde
As dificuldades para o provimento e a fixação de profissionais de saúde (não somente médicos) em determinados lugares e condições têm sido analisadas por muitos pesquisadores no mundo, já que se trata de fenômeno abrangente.
Particularmente no caso brasileiro, tais dificuldades estão associadas principalmente às características do chamado “mercado assistencial ambivalente” para a oferta de trabalho médico, dito de outro modo, onde existem maiores oportunidades de emprego concomitante no SUS e em outros serviços privados (Planos de Saúde, consultórios particulares etc.), tende também a existir maior oferta, vinculação e fixação de trabalho médico.
Nos últimos dez anos (julho de 2010 e 2019) houve o incremento proporcional de 47,4% de médicos cadastrados em estabelecimentos de saúde no país (CNES), mas em se tratando especificamente de ocupações médicas (empregos) houve um incremento concomitante de apenas 20,5% de ocupações em estabelecimentos vinculados ao SUS (próprios ou complementares), enquanto nos estabelecimentos privados sem vínculos com o SUS (suplementares) o incremento de ocupações médicas foi de 91,1%.
Ainda de acordo com os dados do CNES, em julho de 2010, cada médico cadastrado em estabelecimentos de saúde possuía em média 3 ocupações profissionais, sendo 2,2 em serviços do SUS e 0,8 em serviços não SUS; dez anos depois, cada médico possuía em média 2,8 ocupações profissionais, sendo 1,8 em serviços do SUS e 1,0 em serviços não SUS.
Não é preciso muito esforço para se entender que a alocação das ocupações profissionais associa-se tendencialmente aos termos de empregabilidade do mercado assistencial especializado em doenças e não das políticas públicas de saúde, fenômeno bem mais acentuado nos estados e municípios brasileiros localizados nas grandes regiões Sul e Sudeste (uma nova olhada no mapa apresentado anteriormente, denota que são também aqueles municípios com melhores índices de desenvolvimento humano, de vulnerabilidade social, com menores concentrações de renda).
A dinâmica mercantil para o provimento e fixação de trabalho médico não observa e nem diminui iniquidades sociais e de acessibilidade aos serviços de saúde, pelo contrário, tende a exacerbá-las.
Vincular organicamente uma política pública de provimento e fixação de trabalho médico a uma racionalidade empresarial ou a demandas corporativas de mercado, mesmo em se tratando de serviços de Atenção Primária à Saúde, não parece ser uma ideia responsável.
O grande problema de qualquer política pública para a viabilização e consolidação do trabalho profissional em Atenção Primária à Saúde não é o provimento inicial de determinados profissionais, mas a fixação e vinculação de equipes multiprofissionais e interdisciplinares em territórios adscritos, de modo a garantir a sua responsabilização, a continuidade (longitudinalidade) e coordenação do cuidado.
Sobre esse aspecto primordial e desafiador, a referida MP não prevê e nem estabelece nenhuma estratégia institucional consistente, para além da possibilidade de especialização em serviço.
A Medida Provisória também não descreve ou detalha quaisquer critérios ou termos específicos de remuneração e carreira para os médicos e os tutores contratados pela nova agência. O anúncio sobre os tipos de remunerações (bolsas, salários e adicionais) e os valores ficou por conta do discurso e expectativas ministeriais.
Não deixa de ser curioso observar que, em se tratando da modalidade institucional escolhida, o que poderia se aproximar de um “Plano de Salários e Carreiras de Estado” para os médicos contratados em regime de CLT, seria algo a ser estabelecido pela Diretoria Executiva e o Conselho Deliberativo da referida agência, podendo ser modificado ao sabor das conjunturas políticas e de acordo com as conveniências de mandatos eleitorais no governo federal.
Uma das vantagens do “Programa Mais Médicos” tem sido o seu potencial agregador de outros recursos e profissionais.
Análises preliminares realizadas por pesquisadores da “Rede Observatório do Programa Mais Médicos” (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) revelam que a implantação do PMM impactou mais positivamente em indicadores epidemiológicos e de oferta de trabalho profissional para municípios de pequeno e médio portes populacionais (até 25.000 habitantes) com piores condições de desenvolvimento humano (IDH), vulnerabilidade social (IVS) e concentração de renda (R1040).
Isso ocorreu porque a cobertura populacional nesses entornos tendeu a ser bem maior, não somente para médicos, mas, porque o PMM decorreu em valor agregado, ou seja, propiciou a contratação de outros profissionais e equipes de Saúde.
