Emir Sader: E se o golpe de 2005 contra Lula tivesse dado certo?

Tempo de leitura: 5 min

do blog do Emir

Um historiador inglês (Neill Ferguson, História virtual) se dedicou a pensar vias alternativas daquelas que triunfaram efetivamente na história realmente existente, como exercícios de pensamento sobre o que teria sido se não fosse. Por exemplo: e se a Alemanha de Hitler tivesse triunfado na Segunda Guerra? E se a URSS não tivesse desaparecido? E outras circunstâncias como essas.

No Brasil podemos pensar o que teria acontecido se várias tentativas de golpe militar – antes e depois da de 1964 – tivessem triunfado, o que teria acontecido com o Brasil. Um bom exercício também para entender o presente, quando as mesmas forças que protagonizaram essas tentativas no passado – as fracassadas e a vencedora de 1964 – se excitam de novo e, como toda força decadente, tratam de dar aos estertores da sua última tentativa, uma dimensão épica, que somente uma classe que não pode olhar para sua vergonhosa historia golpista, pode fazer. Juízes, jornalistas, políticos derrotados, usam os superlativos que suas pobres formas de expressão permitem, para falar “do julgamento do século”, do “maior caso de…”.

Pudessem assumir a história do Brasil como ela realmente ocorreu e ocorre, se dariam conta que o maior julgamento da nossa história teria sido o da ditadura militar – aventura da qual essas mesmas forças participaram ativamente -, que destruiu a democracia no país, violou todos os direitos humanos, em todos os planos – políticos, jurídicos, sociais, culturais, econômicos -, abriu as portas para o assalto do Estado e do país às grandes corporações nacionais e internacionais, impôs a ditadura também no plano da liberdade de expressão, prendeu, torturou, assassinou, fez desaparecer, alguns dos melhores brasileiros.

Em suma, passar a limpo essa página odiosa da nossa história – que tem as impressões digitais dos mesmos órgãos de comunicação que lideraram a ofensiva golpista de 2005 – teria sido o maior julgamento da nossa história, onde seriam réus eles mesmos, junto à alta oficialidade das FFAA, grande parte dos empresários nacionais e internacionais, entre outros.

Podemos, por exemplo, especular o que teria sido o país se tivesse triunfado o golpe contra Getúlio, em 1954. Era um movimento similar ao que triunfou uma década depois, com origem na Doutrina de Segurança Nacional, típica ideologia da guerra fria. Na Argentina, por exemplo, a queda de Peron, um ano depois do suicídio do Getúlio, introduziu o tipo de militar “gorila” (a expressão nasceu na Argentina, com o golpe de 1955), que se generalizaria a partir do golpe brasileiro.

Na Argentina, com a proscrição do peronismo, Arturo Frondizi conseguiu se eleger presidente, mas nem ele nem os presidentes ou ditadores que o sucederam – houve novo golpe em 1966, que também fracassou, como o de 1955 – conseguiram estabilizar-se, frente à oposição do peronismo, principalmente do seu ramo sindical, que tornou impossível a vida a todos os governos, até o retorno de Peron, em 1973.

No Brasil, um objetivo central do golpismo era evitar a continuidade do getulismo, expressada no JK, mas também no Jango. A famosa frase – suprassumo do golpismo – de Carlos Lacerda, de que “Juscelino não deveria ser candidato; se fosse, não deveria ganhar; se ganhasse, não deveria tomar posse; se tomasse posse, não deveria poder governar”, espelhava aquele objetivo.

Se Getúlio não tivesse apelado para o gesto radical do suicídio, para brecar a ofensiva golpista, o movimento de 1964 teria surgido uma década antes. Ao invés das eleições relativamente democráticas de 1955, teríamos tido uma ditadura militar mais ou menos similar à de 1964. As consequências teriam sido ainda mais catastróficas, porque o sacrifício do Getúlio conquistou dez anos, que o movimento popular aproveitou para se fortalecer amplamente.

