De rolê por aí…Resistência política ou consumo?
por Márcio Macedo, no seu blog NewYorKibe, sugerido pelo colega Antônio David
“Os comícios de todas as noites na Praça do Patriarca e as concentrações também à noite de negros agressivos ou embriagados na rua Direita e na Praça da Sé, os botequins do centro onde os grupos se embriagam, já estão provocando protestos, justíssimos protestos, até pela imprensa, pois não é possível uma cidade como São Paulo ficar a mercê de hordas grosseiras e malcriadas, prontas a se desencadearem contra qualquer branco, homem ou mulher, desde que um gesto involuntário, um olhar mesmo, possa ser mal interpretado por esses grupos brutais e violentos”. “Negros do Brasil” – Paulo Duarte, O Estado de São Paulo, 17 de abril de 1947.
Rolezinhos, não se fala em outra coisa. Não tinha a intenção de escrever sobre o tema, mas venho lendo tanta coisa que me desagrada na web que decidi alinhavar algumas linhas sobre o fenômeno. Algo curto, que fuja do sociologuês e evite exotizar, vitimizar ou alocar uma precoce agenda revolucionária e/ou de resistência nos jovens que participam dos rolezinhos.
O trecho que abre esse post foi retirado do artigo “Negros do Brasil” publicado no jornal O Estado de São Paulo e escrito pelo jornalista Paulo Duarte (1899-1984).
O texto evidencia a preocupação das elites paulistanas em relação à ocupação da região central da cidade pelos negros nos anos 1940, associando-os ao perigo e à violência. A Rua Direita foi motivo de várias polêmicas entre a população negra e os comerciantes ali estabelecidos nessa época (basta ler relatos históricos sobre esse período).
Certa feita tentou-se proibir a circulação deste contingente da população no local e num artigo de jornal os lojistas alertavam que os negros estavam dando a São Paulo um aspecto de Havana, Cuba.
Duarte, contudo, não atacava somente os negros “agressivos” e “embriagados” da Rua Direita e da Praça do Patriarca, mas também o que ele chamava de “sociologia nigro-romântica do Nordeste” e a literatura “dos sociólogos romancistas ou dos romancistas sociólogos tidos como alunos do Sr. Gilberto Freire (sic); rapazes de algum talento, sem possuir, no entanto, do mestre nem a cultura nem a análise aguda deformada apenas pela sua irreprimível imaginação tropical cheia de brilho”.
Esses intelectuais, de acordo com o literato paulista, insistiriam em pintar um tipo brasileiro definitivo tendendo para o negro, mas Duarte afirmava categoricamente do alto de sua sapiência paulista quatrocentona: “Uma coisa, porém, existe e existirá com absoluta nitidez, a deliberação marcada pelo consenso unânime dos brasileiros lúcidos: o Brasil quer ser um país branco e não um país negro” (leia o texto completo de Duarte clicando AQUI).
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O contexto é distinto, mas o fenômeno dos rolezinhos guarda similaridades com as polêmicas dos anos 1940 e 1950 envolvendo negros, brancos e comerciantes do centro de São Paulo.
No projeto de sociedade que vem se construindo no Brasil nas últimas duas décadas, o processo de reconhecimento dos indivíduos e cidadãos passa necessariamente pelo acesso ao mercado, ou seja, consumir.
Não é à toa que o que mais se constrói em São Paulo e no restante do Brasil nos últimos anos são novos shopping centers e hipermercados.
Na sociedade de consumo, shopping centers configuram um espaço de imbricamento de consumo, sociabilidade e lazer em um espaço privado. Historicamente no Brasil o consumo é uma prática reservada a grupos minoritários pertencentes às elites e, por conta disso, foi/é usado como forma de distinção social. Mas a expansão do consumo que vem se dando nos últimos anos faz com que a distinção social que ele estabelecia anteriormente não tenha o mesmo efeito na conjuntura atual.
Por outro lado, é necessário possuir certa sensibilidade para não reproduzirmos ideias equivocadas oriundas do senso comum.
Jovens e pobres (negros ou brancos) sempre consumiram e frequentaram shoppings no Brasil. Tanto é verdade que os rolezinhos em sua maioria vêm acontecendo até agora em shoppings com um perfil mais popular o que comprova que há muitos anos já ocorreu uma segmentação dos shoppings por classe social.
