Paulo Otto: Reflexões sobre fichas políticas de funcionários da Petrobras

Tempo de leitura: 7 min

Arquivos da Petrobras mostram como ditadura atingiu-a

Direito à verdade e à memória: reflexões sobre os documentos da antiga DIVIN da Petrobras

por Paulo Otto von Sperling

“Já não podemos nos dar o luxo de extrair aquilo que foi bom no passado e simplesmente chamá-lo de nossa herança, deixar de lado o mau e simplesmente considerá-lo um peso morto, que o tempo, por si mesmo, relegará ao esquecimento.”

Hannah Arendt [1]

As palavras da filósofa alemã fazem parte dos primeiros esforços de compreensão da barbárie que assolou a Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Hannah Arendt sublinha o papel da memória, sempre múltipla, para a reestruturação das sociedades democráticas e pluralistas.

Isso porque, ao lado da violência, a subtração da palavra constitui uma das principais características dos governos autoritários. Em contraponto, a lembrança, expressa em diversas formas de representação, impõe-se como uma das possíveis repostas das vítimas desses regimes.

No Brasil, o direito fundamental à memória e à verdade insere-se no debate sobre as sistemáticas violações de direitos humanos perpetradas entre 1964 e 1985 pela ditadura militar. Desde a sanção presidencial da Lei 12.528/2011, que criou a Comissão Nacional da Verdade, o tema ganhou força e passou a ocupar algum espaço na grande imprensa, mais interessada em apontar previamente o fracasso da Comissão.

Entretanto, alguns resultados desse trabalho de construção da memória já começam a aparecer, destacando-se a reunião de importantes documentos sobre o período.

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Em maio de 2013, com o objetivo de colaborar com esclarecimento dos fatos pretéritos, a Petrobras entregou ao Arquivo Nacional o acervo de investigações políticas da sua antiga Divisão de Informações (DIVIN), unidade da Companhia responsável por investigar a orientação política e social de seus empregados, em convergência com os órgãos de repressão.

O material, já reconhecido pelo Arquivo Nacional, reúne 426 rolos de microfilmes, que guardam 131.277 fichas de controle resultantes de “investigação político-social” sobre os empregados da Companhia.

Nesses prontuários, produzidos entre 1962 e 1992, além de dados pessoais e profissionais, constam anotações sobre vinculação política, situação econômica e resultados de consulta a órgãos de informação nos estados. Há também documentos avulsos e encadernados, como relatórios de comissão de sindicância, inquéritos administrativos, entre outros.

A própria existência desse acervo surpreendeu grande parte da força de trabalho da Petrobras, que desconhecia essa parte da história da Companhia. A localização e a posterior disponibilidade desses documentos, até então esquecidos, só foram possíveis em virtude das leis 12.527 e 12.528, ambas de 2011.

Primeiramente, a Comissão Nacional da Verdade solicitou que a Companhia respondesse sobre a existência de vestígios da ditadura brasileira. De forma complementar, após a localização das fichas de investigação, os interessados, com base na Lei de Acesso à Informação, começaram a perguntar sobre a existência de registros sobre si mesmos ou familiares que trabalharam na Petrobras.

Para facilitar o acesso aos interessados, o acervo documental foi entregue ao Arquivo Nacional, o que facilitará a consulta de pesquisadores, jornalistas e cidadãos em geral.

A iniciativa soma-se aos esforços da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, que publicou em 2007 o imprescindível livro Direito à Memória e à Verdade, consolidando o trabalho de 11 anos da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Igualmente fundamental para combater o esquecimento da barbárie foi o relatório Brasil: Nunca Mais, coordenado pela arquidiocese de São Paulo.

Predominou, no Brasil, uma política de liberação parcial dos documentos, quando não de eliminação dos vestígios, principalmente dos papéis do Centro de Informações do Exército, da Marinha e da Aeronáutica (respectivamente, CIE, CENIMAR e CISA). De encontro às sucessivas leis de gestão documental, decretadas no sentido de garantir que documentos secretos do governo não seriam disponibilizados no Arquivo Nacional, a Lei de Acesso à Informação – LAI (Lei 12.527/2011) e a Lei 12.528/2011 permitem que a transparência democrática finalmente se sobreponha à escuridão dos porões ditatoriais.

É notório que as violações dos direitos humanos ainda hoje dividem profundamente as sociedades do cone sul. [2] Argentina e Chile trilharam os seus próprios caminhos, não sem contradições e dificuldades.

Na Argentina, tão logo assumiu a presidência, em 1983, Raúl Alfonsín implementou uma política com o propósito de processar todos aqueles que cometeram crimes contra seus cidadãos, decretando a formação da Comisión nacional sobre la desaparición de personas (Conadep), encarregada de esclarecer o destino das vítimas.

