André Biernath: Hospitais podem recusar a colocação do DIU em mulheres por motivos religiosos?

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Mulher pediu pela implantação do DIU, mas Hospital São Camilo, em São Paulo, se recusou por princípios católicos. Fotos: Wikimedia Commons

Hospitais podem recusar procedimentos por motivos religiosos?

Por André Biernath, da BBC News Brasil em Londres

“Vocês acham que é fácil ser mulher? Ontem fui a uma consulta no Hospital São Camilo e a médica me informou que não pode colocar o DIU em mulheres porque isso vai contra os valores religiosos da instituição.”

Essas duas frases, postadas no X na terça-feira (23/1) pela produtora de conteúdo Leonor Macedo, foram o gatilho para um extenso debate sobre o acesso a procedimentos e tratamentos em instituições de saúde brasileiras que têm vínculos religiosos.

Só para contextualizar, DIU é uma sigla para dispositivo intrauterino, um pequeno objeto de metal ou plástico que é implantado no útero e que funciona como um método contraceptivo de longa duração.

Ele tem a eficácia e a segurança comprovadas por diversos estudos clínicos e está disponível há alguns anos no Sistema Único de Saúde (SUS).

O Hospital São Camilo usou a mesma rede social para se posicionar sobre a questão.

Ao responder diretamente a postagem de Macedo, a instituição afirmou que, “por diretriz institucional”, não realiza procedimentos contraceptivos, “seja em homens ou mulheres”.

Em nota enviada à BBC News Brasil, o hospital reforçou que é “uma instituição confessional católica” e “tem como diretriz não realizar procedimentos contraceptivos”.

“Tais procedimentos são realizados apenas em casos que envolvam riscos à manutenção da vida.”

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“Os pacientes que procuram pela Rede de Hospitais São Camilo – SP e que não apresentam riscos à saúde são orientados a buscar na rede referenciada do plano de saúde hospitais que tenham esse procedimento contratualizado”, complementa o texto.

Um centro de saúde pode se recusar a oferecer determinados procedimentos alegando questões religiosas?

A BBC News Brasil consultou especialistas em Direito Sanitário e Bioética — e cada um deles trouxe uma interpretação diferente sobre uma situação dessas, como você confere a seguir.

‘Infração a um direito fundamental’

O advogado Henderson Fürst, presidente da Comissão de Bioética da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), avalia que alguns direitos foram violados neste caso.

“O planejamento familiar está configurado como um direito na própria Constituição e aparece regulamentado como lei”, pontua o especialista, que também é diretor da Sociedade Brasileira de Bioética.

A lei 9.263, promulgada em 1996, afirma que “o planejamento familiar é direito de todo cidadão”.

No texto desta lei, o planejamento familiar é definido como “o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal”.

O mesmo artigo ainda lembra que “as ações de planejamento familiar serão exercidas pelas instituições públicas e privadas, filantrópicas ou não, nos termos desta Lei e das normas de funcionamento e mecanismos de fiscalização estabelecidos pelas instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde”.

“Ou seja, estamos diante de uma infração dos direitos que todo brasileiro possui em relação ao planejamento familiar”, interpreta Fürst.

Na visão do advogado, a recusa na implantação do DIU — um dos métodos contraceptivos que permite às mulheres organizarem a própria vida e decidirem quando querem ter filhos, como assegurado por lei — representa um problema jurídico.

“Se estivéssemos falando de a instituição recusar uma cirurgia plástica estética, que não está vinculada a um direito fundamental, estaríamos diante de um cenário bem distinto”, exemplifica o advogado.

Fürst vê um segundo ponto de atenção neste debate. Ele lembra que os médicos têm o direito de negar atendimento, procedimentos ou tratamentos sob uma justificativa de objeção de consciência, com fundo moral, ético ou religioso.

Segundo ele, isso não se aplica às instituições de saúde.

“Vamos imaginar o caso de uma menina de menos de 14 anos que engravidou. Trata-se de um estupro presumido e ela pode interromper essa gestação. Essa é uma das hipóteses em que o aborto legal está previsto”, explica o advogado.

“Agora, vamos supor que todos os médicos de uma instituição se recusem a fazer esse aborto. Eles têm esse direito. Mas é dever do hospital ir atrás de profissionais que não tenham essa objeção de consciência para realizar o procedimento.”