Nessa década avançou não apenas a industrialização, mas também o movimento sindical e outros movimentos populares, assim como a consciência social na massa da população. Uma ditadura – ou algum regime duro, mesmo se recoberto de formas institucionais, mas que impedisse a continuidade do regime getulista – teria atuado sobre um movimento popular com muito menor capacidade de organização e de consciência social.

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Na Argentina os militares tiveram que, em prazos mais ou menos curtos, convocar novas eleições, o fizeram depois de prescrever o peronismo, a grande força política e ideológica, do campo popular argentino. No Brasil, teriam feito algo similar, castrando a democracia brasileira da vitalidade que os movimentos populares possuíam e imprimiam ao país.

De qualquer forma, grande parte dos retrocessos que a ditadura impôs ao Brasil, teriam sido antecipados por um movimento de direita que tivesse se apropriado do Estado brasileiro em 1964. Nossa história seria ainda pior do que ela foi, a partir do golpe triunfante de 1964.

Outras tentativas golpistas existiram durante o governo do Juscelino, pelo menos duas de caráter militar – por membros da Aeronáutica -, de menor monta, mas as articulações golpistas nunca deixaram de existir, de tal maneira que os antecedentes do golpe de 1964 vem da fundação da Escola Superior de Guerra, por Golbery do Couto e Silva e Humberto Castelo Branco, vindos da guerra na Itália, sob influência e patrocínio diretos dos EUA, que desembocou finalmente no golpe vitorioso de 1964, que não por acaso teve nesses dois militares seus protagonistas fundamentais.

E se nos perguntarmos o que teria sido do Brasil se o movimento de um golpe branco contra o Lula – que poderia ter sido um impeachment ou uma derrota eleitoral em 2006 – tivesse triunfado?

Se nos recordamos que o candidato da direita era o neoliberal acabado que é Alckmin, podemos imaginar os descalabros a que teria sido submetido o país. (O que torna ainda mais absurda a posição da ultra-esquerda, que se absteve ou pregou o voto nulo diante da alternativa Lula ou Alckmin.)

Só para recordar uma circunstância concreta, quando Calderon triunfou no México, de forma evidentemente fraudulenta, nas eleições presidenciais de julho de 2006, Alckmin saudou-a como o caminho que o Brasil deveria seguir.

Significaria, antes de tudo, a retomada de um Tratado de Livre Comércio com os EUA, ja que a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) tinha sido substituída por tratados bilaterais com países do continente, como o Chile, entre outros, pelos EUA, depois que o Brasil contribuiu decisivamente para enterrar a ideia de uma America Latina totalmente aderida ao livre comercio, subordinada completamente aos EUA.

Os processos de privatização que FHC não tinha conseguido completar, pela resistência do movimento popular brasileiro, seriam retomados, atingindo a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Economica, a Eletrobras, entre outras empresas sobreviventes do vendaval privatizante do governo dos tucanos.

Mas sem ir mais longe, bastaria imaginar o que teria sido o Brasil – e também a América Latina – se a crise internacional do capitalismo, iniciada em 2007 e ainda vigente, tivesse encontrado o Brasil tendo ao neoliberal duro e puro do Alckmin como presidente. Estaríamos ainda pior do que um país como a Espanha ou a Grécia ou Portugal. Estaríamos devastados pela recessão, pelo desemprego, pelos compromissos escorchantes do FMI.

Basta esse quadro realista do que estaríamos vivendo se o golpe de 2005 tivesse dado certo. O seu objetivo inicial era tentar impor uma derrota de longo prazo à esquerda, que teria fracassado com Lula, seu principal dirigente, por um prazo longo, permitindo que as forças tradicionais da direita retomassem o controle do Estado brasileiro.

O julgamento que começa esta semana é, sobretudo, o julgamento de uma tentativa frustrada de golpe branco contra um governo popular e democrático, eleito pelo voto popular e legitimado pela reeleição do Lula e pela eleição da Dilma. O povo já disse sua palavra.

