Paulo Capel Narvai: Negacionismo de Trump é o negacionismo de negócios
Tempo de leitura: 7 minTrump e o negacionismo de negócio
O negacionismo não é desinteressado. Não é apenas produto de notável ignorância. É negócio. Uma espécie de negacionismo de negócios
Por Paulo Capel Narvai*, em A Terra é Redonda
1.
Alguns dias após Donald Trump, do Partido Republicano, ser eleito pela segunda vez à presidência dos EUA, soube-se, em 14 de novembro de 2024, que Robert F. Kennedy Jr comandaria o Department of Health and Human Services (HHS), órgão equivalente, no federalismo daquele país, ao nosso Ministério da Saúde.
O HHS tem como missão supervisionar as principais agências de saúde dos EUA, incluindo o CDC, sigla que identifica o Centro de Controle e Prevenção de Doenças, a mais importante agência de saúde pública do país – apenas para se ter uma noção de sua importância, está sob controle do CDC uma das duas amostras do vírus da varíola existentes no mundo. A outra está num órgão equivalente na Rússia.
Kennedy Jr é sobrinho do ex-presidente John F. Kennedy e filho do ex-senador Robert F. Kennedy, ambos filiados ao Partido Democrata.
John foi assassinado em novembro de 1963, quando exercia o mandato presidencial. Robert foi assassinado cinco anos depois, em junho de 1968, quando disputava a indicação do seu partido à presidência do país.
Apesar da forte ligação da sua família com o Partido Democrata, Kennedy Jr integrou-se à campanha do republicano Donald Trump por sua identificação com as posições negacionistas do candidato.
Para o trumpismo não houve maiores dificuldades para acolher aquele a quem um amigo qualificou como “a fruta podre do clã dos Kennedy”, dada a sua trajetória abertamente antivacinista.
Entidades e cientistas alertaram para o significado de colocar Kennedy Jr no comando da política de saúde. Trump, que tem apoio da maioria do Congresso, os ignorou, obteve a confirmação de Kennedy Jr no Senado e o nomeou para o HHS.
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Uma das “teses” que ganharam o coração de Kennedy Jr é a farsa da associação entre autismo e vacina contra o sarampo, que teve origem no artigo do médico britânico Andrew Wakefield, publicado em 1998 na revista científica The Lancet.
O artigo foi produzido com dados fraudados e foi comprovado o conflito de interesse do autor, pois Andrew Wakefield havia sido contratado por advogados para produzir dados contra a vacina utilizada na época, para que eles pudessem ganhar dinheiro processando os fabricantes.
Em 2010, o Conselho Geral de Medicina do Reino Unido julgou Andrew Wakefield, condenando-o. O médico foi considerado inapto para o exercício da profissão e sua conduta qualificada como irresponsável, antiética e enganosa.
Como consequência a revista The Lancet fez uma retratação e reiterou que as conclusões do estudo eram falsas.
Nada disso, porém, demoveu Kennedy Jr de sua crença. Ao contrário. Em 2021, Kennedy Jr foi o produtor executivo de Vaxxed 2: The People’s Truth, sequência do documentário Vaxxed, dirigido por ninguém menos do que Andrew Wakefield, o reconhecido falsificador dos dados da pesquisa sobre autismo e vacina contra o sarampo.
Sabendo da falsificação, por que Kennedy Jr seguiu abraçado com o falsificador? Estupidez? Não. Negócio. O negacionismo nunca foi, e não é, apenas ignorância. É, também, negócio.
2.
Advogado, 70 anos, com atividades profissionais na área de direito ambiental, Kennedy Jr foi nomeado, pois Donald Trump crê que ele será capaz de “garantir que todos estejam protegidos dos produtos químicos nocivos, dos poluentes, dos pesticidas, dos produtos farmacêuticos e dos aditivos alimentares que contribuíram para a avassaladora crise de saúde” naquele país.
Para o presidente, seu “ministro” da saúde defenderá os interesses dos cidadãos contra “o complexo industrial de alimentos e as companhias farmacêuticas que se envolveram em farsas e desinformação”, bem como dará fim à “epidemia de doenças crônicas, fazendo com que os Estados Unidos voltem a ser grandes e saudáveis novamente”.
Kennedy Jr não deixou por menos e, ao agradecer a indicação, afirmou que pretende “varrer a corrupção e acabar com os conflitos de interesse generalizados em nossas agências governamentais de saúde”.
Com esse ímpeto, prometeu “fazer com que os americanos voltem a ser as pessoas mais saudáveis do mundo”.
