Diretor de hospital em Gaza preso por Israel relata tortura, isolamento e violações extremas

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Protesto em Ramallah, Cisjordânia ocupada, em 14 de janeiro de 2025, pelos palestinos presos por Israel, incluindo o diretor do Hospital Kamal Adwan, o dr. Hussam Abu Safiya. Foto: Reprodução Fepal

Chefe de hospital de Gaza relata tortura e isolamento em prisão “israelense”

Advogada de Hussam Abu Safiya detalha violações extremas nas prisões, como amputações forçadas, fome e tormento psicológico

Por Mera Aladam*, Federação Árabe Palestina do Brasil – FEPAL

O depoimento do diretor do Hospital Kamal Adwan em Gaza pinta um quadro brutal da detenção israelense, incluindo relatos de tortura, fome e as péssimas condições que os prisioneiros são forçados a suportar.

Em declarações à Arab48, a advogada do Dr. Hussam Abu Safiya disse que ele foi impedido de se encontrar com qualquer pessoa, incluindo sua advogada, desde o dia em que foi detido em 27 de dezembro até 10 de fevereiro.

No final de dezembro do ano passado, o hospital foi invadido por tropas israelenses após quase três meses de um bloqueio sufocante e constantes ataques aéreos em seus departamentos e na área ao redor deles.

Toda a equipe médica, pacientes e seus parentes foram retirados do hospital sob a mira de armas, forçados a se despir até ficarem apenas com suas roupas íntimas e transferidos para um local desconhecido.

O Ministério da Saúde palestino disse que dezenas de médicos foram levados para centros de detenção para interrogatório, incluindo Abu Safiya.

A advogada Gheed Kassem pôde visitar o médico na notória prisão de Ofer, na Cisjordânia ocupada, onde ele está detido há mais de 70 dias após passar quase duas semanas no campo de detenção de Sde Teiman, no deserto de Negev.

Isolamento e tortura

A visita de Kassem em 6 de março foi apenas a segunda visita de advogado concedida a Abu Safiya desde sua prisão e ocorreu após vários apelos de advogados.

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“Até 10 de fevereiro de 2025, Abu Safiya teve negado o direito de se encontrar com qualquer advogado, com as autoridades israelenses se recusando explicitamente a permitir que alguém o visitasse, impedindo-o de documentar as violações que ocorreram”, disse ela.

De acordo com Kassem, o médico pediatra foi preso e encarcerado por se recusar a obedecer às ordens de expulsão do exército israelense “porque sua consciência e profissionalismo exigiam que ele permanecesse no hospital, especialmente com a presença de dezenas de pacientes e crianças feridas”.

Sua advogada detalhou que ele ficou isolado por 14 dias em Sde Teiman e mais 25 dias em Ofer. Mais tarde, ele foi transferido para a Seção 24 em Ofer, onde os detidos de Gaza permanecem separados de outros prisioneiros.

“O período mais longo de interrogatório que Abu Safiya suportou foi de 13 dias consecutivos, com cada sessão durando entre oito e 10 horas. Durante todo esse tempo, ele foi submetido a abusos, torturas e agressões implacáveis e brutais”, disse Kassem.

Ela acrescentou que os detidos estão “quase completamente isolados dentro da prisão”, sem qualquer conhecimento ou informação sobre o mundo exterior, a menos que lhes seja permitida uma visita.

Kassem disse que os serviços de inteligência atormentam psicologicamente os prisioneiros com notícias da morte de seus entes queridos, independentemente de ser verdade ou não.

“A situação de todos os palestinos dentro das prisões israelenses é catastrófica e deplorável, mas especificamente, a situação dos prisioneiros de Gaza é excepcional e mais difícil porque eles não têm experiência anterior com prisão”, disse ela.

Prisões-matadouros

A advogada de Abu Safiya descreve o abuso e a tortura presentes nos centros de detenção israelenses como “sem precedentes”.

“Se falarmos sobre a prisão de Sde Timan, é um matadouro em todos os sentidos da palavra”, disse ela.

