Maria Inês Nassif: Ruralistas versus direitos humanos

Tempo de leitura: 4 min

27/05/2010

por Maria Inês Nassif, no Valor

Existem inúmeras razões para colocar a erradicação do trabalho escravo como a prioridade número um do Século XXI – de ordem econômica, religiosa ou social. O difícil é imaginar alguma razão para defender a acumulação de riqueza por meio da exploração do trabalho de forma desumana e degradante. A despeito de todo horror que causa a existência de seres humanos que, em estado de miséria, são submetidos a condições de exploração extrema, a barreira ruralista que rapidamente se arma a qualquer vaga ameaça sobre a propriedade tenta se impor ao bom senso. O bom senso – único, inescapável – é que o trabalho escravo tem que ser eliminado da vida brasileira.

As atuações das secretarias de Direitos Humanos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não foram de ruptura. Sob a liderança de militantes históricos da área – José Gregori, no governo FHC, e Nilmário Miranda e Paulo Vannuchi, no governo Lula -, os governos tucano e petista mantiveram uma agenda que era comum à sociedade civil que, desde a ditadura, lutava por direitos políticos e de cidadania. Talvez por terem a mesma origem, dificilmente – com a triste exceção da desmedida reação conservadora ao 3º Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3), apoiada por tucanos por razões que fugiram aos seus compromissos históricos – encontram grandes resistências no terreno de disputa partidária entre as duas legendas que lideram o cenário da política institucional, o PT e o PSDB. A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, as tentativas de resgate da memória da repressão política no período militar (1964-1985), o combate ao trabalho infantil, as ações para universalizar o registro civil e vários outros programas dos que se desenvolvem hoje, na SEDH, começaram no período anterior.

O Programa de Erradicação do Trabalho Escravo é um deles. O Brasil tornou-se referência mundial de combate ao trabalho degradante em 1995, quando o governo de FHC reconheceu publicamente a existência do trabalho escravo no país. O Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf) foi criado naquela época e elevado a Comissão Nacional Para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), órgão colegiado vinculado à Secretaria Especial dos Direitos Humanos, no governo Lula. É de 1995 a criação do Grupo de Fiscalização Móvel – que, de lá para cá, tem tornado relativamente comuns as ações, estampadas pelos jornais, de libertação de mão de obra em regime análogo ao trabalho escravo em fazendas pelo Brasil afora.

O 1ºEncontro Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que acontece desde terça-feira em Brasília, coloca o problema como política pública que envolve Executivo, Legislativo e Judiciário, por demanda de setores sociais engajados em apagar a escravidão da triste história brasileira. O encontro reúne ministros do governo, o ministro Carlos Ayres Brito, do Supremo Tribunal Federal, organizações sociais envolvidas no combate à escravidão, ministros do Tribunal Superior do Trabalho, juízes do Trabalho, representantes do Ministério Público, a relatora Especial das Nações Unidas sobre formas contemporâneas de escravidão, Gulnara Shahinian etc. Se, de um lado, reúne consensos, de outro tem um enorme potencial do confronto.

A aprovação, o Congresso, da proposta de iniciativa popular da Ficha Limpa, a despeito de todas as previsões, recolocou a PEC nº438/2001 com mais força na agenda desses setores que querem transformar a luta pela erradicação do trabalho escravo em consenso. A emenda foi apresentada ainda no governo de FHC, foi votada pelo Senado em dois turnos e apenas conseguiu ser apreciada no primeiro turno pela Câmara em 2004, em meio à comoção do massacre de Unaí, quando fiscais do trabalho foram massacrados a mando de um fazendeiro. Espera a votação em segundo turno até hoje. A PEC autoriza a desapropriação, para fins de reforma agrária, das propriedades rurais que fizerem uso do trabalho escravo- a exemplo do que a Constituição de 1988 definiu para as propriedades rurais que fizerem plantio de drogas. Impede a votação a oposição da bancada ruralista, o setor mais conservador da sociedade brasileira e mais super-representado no Congresso Nacional. É enorme o poder de veto da bancada, no que se refere a qualquer assunto que envolva a propriedade rural.

