por Lincoln Secco, no Blog da Boitempo Editorial
“Os protestos são legítimos desde que não haja vandalismo”.
Quem nunca ouviu este mantra nos últimos tempos? Não vale a pena buscar no velho socialista Houaiss a definição do vocábulo. Vandalismo é tudo aquilo que destoa da mensagem dos monopólios dos meios de comunicação. Assim, compara-se a quebra de uma vitrine de um Banco a um ato violento. Ora, a violência é uma relação social entre pessoas.
É estranho que o espancamento de manifestantes seja tratado como “confronto” e o ataque a símbolos da ostentação capitalista seja algo violento. É só assim que a desumanização do discurso burguês chega ao paroxismo. A reunião para protestar nas ruas torna-se formação de quadrilha, especialmente se pretende denunciar a verdadeira quadrilha do PSDB que assaltou o Estado de São Paulo ou a administração desavergonhada de Cabral no Rio de Janeiro.
É verdade que manifestantes cometem excessos. Atacam por vezes o bem público. Além disso, as manifestações são infestadas por grupelhos fascistas e policiais infiltrados. Mas mesmo quando se excedem os manifestantes jamais podem ser comparados à violência do opressor. Afinal, por que aquele jovem negro e mascarado da periferia que disse que a polícia matou o seu pai não colocaria pedras na mochila? É mais do que um ato pessoal. É um ato político. Deixo aos especialistas a análise antropológica de Black Blocs, “estética” das manifestações etc.
Um jovem massacrado pelas dimensões desumanas da cidade, impossibilitado de se apropriar dela pela configuração do espaço urbano desenhado pela malha viária capitalista (como mostra Ivan Illich em seu estudo Energia e equidade) tende a protestar sem luvas de pelica. Mesmo os de classe média, agora acordados pelo caos da retomada do desenvolvimento capitalista periférico.
Recordo-me quantos jovens de periferia nos anos 1980 não hesitavam entre o sufocado ranger de dentes e a raiva aberta aos que simplesmente tinham automóvel, telefone em casa* ou moravam em bairros “nobres”. Quantas vezes não cuspiam na vidraça de um restaurante que supunham luxuoso ou chutavam uma lixeira, aliviados. Ou permaneciam sem dinheiro na porta da velha Ledslay vendo os “playboys” da Zona Leste (!) paulistana entrar. Bem, para falar a verdade eles estavam longe de serem playboys…
O ódio da Polícia era unânime. As batidas terminavam com armas de grosso calibre nas nucas. Coisas piores podem ser lidas no excelente Rota 66 de Caco Barcelos.
Ao contrário de muitos militantes atuais da ação direta, eram desenraizados e só mais tarde “educados” pela pedagogia de uma esquerda que não chegava à periferia, mas nascia nela. Numa pequena área da Zona Leste (Cangaíba e Engenheiro Goulart) havia 4 núcleos: dois do PT, um do PMDB e outro do PCB. O PC do B, MR-8 e tendências de esquerda do PT tinham militantes nas escolas secundárias.
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Hoje o bairro é muito melhor. A estação de trem foi remodelada e há até um campus da USP. Mas a política do protesto foi embora e a violência persistiu. Um sofista diria que a periferia não é um “sujeito abstrato” que gera violência. Claro, ela é um resultado concreto de uma violência que não provém dela, mas da política consciente de governantes que perpetuam a desigualdade social.
A verdade é que uma adequada quantidade de violência é inerente ao regime de classes. O que incomoda os de cima não é a violência inorgânica. Como sabemos, ela é dispersa embaixo, de modo a justificar o apoio das classes trabalhadoras à ideologia da segurança, como mostrava Florestan Fernandes num texto seminal chamado Nos marcos da violência.
Todavia, ela é concentrada no topo e subdividida em algumas corporações especializadas no seu uso funcional para a reprodução da ordem burguesa: a polícia, as forças armadas e os órgãos de vigilância legais e ilegais.
Que tipo de violência realmente incomoda os porta-vozes das classes dominantes? Os tipos disfuncionais. São eles: a contra-violência dos protestos das classes subalternas quando ultrapassam os “limites” e a violência revolucionária. Estamos longe desta, portanto é a simples autodefesa dos movimentos das ruas que se torna um problema para a ordem.