Porém, a julgar por suas declarações, há riscos importantes de que aconteça o oposto do que ele pretende.
Os EUA, país em que os índices de cobertura vacinal são piores do que os registrados no Brasil, mesmo nos desgovernos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, terá coberturas ainda menores na gestão de Kennedy Jr, com a promoção do antivacinismo a partir de órgãos do próprio governo.
Essa orientação política repete a estratégia adotada no Brasil, pelo governo Bolsonaro, caracterizada por incessante hostilidade ao SUS e às ações de saúde pública, que partiam do Palácio do Planalto, impulsionadas pelo denominado “Gabinete do Ódio”.
O negacionismo e o antivacinismo transformados em política pública produziram efeitos devastadores sobre a cobertura vacinal em todo o Brasil.
Outra “tese” abraçada com entusiasmo por Kennedy Jr se refere simultaneamente às áreas de saúde e ambiente.
Além da reiterada oposição ao Acordo de Paris, o tratado internacional sobre mudanças climáticas, adotado em 2015, o agora dirigente do HHS tem declarado sua oposição à fluoretação da água que, em sua visão negacionista é feita com “um resíduo industrial” que produz “artrite, fraturas ósseas, câncer ósseo, perda de QI, distúrbios do neurodesenvolvimento e doenças da tireoide”.
Embora o flúor seja um elemento natural, ocorrendo no ar, solo e água, o representante do governo de Donald Trump para a saúde prefere crer que se trata de um veneno.
Após a eleição de Donald Trump, Kennedy Jr prometeu que “em seu primeiro dia, o governo recomendará que todos os sistemas de abastecimento público de água dos EUA interrompam a medida”.
Trata-se de recomendação, pois a decisão sobre o assunto não cabe ao governo federal, mas a cada autoridade pública local. Se essa recomendação for aceita, será um golpe duríssimo para a saúde pública, com notáveis prejuízos às pessoas.
3.
A tecnologia de saúde pública conhecida como “fluoretação da água” consiste em ajustar os níveis de fluoretos encontradas naturalmente em todas as águas, situando-os em patamares seguros para a saúde humana.
Conhecimentos científicos consolidados há mais de 50 anos indicam que quando a água utilizada para consumo humano contém teores de fluoretos similares aos encontrados nas águas dos mares e oceanos, o flúor é muito eficaz para prevenir a cárie dentária e seguro para as pessoas.
Nos EUA essa tecnologia começou a ser utilizada há 80 anos, em 1945. Em 1999 foi considerada uma das dez principais conquistas da saúde pública naquele país.
Como resultado da sua eficácia, comprovada por algumas centenas de pesquisas independentes, sua cobertura vem sendo ampliada: era de 65% da população no ano 2000; aumentou para 73% em 2018. A meta para 2030 é chegar a 77%.
Atualmente, os EUA lideram em nível mundial a utilização dessa tecnologia. O Brasil ocupa o segundo posto em escala global, considerando-se números absolutos. Mas o Brasil registra, também nessa área, importantes desigualdades macrorregionais, com a situação sendo melhor no Sul do que no Norte.
Na capital paulista, que em 2025 completa 40 anos de uso ininterrupto da fluoretação da água, a medida é a principal responsável pelo declínio na prevalência e severidade da cárie dentária.
Em 1985, quando teve início a fluoretação, apenas 5% das crianças paulistanas estavam livres da doença na idade-índice de 12 anos, usada por epidemiologistas para comparações.
Essa porcentagem se elevou para 40% em 2002 e alcançou 55% em 2023. O número médio de dentes atingidos por cárie declinou de 6,5 em 1985 para 1,4 em 2023.
Se a decisão de Kennedy Jr fosse levada em conta na capital paulista, esses números dão a medida do impacto brutalmente negativo sobre a saúde bucal das crianças paulistanas.
Em São Paulo, e no Brasil, o emprego da tecnologia de fluoretação das águas para consumo humano, pela Sabesp e demais empresas de tratamento da água, é amparada pela lei 6.050, de 1974, corroborada pela lei 14.572, que instituiu em 2023 a Política Nacional de Saúde Bucal.
Baixo Guandu, no Espírito Santo, é a primeira cidade brasileira em que a medida foi implementada, em 1953. Diferentemente dos EUA, no Brasil a decisão sobre o tema não cabe, portanto, às autoridades locais de saúde e saneamento, mas ao Congresso Nacional. Sua execução, porém, nos termos das leis e normais nacionais, compete à empresa de tratamento da água que administra o setor em cada cidade.