O momento, segundo o ministro Paulo Vannuchi, pode ser propício: a efetividade da pressão popular que levou à votação do Ficha Limpa pode neutralizar o poder de veto da bancada ruralista. Foi entregue ao presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), um abaixo-assinado com 284 mil assinaturas em favor da votação da PEC do Trabalho Escravo. Houve empenho inclusive de empresa na coleta de assinaturas ao abaixo-assinado.

A PEC não será definitiva na erradicação do trabalho escravo, mas sua aprovação poderá ser um importante instrumento de desestímulo a essa prática. Segundo Leonardo Sakamoto, jornalista e coordenador da organização Repórter Brasil, que também coordena o movimento, tem grande efetividade na luta pela erradicação do trabalho escravo o pacto empresarial firmado em torno da Lista Suja divulgada pelo Ministério do Trabalho, com o nome de empresas e pessoas físicas que tenham feito uso do trabalho escravo. Os integrantes dessa lista são excluídos do rol de fornecedores das duas centenas de empresas e os bancos oficiais têm suspendido crédito a eles. Segundo José Guerra, do Movimento Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, essas 200 empresas que punem comercialmente as empresas rurais que fazem uso da escravidão representam uma boa parcela do PIB nacional.

A questão, todavia, é evitar que o tema seja tragado pelos setores mais atrasados, cuja resistência a uma rígida punição ao uso do trabalho escravo pode configurar até como uma confissão de culpa.

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Maria Inês Nassif é repórter especial de Política. Escreve às quintas-feiras

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Comentários

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Jairo_Beraldo

Não vou criar polemica, mas nos post sobre ruralistas, se usam os termos latifundiarios, fazendeiros e agronegócio. São tres coisas distintas. 01- latifundiários- são gente da casta de Katia Abreu, que usa amigos politicos e do judiciario, além de pistoleiros para desalojar os pequenos colonos vizinhos das suas terras. 02- Fazendeiros- são aqueles que são explorados pelos atravessadores, que copram a materia prima que produzem, e estão todo os dias na mesa da cada brasileiro, além de "abastecer" as pequenas cidades do interior, dando emprego e condições de vida.
03- Agronegócio- são os que exploram e ganham dinheiro as custas da produção dos pequenos e médios produtores(fazendeiros e sitiantes), junto com os latifundiarios(que nada produzem, só querem terras para enterrar as escrituras em bancos), que a tudo destroem. Espero ter contribuido para um entendimento melhor sobre a classe "ruralista"

william porto

O correto e uma emenda constitucional que permita tomar a terra de quem pratica o trabalho escravo. O problema e o looby da udr, dos ruralistas, O outro problema e a rendicao, inclusive do governo, wao agronegocio. Tem mais, um tempo desse, o nosso Lula comeu um absurdo, num dos seus improvisos, dizendo que o usineiro era yum heroi nacional. Foi uma asneira colossal, abissal, total.

Clóvis

Seria uma vitória sem tamanho a aprovação de uma emenda constitucional que determinasse a perda das terras em que haja trabalho em condições análogas à escravidão. Espero que o Temer tenha um lampejo de dignidade e coloque esta PEC em votação para ontem!

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setepalmos

A questão é simples: é a caça por dar um lance fatal nos avanços sociais garantidos pela CF-88.

A reporcagem da veja que em reflexo gerou a demissão de um jornalista da NG é apenas isso

São as vivandeiras dos tribunais…
http://setepalmos.wordpress.com/2010/05/26/fascis

=D

yacov

É impressionante como um bando de fazendeiros retrógrados pode impedir avanços sociais e o desenvolvimento de todo um país, em nome de seus próprios interesses mesquinhos. Podem até argumentar que o agronegócio é importante e traz muitas divisas para o país, mas a que custo: fome, desemprego e escravidão de multidões no campo e destruição ambiental desenfreada, pois 90% das terras agricultáveis do país são utilizadas para criação de gado, no entanto continuamos derrubando florestas para plantar soja. Enquanto isso, grandes empresas grileiras, como GLOBO e CUTRALE, fazem a festa e o MST é demonizado… Para a nossa "inteligentzia midiática", contudo, parece que está tudo bem…

"O BRASIL DE VERDADE não passa na glOBO – O que passa na glOBO é um braZil para TOLOS"

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