Emir Sader é sociólogo e cientista, mestre em filosofia política e doutor em ciência política pela USP – Universidade de São Paulo.

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Aracy

A audiência do programa da Fátima e as vendas de jornalões e revistas, que despencaram na última década, são a sentença popular frente ao golpismo da mídia.

Gerson Carneiro

Avisem ao PIG e à Oposição que pagar com VISA é muito melhor.

Lúcia Adélia

Ótimo texto, parabéns ao grande Mestre Emir Sader. O povo brasileiro já deu o veredito ao dito maior “escândalo da história” quando reelegeu Lula e elegeu Dilma sua sucessora. Será que a mídia quer mais ou ainda precisa desenhar?

O_Brasileiro

Começa hoje a tentativa de revanche do Ali Kamel e do Roberto Civita, que não engoliram a derrota que sofreram em 2006!

Joaquim Saraiva

Amigos, que vcs gostem do ex-presidente Lula, tudo bem, eu entendo, inclusive pq também gosto, mas negar a propina paga pelo PT a parlamentares e partidos políticos em troca de apoio (mensalão), é um absurdo. A miríade de documentos produzidos nos autos da ação penal que tramita no STF é contundente, comprovam cabalmente a existência de pagamento de mesadas.
A mídia brasileira aliena? Sim, claro! Agora, será msm que o PIG é tão poderoso a ponto de comprar todas as demais instituições (PF, MPF…) e pessoas, conspirando nessa senda contra a ordem vigente? Tapar os olhos para esse descalabro, o maior escândalo político do país, é tornar-se condescendente com toda a robalheira já comprovada. Gosto muito do blog, mas, sinceramente, às vezes, sinto que ele tenta alienar tanto quanto contra a própria Globo, Veja…
VIOMUNDO, demos a César o que é de César!

    Braw

    Ahã….sei…

    Edineuza

    Meu Caro Joaquim,
    Ora, mas o que significou as denúncias de compra de voto para reeleição de FHC? mais adiante a distribuição de dinheiro a partir da corrupção instalada no governo do DF de José Roberto Arruda do DEM? E as denúncias do próprio Marcos Valério de que o modus operandi do “mensalão” teve origem na Eleição de Eduardo Azeredo-PSDB/Minas Gerais? E o Rodoanel com Paulo Preto em São Paulo, e os documentos apresentados pelo Jornalista Amaury no livro privataria tucana. E a mídia onde está que não escreve uma linha sobre isso. Me responda é esse o papel da mídia? Ora, a midia causa um tsunami porque Tifoli não se declarou sob suspeição, mas e Gilmar Dantas ops Mendes.

Horridus Bendegó

Só acredito na solução de conflitos pelo enfrentamento de seus desafios,
que aqui passa ainda por um acerto histórico.
Só erradicando essa mídia de genoma aristocrático, excludente e plutocrático.

RONALD

Se o golpe de 2005 tivesse dado certo?
O serra implantaria a ditadura e ele seria presidente eterno e fecharia o congresso(afinal temos que fazer política sem votos);
O demostenes torres seria ministro presidente do stj;
O cachoeira seria ministro das comunicações;
O virgílio seria ministro da justiça;
O fernando henrique caridoso dos estados unidos do brasil seria ministro das entragações exteriores;

trombeta

Boa análise, mas não sejamos ingênuos o golpismo está no DNA da direita brasileira e latina, sempre tentarão na ausência de um candidato consistente para derrotar a esquerda. De que lado estará o esquerdismo psol/pstu? ao lado das oligarquias?

    Verdade

    No DNA da Esquerda tb

Zezinho

Acho que o exercício seria mais interessante se a pergunta fosse: Como estaria o Brasil se Lula não tivesse amarelado e tivesse aplicado o que defendia antes de se eleger. Pelo menos ele não mexeu em nada.

silvia macedo

E o que dizer da espionagem dos órgãos de informação, durante o governo Fernando Henrique, contra setores oposicionistas de esquerda, reunidos em congressos, comícios?