Para a direita, toda violência permitida deve vir de cima e de maneira concentrada. Toda violência tolerada deve vir de baixo desde que de maneira desorganizada.
O que choca é o fato de grupos de jovens se organizarem para proteger os manifestantes desarmados, resistindo à violência e à identificação policial com as “armas” que as ruas sempre forneceram: paus, pedras, estilingues, bolinhas de gude, vinagre, keffiyeh palestino para cobrir o rosto, escudos, tocas, máscaras, casacos e calças jeans resistentes a arranhões, lixeiras arrancadas, mastros de bandeira de caibro (e não de PVC), miguelitos, coquetéis de garrafas plásticas com busca-pé de pavio e a simulação de uma “guerra de movimento”: desaparecer e aparecer em outro local para confundir e dividir a repressão. Cada geração reaprende que a pressão é uma dada força sobre determinada área: basta aumentar a zona de cobertura que o contingente de repressão se rarefaz.
Evidentemente a polícia sabe disso tudo, mas o seu contingente é limitado pelas liberdades democráticas conquistadas nos anos 1980 e pela difusão de imagens de desmandos policiais em tempo real via telefones móveis. A “publicidade” das lutas é que garante o sucesso das “armas” de rua.
No Brasil vivemos um descompasso entre a dinâmica da economia capitalista do centro e o funcionamento daquilo que Carlos Marighella denominava “democracia racionada”. A forma desta democracia é a rotinização da violência burguesa e a condenação perene da autodefesa dos que lutam.
O que os protestos do Movimento Passe Livre conquistaram não pode ser perdido e sim aprofundado. Trata-se da absorção construtiva da violência organizada dos trabalhadores, dos jovens e inconformados na construção de uma democracia anticapitalista.
Não é justo que o povo tenha medo da polícia. E que a polícia continue a ter o papel que lhe parece natural: o poder de vida e morte de pobres e pretos. É preciso ensinar respeito à polícia. Pela primeira vez na história recente do país ela experimentou o medo das multidões.
* Até meados dos anos 1990 somente pessoas de classe média tinham telefone fixo em casa, pois as linhas eram compradas e caras. Não existiam telefones móveis.
Lincoln Secco é professor de História Contemporânea da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras da USP
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Comentários
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Edgar Rocha
Partindo das premissas adotadas pelo autor, o texto pode ser considerado coerente e muito bem construído. Mas, há um risco: quando o autor afirma que “Atacam por vezes o bem público. Além disso, as manifestações são infestadas por grupelhos fascistas e policiais infiltrados”, fica clara a insuficiência de componentes que permitam afirmar com certeza o real caráter destas manifestações. Com isto, desculpar-se por ter apoiado algo que pode delinear-se como um movimento autoritário de extrema direita no futuro não será suficiente para contrapor-se aos resultados desastrosos, caso esta tendência se confirme. Por outro lado, há uma premissa que, embora me pareça muito apropriada para a compreensão do contexto sócio-político destas manifestações, creio que mereça ser melhor aprofundada. Falo da afirmação de que “uma adequada quantidade de violência é inerente ao regime de classes. O que incomoda os de cima não é a violência inorgânica. Como sabemos, ela é dispersa embaixo, de modo a justificar o apoio das classes trabalhadoras à ideologia da segurança”. Isto porque, antes deve-se considerar a ausência e não-legitimação das representações tradicionais como partidos, movimentos e sindicatos, associados pelo movimento ao sistema, como agentes diretos dos problemas fomentam as manifestações. Isto é uma postura voluntária e capital no entendimento da ação dos coletivos que organizaram, conclamaram e agiram no seio das ações reivindicatórias, sejam elas pacíficas ou depredatórias (negando aqui o termo “violentas”, como sugere o autor). Faço esta correlação entre a afirmação do Florestan Fernandes e o exclusivismo dos coletivos porque entendo que, historicamente, a ação destas representações políticas embasadas na ação social sempre foram vistas como o caminho para superar esta tensão entre o poder impositivo do estado