“Uma instituição de saúde não pode argumentar que não comunga com determinados valores e deixar de prestar o serviço.”

Para Fürst, quando um hospital proíbe os médicos de realizar um certo procedimento — que está regulamentado e aprovado por agências regulatórias e outras instâncias —, há uma limitação da autonomia desses profissionais de saúde.

“E isso pode violar o direito e limitar a atuação deles. O código de ética diz que o médico deve exercer sua profissão com autonomia”, diz ele.

‘Extrapolação do direito de médicos’

Para o advogado Fernando Aith, professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP), o posicionamento do Hospital São Camilo traz uma extrapolação daquela prerrogativa garantida aos médicos.

“Do ponto de vista jurídico, o profissional médico pode se recusar a fazer um atendimento que vá contra qualquer crença ou convicção particular que ele possua. A novidade é esse tipo de postura ser adotado por uma instituição”, reforça o especialista, que também é diretor do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP.

“Por ser uma instituição privada religiosa, o hospital pode ter regras internas que impõem certos limites aos procedimentos.”

“Nesse caso, estaríamos diante de uma extensão analógica de uma regra que vale para o médico, como pessoa física, para o empregador. E isso é algo que pode gerar controvérsias jurídicas”, admite Aith.

O advogado também destaca a questão da autonomia médica e questiona como o Conselho Federal de Medicina (CFM) se posicionaria diante de uma situação como essa.

“O empregador pode estar impondo aos seus médicos um tipo de conduta terapêutica que o profissional não necessariamente concorda.”

Aith lembra que o CFM utilizou bastante o argumento da autonomia médica durante a pandemia de covid-19 para defender a liberdade dos profissionais da saúde de prescrever determinados tratamentos.

A BBC News Brasil procurou o CFM para avaliar o episódio.

Por meio da assessoria de imprensa, o órgão disse que, como “instância de julgamento”, prefere se abster de fazer comentários sobre casos concretos, “para manter a isenção”.

“Qualquer pessoa pode apresentar queixa sobre fatos aos quais tenha sido confrontado junto ao Conselho Regional de Medicina (CRM) do Estado onde tenham ocorrido. Caberá ao CRM analisar a situação e tomar as providências necessárias, após realização de sindicância”, complementa o conselho.

O professor da USP entende que é preciso avaliar em detalhes se, apesar de ser uma instituição privada, o Hospital São Camilo presta algum tipo de serviços ao SUS — e, neste contexto da saúde pública, também veta os métodos contraceptivos.

“Se existir esse tipo de recusa para pacientes do SUS, haveria uma violação de toda a lógica do sistema de saúde e dos protocolos de contracepção estabelecidos no país”, interpreta ele.

A BBC News Brasil questionou o Hospital São Camilo, para entender se existe alguma prestação de serviços pelo SUS — e se, no âmbito da rede pública, a instituição oferece (ou não) métodos contraceptivos que são preconizados pelo Ministério da Saúde.

O hospital respondeu que, “em São Paulo, não realiza atendimento ao SUS”.

“Porém, as atividades das unidades Pompeia, Santana e Ipiranga subsidiam cerca de 40 unidades administradas pela São Camilo e que atendem pacientes do SUS em 15 Estados brasileiros”, acrescentou.

A BBC News Brasil perguntou novamente se as unidades ligadas ao SUS administradas/subsidiadas pelo São Camilo oferecem métodos contraceptivos.

Em resposta, o hospital encaminhou uma nota das entidades camilianas — a ordem católica que gere a instituição:

“Informamos que em todas as unidades a diretriz é não realizar procedimentos contraceptivos em homens ou mulheres, exceto em casos de risco à saúde, em alinhamento ao que é preconizado às instituições confessionais católicas.”

‘Não há urgência ou emergência’

A advogada Mérces da Silva Nunes, especialista em Direito Médico e Bioética pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, entende que a postura do Hospital São Camilo não apresenta problemas do ponto de vista jurídico.

“Primeiro, trata-se de uma instituição privada, que professa a doutrina da Igreja Católica e segue esse regramento”, começa ela, que também é mestre e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

“Além disso, nesse caso concreto, não há uma situação de urgência ou emergência em relação à saúde ou à vida da paciente.”

