Bia Barbosa: Brasil forjado na ditadura representa Estado de exceção permanente
Tempo de leitura: 5 minPara professores, filósofos e defensores de direitos humanos, o golpe de 64 moldou um país de estruturas autoritárias, que garante direitos apenas para as classes proprietárias e que transformou a exceção em consenso. Em seminário realizado em São Paulo, eles afirmaram que a exceção é o novo modo de governo do capital e que o povo brasileiro vive um momento perigosíssimo de letargia. A reportagem é de Bia Barbosa.
por Bia Barbosa, em Carta Maior
SÃO PAULO – Qual a idéia de “Estado de exceção”? Na interpretação tradicional do termo, trata-se de um momento de suspensão temporária de direitos e garantias constitucionais, decretado pelas autoridades em situações de emergência nacional, ou mediante a instituição de regimes autoritários. Seu oposto seria o Estado de Direito, conduzido por um regime democrático.
Na avaliação de professores, filósofos e defensores de direitos humanos, no entanto, a existência de um Estado de exceção dentro do Estado de Direito seria exatamente a característica do Brasil atual, forjada no período da ditadura militar e que, mesmo após a redemocratização do país, não se alterou. Esta foi uma das conclusões do seminário sobre a herança da ditura brasileira nos dias de hoje, promovido pela Cooperativa Paulista de Teatro e pela Kiwi Companhia de Teatro realizado esta semana, em São Paulo.
Para o filósofo Paulo Arantes, professor aposentado do Departamento de Filosofia da USP, há um país que morreu e renasceu de outra maneira depois da ditadura, e que hoje é indiferente ao abismo que se abriu depois do golpe militar e que nunca mais se fechou.
“Que tipo de Estado e sociedade temos depois do corte feito em 64, do limiar sistêmico construído por coisas que parecem normais numa sociedade de classes, mas que não são? O fato da classe dominante brasileira poder se permitir tudo a partir da ditadura militar é algo análogo à explosão de Hiroshima. Depois que a guerra nuclear começa ela não pode mais ser desinventada. Quando, a partir de 64, a elite brasileira branca se permite molhar a mão de sangue, frequentar e financiar uma câmara de tortura, por mais bárbara que tenha sido a história do Brasil, há uma mudança de qualidade neste momento”, avalia Arantes.
Para o filósofo, o país foi forjado pela ditadura a ponto de hoje nossa sociedade negligenciar tudo aquilo que foi consenso durante o autoritarismo dos militares. “A ditadura não foi imposta. Ela foi desejada. Leiam os jornais publicados logo após 31 de março de 1964. Todos lançaram manifestos de apoio ao golpe, era algo arrebatador. CNBB, ABI, OAB, todo mundo que hoje é advogado do Estado de Direito apoiou. Se criou um mito de que a sociedade foi vítima de um ato de violência, mas a imensa maioria apoiou o golpe”, disse Arantes. “E a ditadura se retirou não porque foi derrotada, mas porque conquistou seus objetivos. A abertura de Geisel foi planejada, já tinha dado certo com o milagre econômico. Tanto que seus ideólogos estão aí, como principais conselheiros econômicos da era Lula-Dilma, e que a ordem militar está toda consolidada na Constituição de 88”, criticou.
Na avaliação de Edson Teles, membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos do Brasil e professor de filosofia da Unifesp, a Constituição de 1988 foi apenas uma das formas de lançar o Brasil num Estado de exceção permanente, definido por ele quando a própria norma é usada para suspender a ordem; ou quando aquilo que deveria ser a exceção acaba se tornando ou reafirmando a própria norma.
Para Teles, além de manter a estrutura autoritária militar, o novo ordenamento democrático foi construído sobre o silenciamento dos familiares de vítimas e de movimentos de defesa dos direitos humanos, que queriam justiça para os crimes da ditadura. O problema, no entanto, vinha de antes.