Por outro lado, o que vemos hoje é um aumento da dinâmica de consumo aliado à necessidade de reconhecimento social através dele. As novas tecnologias de informação também contribuem para esse processo. O funk ostentação paulista e os rolezinhos não existiriam hoje sem o acesso destes jovens a computadores pessoais, smartphones e à Internet (assista o documentário Funk Ostentação aqui).
Por fim, vale lembrar que, a priori, os rolezinhos não têm a mesma conotação política que os protestos que ocorreram no meio do ano e que tiveram seu epicentro nas reivindicações por revogação do aumento da tarifa de ônibus. Também discordo da idéia de resistência. Rolezinho tem a ver com consumo, lazer e sociabilidade da juventude pobre ou de classe média baixa.
Somente se considerarmos que o reconhecimento social na atualidade se dá muito mais via consumo do que necessariamente pela incorporação de direitos civis, políticos e sociais, aliado à repressão que vem se dando aos rolezinhos (com contornos de classe e raça) é que poderemos ver o impacto e aspecto político/social desse fenômeno. Explico-me.
Ser negro/a, mestiço/a (raça) e pobre (classe) no Brasil significa lutar contra estigmas vigentes na ordem social e que estão incorporados na pele, no cabelo, na forma de falar, de se vestir e na prática do lazer/sociabilidade da juventude do rolezinho.
Quando uma multidão de jovens com esse perfil se reúne para se divertir de forma pacífica em um espaço privado, socialmente higienizado, sobre vigilância e dedicado ao consumo isso gera uma histeria generalizada que o sociólogo inglês Stanley Cohen classificou de “moral panic” (pânico moral) em seu livro Moral Panic and Devil Folks (1972), ou seja, uma condição, episódio, pessoa ou grupo de pessoas que emergem e são definidas como uma ameaça aos valores societários e interesses (ordem social). E daí, “pau” ou cadeia neles!
Nesse sentido, vale a pena resgatar a fala de Paulo Duarte nos anos 1940 para fechar e resumir esse post: “Uma coisa, porém, existe e existirá com absoluta nitidez, a deliberação marcada pelo consenso unânime dos brasileiros lúcidos: o Brasil quer ser um país branco e não um país negro”.
Há nos rolezinhos uma potencialidade política/social que, na minha opinião, ainda não se desenvolveu. Mas… Quem é que sabe sobre o dia de amanhã?
Muita Paz Muito Amor!
Márcio Macedo (Kibe) estudou Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da USP (FFLCH/USP). Atualmente faz doutorado nos EUA.
Leia também:
Antônio David: ‘Rolezinhos’ expõem a chaga nunca fechada da escravidão
Comentários
FrancoAtirador
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O primeiro ‘rolezinho’ da história, em 1960, na Carolina do Norte
Do blog do Thomas Conti, via GGN
Estados Unidos, 1 de Fevereiro de 1960: o primeiro “rolezinho”
O título não poderia deixar de ser uma provocação, mas bem intencionada – peço perdão aos colegas historiadores pelo anacronismo.
Em 1 de Fevereiro de 1960, quatro jovens universitários negros, vestidos com suas melhores roupas, entraram na lanchonete Woolworth’s em Greensboro, no Estado da Carolina do Norte, EUA. Os estudantes compraram alguns itens da mercearia sem nenhum problema, e em seguida pediram um lanche no balcão de serviços da lanchonete.
O evento, aparentemente banal, é um marco histórico da luta por direitos civis nos Estados Unidos. Tudo porque os estudantes, contrariando a política da loja, fizeram seus pedidos na área do balcão que era reservada para as pessoas brancas, quando havia indicações explícitas de que a área para as pessoas “de cor” era mais ao canto da loja.
Os funcionários da loja se recusaram a atender ao pedido dos jovens, e o gerente pediu que se retirassem do estabelecimento. Os quatro jovens ficaram sentados até o horário que a loja fecharia, esperando pacientemente serem atendidos – o que não aconteceu.