A instituição de um Plano de Cargos, Carreiras e Salários para os profissionais do SUS deveria ser a prioridade para qualquer governo comprometido realmente com o sentido substancial para as políticas públicas de saúde em um pais tão desigual.
Tal iniciativa, se consideradas as principais características, condições e funcionalidades implicadas na dialética entre unidade e diversidade, se combinada com outras políticas de formação e educação permanente, seria bem mais efetiva para prover, fixar e comprometer os profissionais com a necessária mudança do modelo de atenção à saúde.
Estabelecer uma política pública pautada somente em demandas de uma corporação profissional, por mais importante que ela seja, tende a gerar mais dissociações, disputas e injustiças.
Enfim, vamos ao que realmente interessa no contexto em que estamos…
Embora o foco aqui tenha sido analisar brevemente determinada regulamentação de política pública e de suas estratégias programáticas específicas para a reposição no provimento de médicos, a questão substancial é o contexto político.
Estamos versando sobre uma das políticas setoriais específicas de um governo substantivamente autoritário, tosco e arrogante; tendente ao fascismo em suas formas inusitadas e nuances contemporâneas.
Nas experiências fascistas do século passado, notadamente no caso italiano, ficou patente a arregimentação e suporte de corporações autoritárias da sociedade civil aos regimes autoritários.
Uma das formas de sustentação política encontrada pelos regimes fascistas (dentre outras, como o uso de intimidações, a “naturalização” de violências institucionais, o controle da mídia etc.) foi o atendimento de demandas corporativas de segmentos específicos e com destaque social.
Claro, muitas das corporações já apoiavam tais regimes, entretanto, o atendimento de suas demandas particulares e mercantis conferia maior respaldo e organicidade.
Voltando ao presente e lembrando particularmente da necessária agenda estratégica para a mudança do modelo de Atenção à Saúde, com priorização da Atenção Primária, torna-se importante reiterar que os regimes autoritários também tendem a ser considerados como ideais para os tecnocratas afins e para a barbárie tecnocrática.
Mesmo em havendo estratégias institucionais e programáticas de políticas públicas que poderiam ser consideradas necessárias e adequadas, em regimes autoritários as mesmas tendem a ser impostas de forma abrupta, inconteste e ainda mais vertical que de costume.
No contexto em questão, imaginar que é possível se traficar avanços pontuais em políticas setoriais significa embarcar na ilusão de “normalidade” institucional, quando pequenos recuos e avanços fazem parte do jogo incremental, ou, pior, cair em tentação tecnocrática amparada por ethos corporativo.
Precisamos, como nunca, de mais médicos pelo Brasil, não para nutrir uma corporação autoritária, dependente do mercado das doenças em uma sociedade civil adoecida, mas para resistir e lutar pelas transformações sociais que realmente farão a diferença nesse momento crucial de nossa história.
*Alcides Miranda é médico e professor associado dos cursos de graduação e pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É integrante da Comissão de Política, Planejamento e Gestão em Saúde da Associação e compôs o Conselho Deliberativo da Abrasco na gestão 2015-2018
Notas:
1. “Bolsonaro diz que vai usar o Revalida para expulsar os médicos cubanos do país” Disponível em: https://g1.globo.com/sp/presidente-prudente-regiao/noticia/2018/08/22/bolsonaro-diz-que-vai-usar-revalida-para-expulsar-medicos-cubanos-do-brasil.ghtml
2. “2,2 mil dos 6,3 mil inscritos no Mais Médicos, concluíram processo e escolheram cidade, diz Ministério”. Disponível em: https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2018/11/22/6394-medicos-ja-se-inscreveram-ate-agora-no-mais-medicos-mais-de-2-mil-ja-escolheram-onde-vao-atuar.ghtml
3 Miranda, A.S. “Institucionalidades jurídicas e administrativas de estabelecimentos de saúde nas regiões do Brasil”. Novos Caminhos, n.16. Pesquisa Política, Planejamento e Gestão das Regiões e Redes de Atenção à Saúde no Brasil. Disponível em: http://www.resbr.net.br/wp-content/uploads/2017/04/Novos_Caminhos_16.pdf
4 Miranda, A.S. “Marchezan e as falaciosas pretensões sobre o empresariamento do setor público de Saúde”. Disponível em: https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2019/04/marchezan-e-as-falaciosas-pretensoes-sobre-o-empresariamento-do-setor-publico-de-saude-por-alcides-miranda/
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