“Em um Congresso controlado pela ditadura, a Lei de Anistia adotou a suspensão da possibilidade de punição de qualquer crime. Um momento ilícito foi tornado lícito, com o silenciamento dos movimentos sociais e pela anistia, que exigiam esclarecimentos sobre os crimes. O que o Estado montou foi algo que manteve a ideia de impunidade. Depois veio o Colégio Eleitoral, que fez uma opção por uma saída negociada entre as oligarquias que saíam e as novas que chegavam, decidindo manter a anista ao crimes da ditadura. Foi o grande acordo do não-esclarecimento”, relatou.
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O julgamento no Supremo Tribunal Federal em 2010 sobre a interpretação da Lei de Anistia foi, segundo Teles, o coroamento desse silêncio e a instauração de um Estado de exceçãono país. “Baseada em ideias fantasmagóricas de que novos golpes que poderiam ser dados, nossa transição foi a criação de um discurso hegemônico de legitimação deste Estado de exceção. Faz-se este discurso como forma de legitimar essa memória do consenso, mas se mantém o Estado de exceção permanente, reconhecendo as vítimas sem nomear os crimes”, acrescentou.
Exceção e consenso hoje
O consenso acerca daquilo que deveria ser visto como exceção não se restringe hoje, no entanto, àquilo que pode ser considerado a herança mais direta da ditadura militar. Foi construído também em torno de uma série de acontecimentos e práticas que deveriam mas não mais despertam reações da população brasileira.
“A exceção se torna perigosíssima quando deixamos de reconhecê-la como tal e ela se torna consenso”, alertou o escritor e professor de jornalismo da PUC-SP, José Arbex Jr. “Ninguém achou um escândalo, por exemplo, no lançamento da Comissão da Verdade, ver os últimos Presidentes do país juntos, sendo que um deles foi presidente da Arena, o partido da ditadura, responsável pela tortura da própria Dilma; e o outros era Collor! Da mesma forma, está em curso em Osasco uma operação chamada Comboio da Morte, que matou nas últimas horas 16 pessoas. Isso não causa um escândalo nacional, é normal, natural, porque estamos “na democracia”. Os jornais falam da Síria, mas a média de mortes diária no auge do conflito da Síria não chega ao que temos aqui cotidianamente. Lá é 60 aqui é 120! Então não estamos discutindo algo que aconteceu em 64 e que hoje se apresenta de forma mitigada, atenuada”, disse Arbex.
Para o jornalista, o país vive um estado de letargia hipnótica coletiva, fabricado de maneira competente e eficiente pelo aparato midiático, que produz um consenso em torno de uma imagem de país na qual todos acabamos acreditando. “É muito grave quando olhamos para o Brasil e não percebemos essa realidade de consenso: de nenhuma garantia de direito para quem esteja fora da Casa Grande, e uma situação de guerra permanente”, acrescentou.
É o que Paulo Arantes chamou de Estado oligárquico de Direito, um Estado dual, com uma face garantista patrimonial, que funciona para o topo da pirâmide, e uma face punitivista para a base. “Esse Estado bifurcado é uma das “n” consequências da remodelagem do país a partir dos 21 anos de ditadura. Basta pensar no que acontece todos os dias no país. Trata-se de um outro consenso, também sinistro e indiferente, senão hostil, a tudo que nos reúne aqui. Um Estado de exceção que não é o velho golpe de Estado, mas um novo modo de governo do capital na presente conjuntura mundial, que já dura 30 anos”, afirmou Arantes.