A Comissão produziu um documentário transmitido a todo o país pela televisão, com depoimentos de sobreviventes e familiares dos desaparecidos, além de um relatório de 50 mil páginas que detalhava os nomes de 1.351 militares denunciados como autores de graves violações aos direitos humanos. [3]

Ao lado da ação governamental, a contínua mobilização pela verdade e pela justiça, em torno de ONGs como as Madres de la Plaza de Mayo, pressionou o Estado pela condenação dos principais membros da junta militar entre 1976 e 1983. O julgamento que condenou o general Jorge Rafael Videla e o almirante Emílio Massera à prisão perpétua transcendeu a esfera jurídica e assumiu um significado político e social, acompanhado de perto pela opinião pública.

Em 1989, o governo de Carlos Menem concederia indulto a todos os envolvidos na Guerra Suja, a fim de reconciliar a nação e atingir a tranquilidade necessária para o livre funcionamento do mercado, conforme a agenda neoliberal adotada. [4] As leis  similares à Leia da Anistia brasileira seriam revogadas em meados de 2003, já sob a presidência de Néstor Kirchner, que empreendeu uma profunda reforma no ensino das academias militares, introduzindo cadeiras humanísticas no seu currículo, com destaque para o ensino de direitos humanos.

De forma igualmente tortuosa, os chilenos tiveram que lidar com a cisão social mais profunda do continente, que remontava à época do mandato presidencial de Salvador Allende. [5] A divisão do país, último do cone sul a se redemocratizar, foi acirrada pela repressão brutal do governo do general Augusto Pinochet. Paralelamente à privatização de empresas estatais e da previdência social, o Estado chileno organizou campos de concentração e desencadeou diversas operações que resultaram em milhares de torturados, exilados, mortos e desaparecidos.

O governo Pinochet (1973-1990) terminaria após plebiscito em que a população decidiu pela não continuidade de seu mandato. Com a redemocratização do país, foi instaurada a Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación, presidida pelo ex-senador e jurista Raúl Rettig.[6]  Em que pesem os esforços dos democratas chilenos, Pinochet foi protegido, até a sua morte em 2006, pela imunidade parlamentar, uma vez que, ao deixar a presidência, assumiu o cargo de senador vitalício.

As lutas pela memória são as lutas cotidianas pelo Estado Democrático de Direito, artefato em permanente construção. A democracia, longe de ser um simples conjunto de normas, deve ser considerada uma conquista histórica. Nos países da América do Sul, a valorização da democracia passa justamente pela lembrança dos períodos de exceção, pela politização da memória. Esse liame entre memória e política emerge claramente nas palavras de Enzo Traverso:

“Uma democracia que não seja antifascista seria uma democracia amnésica, frágil, um luxo que não se podem permitir a Europa que conheceu Hitler, Mussolini e Franco e a América Latina que conheceu Pinochet e Videla.”

Se, por um lado, os crematórios e das valas comuns nazistas, os voos da operação Condor apagavam as provas dos crimes, por outro, a memória impede a concretização desses planos macabros.

O Estado brasileiro tem uma dívida com as diversas famílias e indivíduos que sofreram e ainda sofrem em virtude do arbítrio. Por essa razão, a violência perpetrada pelo Estado deve ocupar espaço relevante na agenda pública do país, impedindo que os espaços de Exceção nos Estados democráticos se alastrem.

Os documentos da antiga Divisão de Informações da Petrobras, produzidos entre 1962 e 1992, demonstram que o projeto autoritário também atingiu as instituições estatais, não existindo áreas imunes ao lapso democrático, que se espalhou inclusive a diversos setores da sociedade, do empresariado ao meio artístico.

Mais do que isso, o intervalo temporal demonstra que o Estado de Exceção inicia-se antes mesmo do golpe de 1964 e permanece além da Constituição de 1988, que inaugurou o Estado Democrático de Direito no Brasil.

A importância da Petrobras para os governos autoritários é conhecida. Não por acaso, o General Ernesto Geisel deixou a Presidência da Companhia, que ocupara entre 1969 e 1973, para ser presidente da República entre 1974 e 1979.

Além disso, não se pode esquecer que os progressos da Companhia, essenciais para o desenvolvimento do Brasil, também serviram de propaganda para o ufanismo ditatorial.

Por outro lado, as crises do petróleo provocadas pela OPEP, respectivamente em 1973 e 1979, colocariam em xeque o modelo adotado pelos tecnocratas que dirigiam as políticas econômicas na década de 70 e apontariam para a necessidade de trilhar novos caminhos empresariais.

A partir de agora, com a disponibilidade do acervo da DIVIN no Arquivo Nacional, este capítulo da história poderá ser mais conhecido pela sociedade brasileira, servindo de lição àqueles que, desacostumados com as diferenças, com a polifonia de vozes e projetos políticos, combatem a nossa recente democracia. Ao enfrentar o passado, estaremos mais preparados para construir um futuro que aprofunde os projetos igualitários e amplie as liberdades.