“Toda a questão está centrada na necessidade imediata de socorro do paciente. O planejamento familiar é uma necessidade, mas não é algo que terá um impacto imediato na saúde do indivíduo. É algo diferente de você precisar socorrer alguém com prontidão, para evitar uma morte.”

“Ou seja, como não era uma situação de emergência, eu entendo que a instituição pode sim autorizar ou não determinados procedimentos”, complementa ela.

Para a especialista, esse caso contrapõe diferentes direitos fundamentais.

Por um lado, as pessoas têm garantido por lei o acesso ao planejamento familiar. Por outro, há questões de liberdade religiosa — e instituições privadas podem escolher os procedimentos que elas vão oferecer ao público.

“Se esta fosse a única instituição que realiza esse tipo de procedimento, daí entendo que ela não poderia se recusar a fazê-lo. Mas é possível acessar esse método contraceptivo por outros meios, no próprio plano de saúde”, argumenta ela.

Nunes reforça que, em casos de vida ou morte, as instituições de saúde são obrigadas a prestar assistência e realizar procedimentos, mesmo que eles sejam contrários à visão de mundo ou às diretrizes internas do estabelecimento.

“Além disso, se estivéssemos falando de uma instituição pública de saúde, isso não teria cabimento, porque há o dever constitucional de fazer todos os procedimentos necessários para a preservação da saúde de uma pessoa”, pontua a advogada.

Nunes também destaca que o São Camilo deixou claro que não oferece métodos contraceptivos nem para homens, nem para mulheres.

Caso o estabelecimento só limitasse o acesso do público feminino, no entanto, poderia enfrentar problemas. Nesse caso hipotético, haveria uma desigualdade de gêneros.

“Eu particularmente penso que, numa situação dessas, haveria um ato discriminatório e a instituição poderia responder por isso”, explica ela.

‘Do ponto de vista da bioética, há vários riscos’

O médico infectologista Dirceu Greco, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), lembra que esse não é o primeiro episódio em que instituições de saúde que têm vínculo com a Igreja Católica se recusam a oferecer métodos contraceptivos durante consultas.

Numa reportagem publicada em 2019 no site Rewire News Group, a escritora Evann Normadin relatou que não teve acesso ao DIU mesmo após pedir a implantação do dispositivo durante uma consulta realizada no Hospital Universitário Medstar Georgetown, em Washington, nos Estados Unidos. O centro também é gerido por organizações católicas.

Já uma matéria do The Guardian de 2023 destaca que hospitais controlados por instituições católicas na Austrália usavam o argumento religioso para negar a realização de diversos métodos contraceptivos — desde a laqueadura até o DIU.

Greco, que foi presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, também chama a atenção para alguns artigos do Código de Ética Médica, publicado pelo CFM.

O artigo 31, por exemplo, afirma que é vedado ao médico “desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”.

Já o artigo 42 diz que este profissional de saúde não pode “desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre método contraceptivo, devendo sempre esclarecê-lo sobre indicação, segurança, reversibilidade e risco”.

“Os princípios fundamentais do Código de Ética também apontam que ‘a Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza'”, cita Greco, que é membro do Comitê Internacional de Bioética da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

Na avaliação do professor, ao recusar o acesso a métodos contraceptivos, um hospital pode estar desrespeitando esses princípios e artigos.

“Então, do ponto de vista da bioética, há vários riscos numa situação como essas. Primeiro, mesmo num Estado laico como o nosso, parece haver um impedimento para que as coisas aconteçam com respeito à separação entre Igreja e o Estado”, opina Greco.

“Um caso desses também descarta a decisão pessoal, autônoma e informada do paciente de receber tratamento ou procedimento, que está correto do ponto de vista científico.”

Por fim, Greco diz que é necessário avaliar a abrangência dessas decisões de hospitais e centros de saúde brasileiros, que estão de alguma maneira ligados a uma religião.

“Precisamos ver se as pessoas estão impedidas de exercer seus direitos aos cuidados em saúde baseados exclusivamente em causas religiosas, que podem ir de encontro ao foco de toda a atenção médica, que é sempre a saúde do paciente sem qualquer tipo de discriminação”, conclui ele.

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