Ninguém cavalga a história
O que permitiria dizer da possibilidade de se encontrar uma saída deste Estado de exceção permanente é o caráter imprevisível e incontrolável da história. Arbex lembrou que, em setembro de 1989, quando estava em Berlim, ninguém dizia que o Muro cairia menos de dois meses depois. “O fato é que, felizmente, ninguém cavalga a história. Ainda não encontraram uma maneira de domesticá-la. Há um processo latente de explosão social no Brasil, que se combina com processos semelhantes na América Latina, e que pode produzir uma situação totalmente nova. Ninguém previu a Primavera Árabe. Quando um jovem na Tunísia atirou fogo no próprio corpo, ninguém imaginava que, um mês depois, cairia Mubarak no Egito. Estão, não estamos condenados para sempre a esta situação. Só posso dizer que estamos vivendo numa época que, em alguns aspectos, é mais trágica, mais cruel e mortífera que a ditadura militar”, acredita.
“Este Estado de exceção só terminará quando a ditadura terminar, quando o último algoz for processado e julgado. Se a Comissão da Verdade encontrar dois ou três bons casos e levantar material para ações cíveis, pode haver uma transmutação disso tudo. E o regime, a sociedade e a economia não vão cair se os perpetradores da ditadura forem processados, como não caíram na Argentina ou no Chile”, acredita Paulo Arantes. “Mas devemos pensar no que significaria essa última reparação. Se o último torturador e os últimos desaparecidos forem localizados, em que estágio histórico vamos poder entrar?”, questionou. Uma pergunta ainda sem resposta.
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Comentários
Jose Mario HRP
Texto perfeito, análise perfeita, triste constatação!
Longo caminho para uma grande parte do povo conseguir pensar com democracia, justiça social , fraternidade e caridade!
ricardo silveira
Com um espaço público dominado pela elite que produziu a ditadura é impossível fazer a crítica da ditadura. O que só poderia ser feita expondo as feridas que não se fecham nos mesmos logradouros públicos que levam os nomes dos militares e civis que violentaram a soberania do povo brasileiro. Só assim o país poderia fazer justiça e recuperar sua história como resultado da vontade democrática dos brasileiros.
José Eduardo
Resumindo, só os militares ficaram mal na foto. A Tal “sociedade civil organizada” se fez e continua a se fazer de santinha diante do julgamento da história!
Uélintom
Infelizmente esse Estado de excessão não se restringe à questão da Anistia. A excessão se encontra em muitas das grandes ações do Governo, e fazem parte de um discurso que acompanha o Estado brasileiro desde a Era Collor. Vejam o caso dos povos indígenas, que são povos submetidos às leis do Estado brasileiro, sem armas ou exército, que deseja apenas o direito de continuar existindo como os povos diferenciados que são (língua, práticas culturais, crenças etc). Tiram-lhes os direitos mais básicos em nome da urgência econômica, do desenvolvimento, da “segurança nacional”. O mesmo em relação aos atingidos por barragens, aos atingidos pela Copa, ribeirinhos, favelados etc. E o mesmo em relação aos nossos próprios descendentes! Sim, pois serão nossos filhos, netos e bisnetos os que sofrerão de forma mais radical e aguda as consequências do consumo voraz dos recursos naturais (ou da sua simples destruição). E tudo em nome do que? Argumentam-se pela urgência de se retirar milhões de pessoas da pobreza. Mas podemos dizer que é isso que está sendo alcançado? É “realpolitik” aceitar repartir o bolo em 8/2 ou 9/1? Lembrando o que se dizem nos “occupy”, somos o 99%, o 99% que está fora do jogo na hora de dividir as riquezas, e o 99% que as produzem. As dezenas de hidrelétricas previstas para a região amazônica são para atender povos indígenas e ribeirinhos ou para bancar o funcionamento de mineradoras, petrolíferas etc? É uma inacreditável afronta aos mortos, desaparecidos e torturados da ditadura achar que seu sacrifício foi apenas que tivéssemos direito ao voto. Cada um a seu modo, mas todos eles sonharam com um novo Brasil, e não com um Brasil “democrático” que vive em permanente Estado de excessão.
assalariado.
Estado de Direito!? Estado de exceção!?