“Estamos falando de prisioneiros que foram algemados por 10 meses, prisioneiros cujos membros foram amputados sem tratamento, prisioneiros idosos que estão algemados e vendados, prisioneiros que perderam 70-90 quilos de seu peso.”

“Além disso, há a questão do frio intenso, pois os prisioneiros são mantidos em celas abertas, o que significa que ficam expostos ao vento e à água da chuva, e são forçados a sentar no chão o tempo todo e são proibidos de falar uns com os outros e de rezar e ler o Alcorão.”

No final de fevereiro, a mídia israelense exibiu imagens de Abu Safiya, visivelmente exausto e acorrentado pelas mãos e pés, sendo escoltado por forças israelenses.

Kassem disse que o médico ficou surpreso por estar sendo filmado e não foi informado antes da transmissão.

Em relação à situação legal de Abu Safiya, a advogada disse que as autoridades israelenses tentaram reformular o caso de Abu Safiya como um caso de segurança regular para registrar uma acusação.

“Após uma série de interrogatórios e torturas severas para forçá-lo a assinar qualquer coisa que pudessem usar como evidência para a acusação, eles não conseguiram encontrar nenhuma base contra ele depois de mais de 45 dias”, disse ela.

“Eles então devolveram seu caso à sua designação original (combatente ilegal), e o arquivo de um combatente ilegal não carrega direitos, seja em termos de representação ou acusação. Cada vez, a decisão de estender sua detenção é renovada.’”

No entanto, Kassem diz que deixou Abu Safiya animada, encerrando a reunião com a seguinte mensagem: ”Um ser humano é história, e sua história é definida por uma posição que é tomada e estudada.”

‘Prisioneiros estão em perigo, salvem-nos’

A experiência de tortura de Abu Safiya é uma das muitas dentro das prisões israelenses.

No início de abril do ano passado, um médico em um hospital de campanha israelense onde palestinos detidos de Gaza são mantidos descreveu detalhes angustiantes das condições, incluindo amputação de membros devido a ferimentos por algemas e prisioneiros forçados a defecar em fraldas.

O médico não identificado que trabalha na unidade Sde Teiman, entre Gaza e Bersheeba no deserto de Negev, escreveu sobre as experiências em uma carta ao ministro da defesa de israel, ao ministro da saúde e ao consultor jurídico do governo. A carta foi relatada pelo Haaretz.

“Isso torna todos nós – as equipes médicas e vocês, os responsáveis por nós nos ministérios da saúde e da defesa – cúmplices da violação da lei israelense, e talvez pior para mim como médico, da violação do meu compromisso básico com os pacientes, onde quer que estejam, como jurei quando me formei há 20 anos”, escreveu ele.

Os últimos grupos de detentos palestinos libertados mostraram sinais de sofrimento, abuso, fome e negligência médica em prisões e centros de detenção administrados por israelenses.

Vários deles só receberam atenção médica após sua libertação.

Em um clipe, um ex-detento em um ônibus entrando na Faixa de Gaza alertou sobre a condição dos que permaneceram na prisão, gritando: “Prisioneiros [dentro das prisões israelenses] estão em perigo. Salvem-nos.”

Tortura desenfreada foi registrada em instalações de detenção civis e militares em Israel nos últimos meses, resultando na morte de mais de 60 palestinos desde 7 de outubro de 2023, entre eles pelo menos 39 de Gaza.

* Matéria publicada em 10/03/2025 pelo Middle East Eye.

*****

Em 23 de dezembro de 2024, publicamos o artigo Israel exige imediata evacuação do único hospital no norte de Gaza. Médicos apelam ao mundo.

Justamente o Hospital Kamal Adwan, mencionado na reportagem acima traduzida para o português pelo site da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal). 

Em 27 de dezembro, o seu diretor, o respeitadíssimo dr. Hussan Abu Safiah, foi preso pelas forças militares. 

Em 25 de novembro de 2024, o dr. Hussam Abu Safiah gravou o vídeo abaixo, a partir da unidade de cuidados intensivos.