e o poder da organização popular. Alguns podem entendê-las como “domesticadas” pelo sistema (e o foram em certa medida), mas não se pode negar que a legitimidade destes instrumentos de representação política foram em suma, fruto de conquistas, de lutas e de muita resistência. Resistência esta que partiu justamente da premissa de que atritos inerentes a luta de classes podem ser resolvidos dentro do sistema democrático e na mais absoluta ordem (entendo por ordem o direito à livre manifestação de ideias, ao direito de manifestar-se publicamente e ao direito de greve, entre outros). Enfim, se esta garotada hoje quebra vidro de banco, para o trânsito, vai pra rua e faz aquele estardalhaço gigantesco, podendo exigir a manutenção deste direito e denunciar as ações autoritárias de um Estado que age à revelia da lei, isto é uma conquista justamente da enorme parcela da sociedade que eles preteriram dos movimentos, bem como de um amplo setor da sociedade que, ao contrário de simplesmente agir em espasmos contra violência do sistema, esperam na verdade uma ação institucional e um movimento dentro dos limites estabelecidos do Estado de direito, que, entre outras coisas, inibe atos como depredação do bem público, desrespeito aos direitos individuais e manutenção da segurança do cidadão como um todo. Afinal, como esperar tolerância a um movimento em que todo mundo tem de sair correndo de dentro de ônibus porque este vai ser queimado, ou correr na rua e se esconder porque tem maluco de todo jeito neste movimento e pode sobrar pra você (não só pela ação da polícia, diga-se)? E nisto, creio que o autor estabelece aí uma certa confusão entre a repressão aos movimentos (que o cidadão comum reconhece como ilegítima) e a ação facilmente definida como criminosa. O fato da sociedade conferir ao Estado o direito de uso de repressão, não pressupõe o direito ao abuso de seus agentes, senão, espera-se apenas que este seja reflexo do anseio maior de manutenção dos direitos e da lei. E aí ele confunde, ao citar o menino revoltado que teve o pai morto pela polícia e a ação violenta da polícia na periferia, ação esta que o autor reconhece como amparada pela opinião pública e desejada pelo cidadão comum. Creio que seja isto um equívoco e uma injustiça que pulveriza a responsabilidade pelo caráter violento dos agentes do Estado, imobilizando a ação social contra a violência e desestimulando uma discussão mais séria sobre o assunto (coisa que não é interessante para os setores autoritários que comandam este país e que formam opinião: mídia PIG, Governos como o do PSDB, intelectuais que parasitam este sistema e ajudam a mantê-lo de pé). Já fiz esta crítica em posts anteriores como o do Genivaldo Neiva (o mais recente). Concluindo, se este professor pretende de fato defender a prática dos black blocs e das ações destes movimentos, deve tomar cuidado. Responsabilidade e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Nem a ele, nem ao país.
Urbano
Vandalismo só mesmo com os da oposição ao Brasil, que possuem know-how pra dar e vender. A privataria foi o maior de todos os vandalismos perpetrados por eles. Afinal de contas, usurpar o que pertence a milhões de pessoas e passar adiante apenas pelo valor da comissão, uma vez que o bem valeria, quando nada, cinquentas vezes mais.
José Luiz Gomes: Polícia de Pernambuco próibe máscaras em protestos – Viomundo – O que você não vê na mídia
[…] Agora, quando a violência das classes subalternas ultrapassa os limites “impostos”, constituindo-se em violência disfuncional, dessas que depõem contra a ordem estabelecida, aí sim as coisas mudam completamente de configuração, taxando-se de vandalismo tudo aquilo que se contrapõe à ordem burguesa, como afirma o professor Lincoln Secco em brilhante artigo publicado no Viomundo. […]
Fabio Passos
Muito interessante:
Emma fala sobre Black Bloc, VEJA e o OcupaCabral – #MídiaNINJA
http://www.youtube.com/watch?v=jsg_VkE9Zmo
José X.
Tá bom, então estamos combinados, “parece” vandalismo, mas não é vandalismo…Ah sim, e quem vai lucrar com isso na época das eleições vai ser a extrema esquerda, essa que diz que “vandalismo não é vandalismo”, não é mesmo ? Tá bom, agora conta a próxima.
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assalariado.