Ora, ora, não por acaso, o Estado de exceção não é uma extensão do Estado desta ditadura do capital? Sim, este é um recurso legal e legitimo que se escondem atras das letras da constituição estudada, e bem elaborada pelo legislativo burgues, a serviço do capital. Isto nada mais é do que os empresários capitalistas organizados jurídica, econômica e politicamente, para além dos portões de sua empresas. Só que, os de condição de explorados pelo capital, nem sabem, nem sonham, com o que tem dentro deste cavalo de troia, a qual chamamos de Estado de Direito. Direito, de quem mesmo? Sim, nestas horas quando a burguesia capitalista perde o domínio e controle social da sociedade, seja via eleição, seja povo nas ruas, seja nas crises cíclicas do capital, seja em contestação dos assalariados contra a exploração do capital sobre o trabalho enfim, …
Esta é a hora da legalidade burguesa tirar sua mascara e aplicar o golpe necessário -(nas suas varias faces)-, e esta lei, aparece com o nome de “… manter a ordem social, …” Só que, lá na carta magna não explica. Que ordem é esta? Mas eu explico: manter a ordem, a ordem capitalista. Agora, uma coisa é real, por mais que falem que o Brasil avançou na sua democracia, nas suas liberdades de expressão, ela nunca passou para além do muros permitidos pelos donos dos meios de produção, ocultos, dentro do seu Estado burgues. Os donos do Estado e desta constituição das elites, foi construída e delimitada não para além do que esta aí. Fora isto, podem esperar, teremos um novo golpe de Estado e seus soldados de troia junto com suas instâncias (nada) democráticas, contra a sociedade organizada e, principalmente, os de esquerda. Resta saber de que forma virá o próximo golpe. Sim, nas cabeças das elites golpistas não será possível avançar o Brasil, para além da democradura burguesa. Ou seja, além da exploração dos assalariados e da sociedade civil, controlado ‘democraticamente’ pelo Estado burgues, suas leis, seus lucros, seus ouros. Nunca, nunca, para além do permitido. Entenderam?
Abraços Socialistas.
lulipe
A letargia é maior nos governos petistas.Onde estão UNE, CUT, MST???Tá tudo dominado…
Danivaldo A. Silva
Chama minha atenção esse esforço para “controlar” a história. Datas comemorativas, calendário oficial, censura a publicações (sobretudo os livros didáticos) e a tentativa de ocultação de tudo que não diz respeito ao “status quo” pretendido pelas elites. Mas meu País não é isso, minha história não é essa. Esse projeto de Brasil não é e nunca foi nosso. O Brasil que estamos construindo, aliás muito maior, é outro.
smilinguido
“O Brasil que estamos construindo, aliás muito maior, é outro.”
e é melhor? me dá o endereço? quero ir pra lá…
assalariado.
Smilinguido, estamos a caminho deste outro país com sede de justiça social e, com certeza, socialista. O endereço é este mesmo que você mora, um país chamado Brasil.
Abraços.
Nelson
Meu caro smilinguido.
O grande Darcy Ribeiro escreveu, para encerrar seu magnífico livro, “América Latina, a Pátria Grande”, uma frase que só poderia sair de uma mente privilegiada, genial mesmo, como a dele:
“Na América Latina, ninguém engordará inútil nem se suicidará de tédio”.
No nosso continente, Brasil incluído, está tudo aí para ser feito; é o que tenta nos fazer entender o grande Darcy.
Portanto, não tempo nem espaço para lamúrias. Se queremos, de fato, um país que nos satisfaça, à nossa feição, temos é que arregaçar as mangas, jogar bem para longe essa letargia, essa pasmaceira; vamos “colocar as mãos na massa” e construí-lo.
Tiãozinho
“E a ditadura se retirou não porque foi derrotada, mas porque conquistou seus objetivos”… e com a implantação da TV em rede nacional se tornou desnecessaria, anacronica e foi substituida…
strupicio
o golpe de 64 tornou o Brasil autoritario?????????? antes nao era???????
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