Segue a transcrição completa das legendas traduzidas para o português.

”Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso. Sou o dr. Hussam Abu Safiah, diretor do Hospital Kamal Adwan, atualmente sitiado no norte de Gaza.

Falo-vos a partir da unidade de cuidados intensivos, a única instalação deste tipo no norte de Gaza.

Isso após mais de 50 dias de cerco à área e apesar dos nossos repetidos apelos ao mundo para o envio de cirurgiões, suprimentos médicos essenciais e consumíveis, bem como o fornecimento de combustível para uma única ambulância.

As forças de ocupação israelenses, não tendo conseguido evacuar o norte, começaram a atacar diretamente o nosso sistema de saúde. Durante sete dias consecutivos, fomos alvo de ataques diretos.

Por vezes, o serviço de urgência e recepção é bombardeado, ferindo membros da nossa equipe médica.

Outras vezes, o pátio do hospital, os pontos de montagem dos geradores, a estação de oxigênio, a rede de água, os reservatórios de água e as infraestruturas são deliberadamente visados.

O objetivo é claramente perturbar e incapacitar a nossa capacidade de prestar serviços humanitários, apesar de existir leis internacionais que deveriam protegem os sistemas de saúde e os seus trabalhadores.

Temos mais de 20 pessoas feridas no hospital — todas feridas enquanto trabalhavam no Hospital Kamal Adwan.

Tragicamente, os ataques tornaram-se uma ocorrência diária.

Uma nova arma utilizada pelo exército israelita envolve drones (quadricópteros) que lançam bombas, contendo estilhaços minúsculos, quase invisíveis a olho nu, mas capazes de penetrar nos corpos dos trabalhadores, causando hemorragias internas e lesões nos órgãos.

Em meu nome e em nome de todo o pessoal deste sistema de cuidados de saúde, apelamos ao mundo, à Organização Mundial de Saúde, a todos os defensores da democracia e da humanidade, ao Escritório de Coordenação dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas (OCHA) e a qualquer entidade com influência para que assegurem a proteção internacional do nosso sistema de cuidados de saúde — não só do hospital, mas também do seu pessoal.

Estamos a cumprir uma missão humanitária e continuaremos a fazê-lo ao lado do nosso povo no norte de Gaza.

Mesmo que só possamos prestar o mínimo de serviços, continuaremos a fazê-lo, porque se trata de um dever humanitário exigido pelas leis divinas e terrenas.

Infelizmente, nas últimas semanas, a nossa equipe médica foi detida e ninguém interveio ou tomou medidas.

Continuamos a ser mortos, mas ninguém impede o derramamento de sangue que continua no norte de Gaza.

Diariamente testemunhamos cenas de horror no Hospital Kamal Adwan.

Recebemos pedidos de socorro de pessoas presas sob os escombros, mas, infelizmente, não temos os recursos e as ferramentas básicas para resgatá-las.

No dia seguinte, muitas vezes descobrimos que aqueles que procuraram ajuda tornaram-se mártires.

Nossas casas visadas transformaram-se em sepulturas para os seus moradores.

Esta é a dura realidade: um genocídio em grande escala que tem como alvo pessoas, árvores e pedras.

Mesmo o sistema de saúde não é poupado, seja através de bombardeamentos, mísseis, ataques de drones ou helicópteros Apache.

Não sabemos que crimes cometemos para merecer esta perseguição e matança implacáveis.

Mais uma vez, apelamos urgentemente ao mundo para que intervenha de imediato para pôr termo ao derramamento de sangue no norte de Gaza e que cessem os ataques ao nosso sistema de saúde.

Exigimos também a libertação imediata do nosso pessoal médico que foi detido nos seus locais de trabalho no Hospital Kamal Adwan.

Eles foram agredidos, espancados e insultados.

Até hoje, não há qualquer informação sobre o paradeiro ou destino deles.

Cada ataque resulta na destruição de tanques de água, das redes de oxigênio e do único gerador que fornece energia ao hospital e das infraestruturas.

Após cada ataque, tentamos reparar os danos”.

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