No momento da foto, uma mulher branca idosa ia em direção aos quatro. Um deles, Franklin McCain, relembra o que sentiu no momento: “Eu estava pensando comigo mesmo, ela deve ter uma faca de amolar e tesouras naquela bolsa dela e elas estão prestes a me atravessar direto. Quero dizer, nós estávamos invadindo o espaço dela, um espaço que nos era dito que nós não podíamos habitar.” A citação vem de uma entrevista dada por McCain em 2010, no aniversário de 50 anos do protesto de Greensboro.
No dia seguinte ao protesto, mais de vinte afro-americanos reuniram-se na loja, onde novamente tiveram seu pedido recusado e sofreram discriminação por parte dos clientes brancos do recinto. No terceiro dia, por volta de 60 pessoas juntaram-se ao protesto, e a loja protegeu-se alegando estar “de acordo com a lei estadual”, que era favorável à segregação.
No quarto dia, mais de 300 pessoas, que aprenderam a dinâmica do protesto, juntaram-se e começaram a ocupar mais lojas da região. Os protestos, que ficariam conhecidos como “sit-ins”, espalharam-se para outras cidades e Estados, e foram um ponto de inflexão crucial na luta por direitos civis nos Estados Unidos, atraindo a atenção da mídia e da Casa Branca, com o então presidente Eisenhower declarando ser “profundamente simpático aos esforços de qualquer grupo a gozarem dos direitos de igualdade que lhes é garantido pela Constituição”.
Os protestos continuaram por meses, ainda que não raro sofrendo reações violentas por parte de lojistas ou clientes. Mas, em julho daquele mesmo ano, a rede de lojas onde os jovens protestaram aboliram a segregação por cor dentro do estabelecimento, e outros recintos do sul dos Estados Unidos também começaram a desfazer as divisões raciais. Hoje, os quatro bancos onde os jovens se sentaram fazem parte do museu do Instituto Smithsonian da História Americana, e a sessão específica do museu foi construída onde era a loja onde os jovens protestaram pela primeira vez.
Rolezinhos, Brasil, 2012-2013
Estou em vias de terminar um artigo apenas para tratar da questão atual dos “rolezinhos” em nosso país, mas gostaria de já deixar aqui algumas provocações.
Por que as pessoas dos shoppings tem medo destes jovens?
Quando relembramos o acontecimento dos Estados Unidos, nos é difícil entender como os funcionários da loja e seus clientes puderam agir da forma que agiam, ou como a lei do sul dos Estados Unidos podia permitir tamanha discriminação. Parecem coisas muito distantes, de um passado longínquo. Mas é na verdade muito recente, e fato é que temos poucos motivos para crer que aquelas pessoas eram biologicamente diferentes de nós em qualquer sentido. Elas reagiram com uma mistura de sentimentos que, colocadas lado a lado com o impacto que teve o “rolezinho”, é muito similar.
Primeiro, elas tem medo. Penso que os dois maiores medos do ser humano são o desconhecido, e outros seres humanos. Junte os dois e multiplique o número de componentes e o potencial para o medo irracional é quase irreversível. Assim como os brancos do sul dos EUA, acostumados com o distanciamento e o preconceito, não conheciam nada da vida dos negros, quem eles eram, qual sua cultura, etc, parte significativa da sociedade brasileira hoje não tem a menor ideia de como é a vida e os costumes de seus novos jovens adolescentes, negros, pobres, ou que seja. Conseguem apenas evidenciar que de fato são “gente diferenciada“. Em outras palavras, ignorância, preconceito e má vontade, atreladas à racionalidade estatística e contábil que organiza os shoppings centers conforme o público-alvo e que já de partida segrega seus frequentadores por classe. Basta ver como rolezinhos tradicionais da alta classe nunca geraram polêmica ou balas de borracha.
