por Ivo Pugnaloni, na revista GTD online
Quinze dias antes de o novo presidente do Paraguai ameaçar deixar de “ceder ao Brasil” a parte da energia de Itaipu que seu país não consome, a Carta de São Paulo foi entregue ao chefe do gabinete pessoal da presidente Dilma Rousseff, Gilles Carriconde, através de seu chefe de gabinete, Álvaro Baggio.
O documento, que resultou do IV Encontro de Investidores em Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH 2012) foi assinado por mais de 160 empresas – investidoras em energias renováveis, empresários da construção civil, da indústria de equipamentos e consultorias de projetos de engenharia e estudos ambientais. O texto apresenta sugestões para viabilizar centenas de pequenos empreendimentos com praticamente nenhum alagamento e gerar energia renovável, limpa e barata.
Há mais de 7.000 MW – equivalentes ao que o Brasil compra de Itaipu – esperando, muitas vezes, apenas que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) cumpra seus próprios regulamentos e aplique o critério de seleção previsto na resolução 395/98, que fixa condições para análise dos projetos básicos apresentados pelos investidores em caso da existência de mais de um interessado.
Uma disputa muito frequente, aliás, quando se trata de PCHs – que, por terem menos do que 30 MW e inundação limitada a 3 km2 , são dispensadas por lei de ir a leilão, sendo suas autorizações outorgadas sem licitação pela diretoria colegiada do órgão regulador.
Não acreditemos que declarações das atuais autoridades paraguaias, a alguns meses das novas eleições, possam invalidar do dia para a noite acordos internacionais firmados há 36 anos com aquele país. Mas, sem dúvida, somos vulneráveis a contingências dessa natureza, uma vez que 18% da energia do Brasil são gerados por uma única usina: Itaipu.
Ricos em energias renováveis, pobres em informação
A Carta de São Paulo é um importante alerta e resume um conjunto de obstáculos que impedem a construção de centrais hidrelétricas com pequena inundação e baixo impacto ambiental. Em consequência disso, continuamos a depender de grandes empreendimentos e de usinas movidas a derivados de petróleo.
Ao contrário de nos ameaçar, o discurso do novo governante paraguaio pode servir para que a sociedade brasileira acorde para o que está sendo feito, já há algum tempo, por governos e empresas concorrentes do nosso País e dos nossos produtos no mercado internacional.
Um exemplo é a campanha publicitária contra a energia hidrelétrica no Brasil. Outra é o financiamento que grandes companhias petroleiras estrangeiras dão a entidades que se especializam em combater radicalmente essas hidrelétricas, mas que calam-se diante da implantação de usinas térmicas, movidas a combustíveis fósseis. A recente negativa da Agência Internacional de Energia Renovável (Irena) em reconhecer as hidrelétricas como fonte renovável é prova de quanto nossa riqueza hídrica é não só temida, como invejada.
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Os estudos recentes elaborados pela FIESP e pela FIRJAN sobre os impactos negativos das tarifas de energia à competitividade de nossos produtos comprovam o que dissemos acima.
Temos, no potencial hidráulico nacional, uma riqueza completamente compatível com a conservação da biodiversidade, que se aproveita com sabedoria e respeito à avançada legislação ambiental de que dispomos. E traz enormes vantagens competitivas, podendo abrir novos mercados para nossos produtos industriais, gerando riqueza, exportações, emprego e renda.
A via crucis do investidor em PCHs
Depois de empenhar somas consideráveis na elaboração de projetos e no licenciamento ambiental e obter finalmente uma autorização para geração, o investidor em pequenas hidrelétricas chega à porta do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), onde precisa apresentar como garantia um contrato de venda de energia com pelo menos quatro anos de duração.
E aqui começa o principal obstáculo. Graças ao acionamento desnecessário de usinas térmicas a carvão, a óleo diesel, a gás e óleo combustível, que estão paradas e são postas a funcionar pelo Operador Nacional do Sistema (ONS) fora da ordem de mérito, temos o absurdo dos absurdos, pois a energia de fonte hidráulica “fica sobrando” no mercado.
Essa “sobra do que está faltando” é justificada pela necessidade de economizar água dos reservatórios das grandes usinas para reduzir, sabe-se lá por quê, a zero absoluto, o risco de termos um novo “apagão”, como em 2001. Nada mais artificial, então, que essa “sobra”, que só serve mesmo para deixar os investidores em PCHs sem contratos e, portanto, sem garantias para oferecer ao BNDES. É impossível, afinal, concorrer com o preço da energia que sobra no curtíssimo prazo, vendida pelo Preço de Liquidação de Diferenças (PLD) – que através dessa manobra contábil resulta irrisório, caindo a até R$ 18,00 por MWh.
Além disso, com a manobra, estimula-se a especulação no curto prazo com uma energia hidráulica que não existe, porque não sobra; no entanto, o sistema adotado para despacho das térmicas faz assim parecer, engordando os lucros de seus felizes proprietários. É desse jeito que o Brasil tem projetos que têm água, têm quedas, têm financiamento disponibilizado pelo governo através do BNDES, mas não têm contratos de venda da energia para garantir financiamento dos recursos. E as pequenas hidrelétricas, com pequeno alagamento, pequeno investimento, pequeno ou nenhum impacto ambiental, não conseguem sair do papel.