Por sua comprovada segurança e eficácia, a fluoretação das águas de abastecimento público é recomendada por entidades de odontologia e de saúde pública em todo o mundo. Inclusive pelo CDC dos EUA e pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
4.
Mas Kennedy Jr anunciou também que o governo Trump retirará os Estados Unidos da OMS já nos primeiros dias de governo. Essa decisão foi duramente criticada, dentro e fora dos EUA, mas foi tomada no dia da posse de Trump, por meio de uma “ordem executiva”.
O país sediou, no pós-Guerra, a criação da OMS, instituída como um órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) em 17 de abril de 1948.
Nas últimas décadas a participação estadunidense no financiamento da OMS, cujo orçamento anual é de cerca de US$ 6,8 bilhões, é de aproximadamente US$ 450 milhões. Boa parte dos recursos da OMS tem origem em doações de apoiadores não estatais.
Dentre os países, a participação dos EUA gira em torno de 20%, o que faz enorme diferença no orçamento. Mas Trump quer dar outro destino a esse dinheiro.
Porém, a saída dos EUA do órgão fragiliza não apenas a OMS, mas a própria ONU – um conhecido instrumento de exercício do poder imperial daquele país.
E prejudica, sobretudo, populações ao redor do mundo, não apenas a população estadunidense, que ficará desprotegida de acordos globais sobre epidemias e pandemias.
Impactará forte e negativamente os povos da África, da Ásia e da América Latina, regiões onde a OMS participa ativamente nos esforços para assegurar proteção sanitária universal.
Nas três américas, a OMS atua por meio de sua representação na região, a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS). O órgão supranacional vem desenvolvendo atividades decisivas para a saúde pública em vários países, há mais de um século.
São feitos notáveis na prevenção e controle de epidemias, como o processo de erradicação da varíola – esforço mundial do qual participou o brasileiro Ciro de Quadros que, em seguida, dedicou-se ao controle da poliomielite nas Américas, tendo sido bem-sucedido mesmo enfrentando enormes dificuldades, inclusive conflitos armados em El Salvador, Nicarágua e Peru.
Criada em 1902, a OPAS tem sede em Washington, se integrou à OMS no processo de instituição do órgão mundial da ONU e teve, até o momento, 11 diretores. Dois brasileiros a dirigiram: Carlyle Guerra de Macedo, no período de 1983 a 1995 e Jarbas Barbosa, seu atual diretor, eleito em 2022.
O SUS, criado em 1988, e o Programa Mais Médicos, ambos duramente criticados por conservadores no Brasil, contaram com apoios decisivos da OPAS, que também participou das articulações de que resultou o Programa Nacional de Imunizações (PMI), em 1973.
Atualmente, o Programa Nacional de Imunizações disponibiliza 48 imunobiológicos a todos os brasileiros, gratuitamente, por meio do SUS: 31 vacinas, 13 soros e 4 imunoglobulinas.
A saída dos EUA da OMS atinge duramente a OPAS e, indiretamente, todas as suas atividades na América Latina, incluindo o Brasil.
O antivacinismo, o antifluoracionismo, a renúncia à liderança na OMS, todas essas medidas parecem não se coadunar com o papel que os EUA exercem no mundo contemporâneo. Então, por quê?
Dinheiro. Negócio. Os interesses privados entranharam-se a tal ponto no interior do poder do império norte-americano, que começa a se espraiar sobre os instrumentos de exercício desse poder, uma espécie de “anarquia da produção capitalista”, perdendo-se a perspectiva do interesse público – ainda que se trate, no caso de Donald Trump, do interesse público apenas nacional, como reiterou, de modo inequívoco, em seu discurso de posse em 20/1/2025.
O negacionismo, em suas diferentes expressões, das vacinas às mudanças climáticas, não é, portanto, desinteressado. Não é apenas produto de notável ignorância. É negócio.
O modo jubiloso com que Donald Trump se referiu ao petróleo na cerimônia de posse expressa um tipo de negacionismo motivado por interesses econômicos e não por desconhecimento sobre o significado climático de seguir queimando petróleo.
Trata-se, portanto, de uma espécie de negacionismo de negócios, em que interesses particularistas prevalecem sobre o interesse público, destruindo políticas públicas e comprometendo o interesse do país em acordos internacionais.
Até onde o negacionismo de negócios prevalecerá no governo Donald Trump? Resposta nos próximos quatro anos. Ou em alguns meses.
*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP. Autor, entre outros livros, de SUS: uma reforma revolucionária (Autêntica). [https://amzn.to/46jNCjR].
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