Outra provocação é como as regras dos espaços privados e a lei pública são colocadas em tensão nesses acontecimentos. A lei federal dos Estados Unidos colocava todos como iguais e em tese não permitia a discriminação. Forças da tradição, aliadas ao elitismo muito bem apadrinhado financeiramente, eram contudo fortes suficientes para que em diversos Estados o dia a dia pudesse ser organizado numa lógica que era diretamente contrária à lei. Após os protestos, evidente que houve a vitória da lei federal sobre as inclinações pessoais dos lojistas, mas só depois de anos de luta, muito sangue derramado e desconfortos por toda parte. Aqui no Brasil as coisas não chegaram ao ponto de haver placas indicando onde brancos e negros devem ir, ou pobres e ricos devem ir, mas é completamente lícito fazer estabelecimentos para as classes altas em regiões onde o transporte público é péssimo ou inexistente, ou adotar uma política que permita apenas lojas de alto padrão e altos preços no estabelecimento de modo a não convidar “populares”, ou cobrar taxas abusivas de estacionamento onde não se quer os pobres, dentre outras táticas que, alega-se, são apenas métodos matemáticos e estatísticos de aumentar as vendas. Talvez isso seja em parte verdade, mas definitivamente não são “só” isso.
Para concluir, com este artigo não era meu intuito realmente classificar uma luta decidida por direitos civis dos EUA como um “rolezinho”, nem dizer que o rolezinho é uma luta consciente por direitos civis no Brasil. Entretanto, os jovens dos EUA não tinham a menor ideia que estavam marcando a história do país – na verdade deviam estar pensando mais no quanto estavam arriscando a vida. Nesse momento tampouco sabemos o que significa esses rolezinhos. Enfim, com ressalvas, acredito que existem paralelos e lições importantes que devemos nos dispor a refletir sobre, uma vez que ainda vivemos, sim, num dos países mais desiguais do mundo, herança que, ao menos do meu ponto de vista, não lutamos um centésimo do que seria necessário para de fato combatê-la.
E ah, já ia esquecendo. Sobre a mulher que se aproximara do jovem manifestante McCain na lanchonete dos EUA, ela não o atacou. Na verdade, surpreendentemente, ela sorriu para ele e disse: “Garotos, estou tão orgulhosa de vocês. Apenas lamento não terem feito isso há 10 anos atrás”. Segundo o próprio, as palavras dela foram uma fonte de inspiração para ele durante toda a sua vida.
(http://jornalggn.com.br/noticia/o-primeiro-rolezinho-da-historia-em-1960-na-carolina-do-norte)
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FrancoAtirador
Monumento aos quatro jovens negros que fizeram história nos EUA:
David Richmond, Franklin McCain, Ezell Blair Jr e Joseph McNeil.
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lukas
Rolezinho tem a ver com pegar a mulherada. Quando tiverem a coragem de entrevistar um dos garotos este papa de PRIMAVERA DE PRAGA DA PERIFERIA acaba.
Oque os garotos querem é passar o rodo geral e comprar um tenis Nike.
Apavorado com a cara-de-pau humana.
Você não entendeu, Lukas,
Não importa o que queriam. O fato é: entraram e foram dispersados, pela cor. Nem foi pela classe econômica, que não era tão baixa.
E mais: espaço privado alegado é discutível. Olhe: o entorno do Shopping Tucuruvi era um espaço vital para se fazer ex. um terminal de ônibus, pois fica junto ao metrô,mas foi cercado e virou um shopping. Se o governo quiser fazer um terminal terá que destruir o shopping e pagar caro. Isso de usar espaços deveria ser regulamentado assim. entorno de metrô, etc. jamais poder construir shoppings.
Os mais espertos não podem continuar mandando, entendeu?
Mauro Bento
E A PM NA PERIFERIA ???
Falta denunciar que bailes Funk e Pancadões em vias públicas na periferia são sistematicamente reprimidos pela Polícia Militar,como sempre brutalmente.
Por isso as tentativas de reuniões em Shoppings, onde a PM “pega mais leve”, atribuir só ao desejo de consumo é mascarar a realidade repressiva do aparthaid social brasileiro.
Muita Paz Muito Amor por parte da PM,é a solução.
rodrigo
(…) No projeto de sociedade que vem se construindo no Brasil nas últimas duas décadas, o processo de reconhecimento dos indivíduos e cidadãos passa necessariamente pelo acesso ao mercado, ou seja, consumir.
O problema é justamente esse, o tal projeto não saiu da esfera comercial/industrial. Não foi projetado nem nunca chegou fundo o suficiente para modificar a esfera e a estrutura sociais.
C’est la vie…
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