A especulação com a energia que “sobra”, mas está faltando
Segundo o ONS, apenas em 2011, quase R$1 bilhão foi gasto com energia de fonte térmica, cara, poluente e não renovável. Esse valor foi pago a mais pelos 67 milhões de consumidores residenciais, industriais e comerciais do Brasil para economizar água dos reservatórios, que já são insuficientes para armazenar o necessário.
É essa “sobra artificial” que está fazendo rir à toa os donos das termelétricas que de outra forma ficariam paradas. Riem também os grandes consumidores, que compram em contratos de curto prazo mês a mês, por R$20,00 o MWh, essa “sobra” artificial provocada pelo uso inadequado e injustificado de combustíveis fósseis, pagos por todos os consumidores brasileiros. O que contribui não só para elevar as tarifas finais aos consumidores, mas para elevar os custos de produção de nossas indústrias e diminuir nossa competitividade.
Daí resulta que vários economistas e entidades como a FIESP e a FIRJAN apontem para as tarifas de energia como causa das sucessivas pioras no desempenho de nossa balança comercial. Energia cara é menos exportação, mais importação, menos renda, menos emprego para os brasileiros e menos crescimento para a nossa produção.
O pior é que 99,9% dos consumidores nem ficaram sabendo desse bilhão a mais que pagaram, pois graças a uma manobra contábil, esse gasto extra incluído nas faturas de 67 milhões de unidades consumidoras foi retirado da classificação de custos de “geração” e passado para a classificação de “encargos do sistema”.
Olhar para a frente é remover “gargalos”
É preciso olhar para a frente, remover os “gargalos” que nos impedem de ter tranquilidade para crescer de forma consistente e sustentável. Temos 7.000 MW em projetos hidráulicos, a maioria de pequeno porte, para construir. E o que o governo precisa fazer para que isso aconteça?
Em primeiro lugar é contarmos, na administração pública, com agilidade, segurança jurídica e servidores em quantidade suficiente. Bem remunerados, com uma carreira estável, satisfeitos em estarem fazendo seu trabalho com consciência técnica, sem pressões, livres de precisarem perseguir ou favorecer ninguém.
Ter bons dirigentes já não é o bastante, pois é preciso que todos estejam motivados e que a equipe seja dimensionada para a tarefa, e não para o mínimo possível. Para os servidores da Aneel, por exemplo, a tarefa é imensa: manter operando e crescendo, de preferência com energia elétrica de fonte renovável, a sexta maior economia do mundo.
É contraproducente fazer “contenção de despesas” com o pessoal na Aneel, no IBAMA, no ONS e em outros órgãos do setor elétrico, pois isso prejudica o esforço do governo federal para destravar todas as amarras que prendem nosso País ao atraso e superar a crise.
Imaginemos se essa “economia com pessoal” fosse feita na Petrobras. Será que ela seria o que é hoje se seus funcionários não tivessem estímulo para nela permanecer e apostar suas vidas profissionais?
É preciso considerar ainda que, ao contrário da Petrobras, a Aneel não faz investimentos públicos nos empreendimentos de geração. Mas, dependendo de como transcorre sua atuação, a agência pode estimular ou dificultar muito os investimentos privados no setor elétrico.
Precisamos de uma Aneel ágil, equipada, com recursos humanos para permitir ao Brasil gerar energia barata para enfrentar a crise econômica mundial e aproveitar as oportunidades. Ganharemos novos mercados se nossos custos forem competitivos.
O governo federal precisa encarar a realidade de frente e admitir que com tão pouco pessoal especializado, nossa agência reguladora de energia nunca conseguirá fazer frente às necessidades de crescimento da sexta maior economia do mundo.
É muito trabalho para pouca gente. Imagine o leitor que a agência, com apenas 270 funcionários, tem de analisar novos projetos de hidrelétricas, eólicas, biomassa, solares e, ao mesmo tempo, cuidar de um setor onde atuam 63 distribuidoras, atendendo 67 milhões de consumidores.
Da figura 2, podemos observar que na ANAC são 2.500 funcionários. Na Anatel, são 1400. Por que a Aneel precisa ter só 500, dos quais só 280 de nível superior? Por que a Aneel não tem escritórios regionais, como as outras agências, para atender também a área de geração? Se tivéssemos uma Aneel ágil, descentralizada e equipada, os projetos não levariam os atuais seis anos para serem analisados. Analisar projetos de engenharia e de meio ambiente é atividade de grande responsabilidade e consome tempo quase igual, seja para as grandes ou pequenas usinas.
Se tivéssemos mais agilidade na Aneel, não precisaríamos tanto das grandes usinas. Ao contrário, com pequenos empreendimentos, com pequenos reservatórios a fio d`água, o impacto seria distribuído e quase sempre benéfico, pois nas margens de cada reservatório é obrigatória a criação de áreas de preservação permanente que combatem a erosão, o assoreamento e servem de corredores da biodiversidade e refúgio frente à expansão da agropecuária.