Paulo Otto von Sperling é Ouvidor Geral da Petrobras

[1] ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo, p. 13.

[2]  Uma análise abrangente do tema pode ser encontrada no livro de RONIGER, Luis; SNAJDER, Mario. O legado de violações dos direitos humanos no cone sul. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2004.

[3] O resumo do relatório foi publicado pela Editorial Universitária de Buenos Aires com o título de Nunca Más. O livro transformou-se no maior best-seller até então publicado na Argentina.

[4] Luis Roninger e Mario Snajder afirmam que “Menem sacrificou o princípio da primazia da lei pelo princípio da primazia do governo civil pelas Forças Armadas.” Op. Cit., p. 87. O presidente negociou o indulto em troca da reforma dessas instituições, inserida no seu programa de redução do Estado.

[5] Na oposição ao governo de esquerda, destaca-se o movimento Pátria e Liberdade, que assumia publicamente um programa de contornos fascista e realizava manifestações violentas, chegando inclusive a praticar atentados terroristas. Cf. AGGIO, Alberto. Democracia e socialismo: a experiência chilena. São Paulo: Editora da UNESP, 1993. Ver ainda o testemunho de GARCÉS, Joan. Allende e as armas da política. São Paulo: Página Aberta, 1993.

[6] RONIGER, Luis; SNAJDER, Mario. Op. Cit., pp. 114-115. O presidente Patrício Aylwin reafirmou diversas vezes que a verdade é o fundamento da vida social e as mentiras são incompatíveis com a paz social.  Na década de 90, para efetuar a transição do apartheid, a África do Sul também instituiu a Comissão de Reconciliação e Verdade.

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Comentários

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Bernardino

UM FIASCO à REPPERCUSSAO destes comentarios do sr OUVIDOR,haja vista a quantidade de comentarios aqui postados ate o momento.TIPO do assunto que postado pra encobrir os LEILOES do Petroleo que se avizinha em outubro e ajudar a diretoria da pETROBRAS QUE faz o jogo das multinacionais do petroleo e dos esquerdinhas que apoiam o governicho da d DILMA,antipatriota e fraca como chefe da NAÇAO!!

SR AZENHA,favor nao fazer o Jogo dos CHAPAS-BRancas e publique minhas consideraçoes ao artigo em QUESTAO!!

jair Brega Marcatti

Parabens Ao Ouvidor Geral de Petrobras pelo excelente texto publicado

pelo Sr. PAULO OTTO.

Gostaria de saber como obtenho minha ficha politica elaborada pelo “DIVIN”.

Funcionário da Petrobas desde 1955 lotado na RPBC.Em 1961 como Diretor do Sindicato, assinei um documento da categoria prestando nossa solidariedade
e dispostos a participar da GREVE GERAL na Cidade de Santos SP.

Por esse ato fui enquadrado na lei de Segurança Nacional.

E passei a responder ão processo Criminal.

Gostaria de saber como obter minha FICHA POLITICA do DIVIN .

Atenciosamente,

Jair Marcatti

Mauro Assis

Será que virão aí mais 134.000 candidatos a uma bolsa-ditadura?

Joseph Hill

Isso também ocorreu em outra empresa estatal, a Telebrás. Alguns dos que eram responsáveis pelo levantamento da ficha política dos funcionários daquela empresa hoje encontram-se trabalhando na Anatel. Quando é que a comissão da verdade vai investigar a limpeza ideológica ocorrida na antiga Telebrás?

Julio Silveira

Ao olhar essa multidão fico pensando, a Globo daria um jeito de desmerecer a intenção rebaixando o assunto ao numero de cidadãos que fazem a manifestação.
Muito provavelmente diriam ser meia dúzia de desajustados.
É extremamente interessante perceber como usam a mídia para tirar assuntos inconvenientes de foco utilizando as estratagemas do diversionismo. Como ontem quando vi uma repórter da emissora, querendo dar uma impressão politicamente correta ao falar das passeatas de protesto que pedia solução para o desaparecimento do pedreiro Amarildo que desapareceu na Rocinha, foi traída pela insensibilidade, talvez cultural na emissora, ao dizer que a passeata atrapalhava o transito na avenida onde ocorria em São Paulo.
É assim, mexendo com o egoísmo das pessoas, com o individualismo que eles vão construindo suas paredes de insensibilidade social.
E Brasil, esse que tem tudo para ser um grande país naufraga no individualismo e no egoísmo construído tijolo a tijolo que só beneficia essa gente.

Urbano

Tudo isso nos mostra a grande sapiência do verso “que medo você tem de nós, olha aí” do exímio poeta Paulo César Pinheiro.

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