Por mais que se fale que tenha P2 nas passeatas, também não da para esconder que o povo nas ruas é quem vai ser o agente transformador da história da luta de classes no Brasil e dos rumos a qual as esquerdas (precisamos) assumir. Claro, com a devida pauta de esquerda. Aí é que o bicho pega, devido que, a social democracia petista e agregados ficaram viciados em ficar de 4 para os donos do capital, suas armadilhas ideológicas nas entranhas do Estado burguês e optou em fazer aliança com os parasitas do capital. Sim, as manifestações irão voltar e percebo, assim quando o internauta Júlio Silveira escreve: “Acho que o problemas dos chamados “vândalos” é o foco.”
Realmente, qual é o melhor endereço para que comecemos a encurralar a (HEGEMONIA) burguesa nos parlamentos, em seus três níveis ( municipal, estadual e federal). Não é irmos todos bater portas do ninho, onde a burguesia se camufla, se esconde pra nos impor sua ditadura dos lucros e suas vontades ideológicas estupradoras da sociedade e do Estado? como classe exploradora dos assalariados e do povo nação a qual chamam de “Estado de Direito”.
Não menos importante é (NÓS) das esquerdas começarmos (para ontem), nos organizarmos para tentar no mínimo (em 2014), fazer um bloco forte de esquerda nas bancadas do congresso nacional. Embora, não tenho ilusões política de que a burguesia capitalista (se um dia), perder a hegemonia no parlamento, digo, (ficar em minoria) jamais jogarão a toalha da derrota ideológica no chão da história da luta de classes. Muito pelo contrário, se desesperarão e, vai saber o resultado desse desespero. Estamos atentos, o capital quer brincar de democracia? Vamos que vamos!
Rumo ao Socialismo.
Matheus
Ótimo artigo. Não aguentava mais governistas teorizando conspirações universais contra a sua Querida Líder.
Julio Silveira
Acho que o problemas dos chamados “vândalos” é o foco.
Tenho visto desde sempre algo que só posso atribuir a ignorância coletiva, que vem a ser a maneira como os cidadãos insatisfeitos descarregam suas frustrações, a meu ver no endereço errado.
Atrasa o trem da central, a cidadania depreda ou quebra o trem, diminuindo ainda mais suas opções de transporte. Há irritação com a administração publica fraudulenta e insensível, a cidadania promove quebra-quebra em propriedades cujos donos também são vitimas da mesma laia de maus administradores locais, ou o patrimônio publico que os próprios irão ter de utilizar mais a frente. Nesse interim, Louvei o dia em que assisti a cidadania carioca, promover aquele quebra-quebra na Assembleia Legislativa local, ali me pareceu terem ajustado a pontaria, e apesar de contrariar toda a civilidade, diariamente, culturalmente, ensinada pelos nossos delegados culturais, foram precisos no recado. Os responsáveis por nosso alto nível de colonismo e conformismo, nossa mídia corporativa logico manifestou-se com o horror de lordes ingleses, que gostam de parecer ser, em publico. Mas na calada sabemos que eles fazem parte desse convescote de beneficiários exclusivos, que tem feito do País um pátria de arraigada insensibilidade social.
Por isso, tudo a ver, urge que a cidadania pare para pensar, deixando de agir contra seus próprios interesses, que passe a agir na origem das causas de seus problemas. Talvez, e somente talvez, no susto, os responsáveis passem a acreditar que existe alma atrás dos corpos humanos de nossa cidadania, passando a considerar isso no futuro, já que no presente são tão inconsequentemente desrespeitosos.
Leo V
Perfeito.
killimanjaro
Jóia
Ted Tarantula
Oia, foi jóia
Mas agora é miçanga
Se tem pano pra manga
Orangotanga vá ou eu vou
Ja, ja jawohl, mein herr
Ja, ja jawohl, mein herr
Olha, foi jóia
Mas agora é miçanga
Se tem pano pra manga
Orangotanga vá ou eu vou
Oui, oui, d’accord, monsieur
Oui, oui, d’accord, monsieur
Olha, foi jóia
Mas agora é miçanga
Se tem pano pra manga
Orangotanga vá ou eu vou
Já, já, já vou, mané
Já, já, já vou, mané
Wladimir Pomar: A quem interessa a baderna nos protestos de rua? – Viomundo – O que você não vê na mídia
[…] Lincoln Secco: A “publicidade” das lutas é que garante o sucesso das “armas” de rua […]
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