Além disso, pequenos reservatórios e vertedouros contribuem muito para a retirada de detritos do rio e para a qualidade da água, que passa a ser obrigatoriamente controlada pelo empreendedor, tal como a mata ao seu redor.
A falta de pessoal suficiente na Aneel faz com que seus dirigentes se vejam forçados a dar preferência às grandes usinas, construídas com bilhões de reais do poder público. E retarda a análise dos pequenos empreendimentos, que empregariam apenas milhões, mas da iniciativa privada, liberando o Estado para outros investimentos em saúde, educação, saneamento, etc.
São milhões de reais que já estão disponíveis, espalhados por todo o território nacional, oriundos de outros setores da economia – como o agronegócio, a construção civil, os fundos de pensão – e que poderiam ser usados na geração de energia.
Em 2009, houve um concurso para a Aneel. Gerar, transmitir e distribuir energia renovável é fundamental para a tranquilidade do país. Por que não chamar os classificados, como aconteceu no “apagão aéreo”, quando faltavam controladores de tráfego?
Licenciamentos duplos, triplos…
Não bastassem já tantas dificuldades, de 2008 para cá, a Aneel, contrariando seus próprios regulamentos, passou a exigir, só para as pequenas centrais hidrelétricas, algo inacreditável: que seu licenciamento ambiental seja feito em dobro, ou em triplo.
Significa que se mais de um concorrente estiverem interessados em implantar uma PCH em um mesmo local, todos os empreendedores na disputa pela outorga são obrigados a apresentar licenciamento ambiental. Só então, quando todos tiverem as licenças, os projetos poderão ser submetidos à análise.
Os órgãos ambientais, que já têm pouca estrutura, recusam-se a atender esse absurdo, pois acham que analisar mais de um projeto é jogar fora dinheiro público e dos empreendedores. Imagine! Se um licenciamento já é difícil, o que pensar de dois, três…
Internamente, esse obstáculo, que contraria a resolução 395/98, é explicado como forma de priorizar a análise dos projetos dos bons empreendedores, “separar o joio do trigo”, selecionando aqueles investidores que “realmente podem construir” dos que “não têm dinheiro” e que estariam interessados em apresentar projetos apenas para depois vender as autorizações de geração.
Além disso, agindo dessa forma, a culpa pelos atrasos cai na questão ambiental e não na falta de quadros suficientes na própria Aneel. O problema é que, se foi essa a justificativa, a tal exigência de duplo, triplo licenciamento, ajuda escandalosamente exatamente os especuladores.
Afinal, agora os especuladores só entram na disputa para exigir dinheiro ou vantagens dos demais concorrentes em troca de desistir de participar. Com essa exigência absurda, eles nem precisam mais gastar com bons projetos e licenciamento ambiental para travar todos os demais. Basta não fazerem o licenciamento.
Um verdadeiro absurdo que esperamos que chegue aos ouvidos atentos da presidente Dilma através da nossa Carta de São Paulo. Afinal, quase todos os desenvolvedores de bons projetos de PCHs recebem, semanalmente, muitos investidores de porte, bancos e fundos de pensão, interessados em investir, mas que exigem uma autorização de geração da Aneel para decidir participar de um projeto. É difícil acreditar que na agência reguladora encarregada de promover a utilização da energia dos potenciais hidráulicos nacionais alguém tenha interesse em criar novos obstáculos aos investimentos, além dos que já existem.
E, para lidar com especuladores de PCHs, nada seria melhor do que cassar licenças dos que, após autorizados, não as constroem em tempo hábil sem justificativa.
Outras reivindicações importantes
Entre as principais reivindicações da Carta de São Paulo estão ainda outros itens importantíssimos, como a isonomia tributária e de financiamento das PCHs em comparação com as usinas eólicas; mais celeridade na seleção e análise de projetos e licenciamento; menos uso desnecessário de termelétricas que incidem artificialmente sobre o preço das sobras de energia.
Também pedem os investidores que a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ao fixar seus preços para os leilões, considere a complementaridade das fontes eólicas e hidráulicas, além de suas particularidades regionais, estabelecendo um volume de contratação anual estratégico para garantir a sustentabilidade do setor.
Sugerimos também que a EPE promova leilões de energia separados por fonte renovável e por região, considerando, na avaliação dos preços-teto de cada modalidadet, não só os custos de geração, mas todos os benefícios e custos de cada modalidade. Inclusive quantificando os benefícios da complementaridade e da proximidade das usinas dos centros de cargas, o que exige menor uso de linhas de transmissão. Os benefícios que as PCHs trazem ao sistema elétrico e à sua confiabilidade, de forma a realmente buscar a modicidade tarifária, não podem ser confundidos, ligeira e apressadamente, com o simples preço da geração.
Ivo Pugnaloni é engenheiro eletricista, é presidente do grupo Enercons/Enerbios e ex-diretor da Copel.
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[…] um debate interessante na área. Há quem advogue pelas PCH, as pequenas centrais hidreléticas, como Ivo Pugnaloni em artigo publicado no Viomundo. Há quem diga que, ao fim e ao cabo, a energia hidrelétrica não é limpa, nem barata, como disse […]
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