Bene

Brilhante analise, professor Sader, que memoria histórica….Gostei
O que importa é o povo, vamos defender sim os partidos trabalhista, vamos defender a ideologia includente e nao as privatistas…

Fabio Passos

Se a direita bandida tivesse completado o golpe contra Lula estaríamos tão quebrados quanto a Grécia.

Ricos cada vez mais ricos.
Pobres cada vez mais pobres.

É isto o que a “elite” corrupta quer para o Brasil.

Márcio Carneiro

Chamar de tentativa de golpe o caso do mensalão mostra até onde pode chegar a impostura intelectual de uma pessoa a fim de defender suas ideologias e partidos.

Não se vai em cadeia nacional, como presidente de um país, pedir desculpas para algo que não passou de tentativa de golpe das “forças conservadoras”. O que o Lula fez foi um atestado de culpa, pode não ser da culpa dele, mas foi o atestado de culpa dos envolvidos e não adianta agora querer reescrever a história, tentando mudar o que aconteceu.

E pior. “forças conservadoras”??? Faz mais de 30 anos que o Brasil não tem “forças conservadoras”. No máximo tem adversários políticos.

    José Arnaldo

    Não tem forças conservadoras ???? kkkkkkkk Essa é boa !!! Em momento algum desses 30 anos que você se refere, essas forças deixaram de existir ou sequer diminuíram de tamanho. Muito pelo contrário. Hoje em dia, crescem como erva daninha em todos os recantos da sociedade. Proprietários rurais, redes de comunicação, grandes jornais e revistas, grupos financeiros, indústria, e, principalmente, forças armadas, sempre estiveram com o poder na sua mão, mesmo quando parecia que tinham entregue alguma coisa ao grupo político representado pelo PT. Ninguém faz nada nesse país sem ter que negociar muito ou até mesmo pedir permissão a certos grupos de poder conservadores. Pode ter a maioria que for. Nos últimos 10 anos tivemos um pouco mais de pressão sobre esses grupos pelo empoderamento da antiga oposição e pelo fracasso do modelo montado por seus gurus internacionais, e já aparece alguém para falar que acabou os conservadores. Para mim isso é sinal de conservadorismo crônico. Infelizmente, o Brasil nunca deixou de ser assim.

    Edineuza

    Eu concordo contigo Sr. José Arnaldo, só discordo de que elas não diminuiram de tamanho. Na verdade o povo brasileiro tem forçado essas forças a diminuirem de tamanho a cada eleição e vão torna-las cinzas e, é isso que eloas não aceitam e por isso agem com tanta inescrupulosidade.

    Ildefonso Murillo Seul

    O Marcio Carneiro está certo!!! Errado está o planeta!!! O post dele deve ter atravessado alguma dobra espacial e caiu aqui!!! KKKKKKKK

    Volta Marcio!!!

geniberto paiva campos

Uma análise fascinante de um período da nossa recente história politica. Caracterizada pelo incoformismo das forças conservadoras, diante da sua incapacidade congênita de ganhar o voto da grande massa trabalhadora, estigmatizada pelo brigadeiro Eduardo Gomes como o “voto dos marmiteiros”.
Sobre o julgamento do mensalão, nada a acrescentar. Trata-se de um teatrinho mal montado e mal ensaiado. Com a lamentável cumplicidade do STF, agindo até pior do juizes de primeira instância, prestando abjeta vassalagem aos designios midiáticos.

    Rossi

    Está mais pra um circo,montado(com lona e tudo)principalmente pela mídia para vender jornal e prender audiência.O STF,não percebeu,é apenas um detalhe neste espetáculo de cinismo,hipocrisia e caradurismo.Não sei como doutos e experientes advogados ministros prestam-se a este papel.

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