Projeto que quer a volta os manicômios pode ser votado na Câmara; entidades de saúde mental são contra e pedem arquivamento

Tempo de leitura: 31 min
Fotos: Maíra Cabral/Mídia Ninja e Tomaz Silva/Agência Brasil

Por Conceição Lemes

As atenções de entidades, associações e coletivos da área de saúde mental estão voltadas neste momento para o plenário da Câmara dos Deputados. 

É que a Câmara pode votar na noite desta quarta-feira, 11/12, o projeto de lei 551/2024, do deputado federal Jordy (PL-RJ), que, em resumo, quer trazer de volta os manicômios. 

Na segunda-feira, 09/12, requerimento para a tramitação urgente foi aprovado.

Na terça-feira, 10/12, já entrou na pauta de votação da Câmara.

Ontem, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) encaminhou ao Congresso Nacional seu posicionamento.

No documento, o ”CFP manifesta profunda preocupação com a tramitação açodada do PL, que foi apresentado em março deste ano, acompanhado de requerimento de urgência e eliminando possibilidades concretas de discussão ampla acerca de seu conteúdo”.

 A Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), atualmente presidida pela médica psiquiatra Ana Paula Guljor, publicou ontem uma nota técnica (na íntegra, mais abaixo) pela rejeição do projeto. 

A Abrasme analisa ponto por ponto do projeto de lei do deputado.

Logo no início, diz:

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”é uma reação à Resolução CNJ (Conselho Nacional de Justiça) nº 487, de 15 de fevereiro de 2023, que fixa procedimentos e prazos para o cumprimento legal e a realização por consequência do processo de desinstitucionalização”.

Rechaça veementemente a justificativa de que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)  ”extrapolou” os seus limites institucionais. 

A Abrasme afirma:

”O CNJ não ‘legislou’ e nem ‘extrapolou’ seus limites institucionais, ao contrário, reforçou sua missão institucional de ‘promover o desenvolvimento do Poder Judiciário em benefício da sociedade, por meio de políticas judiciárias e do controle da atuação administrativa e financeira’. Garantindo a efetividade das leis já vigentes no país”.

Em 19 de março de 2024, a RENILA — Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial fez uma carta contra o projeto, pedindo o seu arquivamento.  

Ela foi assinada por 619 entidades, associações, coletivos emandatos parlamentares (na íntegra, abaixo). 

“Hoje estamos mobilizados no Brasil todo pedindo o arquivamento do projeto”, afirma Rosangela Cecim Albim, membro da Secretaria Executiva Nacional da RENILA.

“No mínimo, queremos que o projeto saia de pauta e possa ser debatido com a sociedade”, acrescenta. 

O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) é um dos signatários da nota técnica da Abrasme e da carta aberta da RENILA

Abaixo, a íntegra de ambas.

*****

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE MENTAL (ABRASME)

Nota técnica

PL 551/24

1. Assunto

Essa Nota Técnica visa analisar o PL 551/24, apresentado pelo Deputado Federal Carlos Jordy no dia 05/03/2024 na Câmara Federal dos Deputados. O presente Projeto de Lei tem como objetivo alterar a Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, para dispor sobre a internação compulsória de pessoas com transtornos mentais em cumprimento de penas e medida de segurança.

O Projeto de Lei do Deputado é uma reação à Resolução CNJ (Conselho Nacional de Justiça) nº 487, de 15 de fevereiro de 2023 que fixa procedimentos e prazos para o cumprimento legal e a realização por consequência do processo de desinstitucionalização. Dessa forma, é parte de uma agenda para a manutenção do status atual dos Hospitais de Custódia, como foi o Projeto de Decreto Legislativo nº 81/2023 (3567445), apresentado pelo deputado Kim Kataguiri (União/SP).

2. Referências

Art. 49, inciso I, da Constituição

Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007

Lei 10.216/01

Lei no 13.146/2015

Resolução CNJ nº 113/2010

Recomendação CNJ nº 35/2011

Resolução CNPCP nº 4/2010

3. Sumário executivo

A ABRASME se manifesta pela rejeição do PL 551/2024, do Deputado Federal Carlos Jordy, tanto pelas inconsistências em relação às atribuições das diversas tipologias de internação, não trazendo assim, nenhuma inovação ou melhoria a Lei 10.216/01.

4. Análise

Considerando a apresentação do PL 551/2024 (Altera a Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001) que tem como intenção alterar a Lei 10.216/21 e dispor sobre a internação compulsória de pessoas com transtornos mentais em cumprimento de penas e medida de segurança;

Considerando que o respectivo Projeto de Lei busca incluir no art. 9º da Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, o acréscimo de três incisos, com o objetivo de garantir a internação compulsória de pessoas que forem condenadas ao cumprimento de pena ou de medida de segurança, bem como, criar alas exclusivas nos equipamentos de saúde (buscando o isolamento dos mesmos), garantindo nenhum contato, dos mesmos, com os demais usuários e usuárias;

Considerando que a Lei 10.216/01 já tipifica três tipos de internação, sendo dois deles construídos com as equipes de saúde, sendo ato médico a sua prescrição, a internação voluntária e a involuntária e um terceiro sendo de prerrogativa exclusiva do sistema de justiça (a internação compulsória);

Considerando o Art. 4º do Estatuto da Pessoa com Deficiência: “Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação”, o Art. 11: “A pessoa com deficiência não poderá ser obrigada a se submeter a intervenção clínica ou cirúrgica, a tratamento ou a institucionalização forçada”, o Art. 13: “A pessoa com deficiência somente será atendida sem seu consentimento prévio, livre e esclarecido em casos de risco de morte e de emergência em saúde, resguardado seu superior interesse e adotadas as salvaguardas legais cabíveis” e o Art. 88: “Praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência”. Importante destacar que o Estatuto da Pessoa está assentado na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo;

Considerando que no PL 551/2024 afirma: “§1º As pessoas que forem condenadas ao cumprimento de pena ou de medida de segurança, acometidas de algum transtorno mental que, a critério médico, represente perigos para terceiros, serão internadas compulsoriamente”. Nesse inciso o deputado imputa a decisão do médico a realização da internação compulsória, no entanto, não especifica quem realizará a internação compulsória, prerrogativa exclusiva da justiça (que já tem isso tipificado na Lei 10.216/01). Importante destacar que a equipe de saúde e o ato médico, está associado, não a internação compulsória, mas sim, a internação involuntária. Nesse sentido, o Projeto de Lei está confuso, em relação às tipologias de internação e quem poderá realizar;

Considerando que no PL afirma: “O disposto no artigo 9º desta Lei não impede à autoridade judiciária competente determinar o cumprimento de medida internação compulsória, de caráter preventivo ou definitivo, em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico ou outra instituição congênere, sempre que as unidades de atendimento à saúde gerais ou exclusivas ofertadas pelo Poder Público não oferecerem as condições de segurança exigidas à proteção dos demais pacientes, dos profissionais da saúde em atuação no local e da população em geral, especialmente quanto ao risco de fuga”. Nesse trecho o Deputado proponente afirma que a internação compulsória é da autoridade judiciária, algo que não deixa claro no inciso 1 que quer alterar na Lei 10.216/01. Evidenciando a inconsistência do PL em lidar com as tipologias da internação e não trazendo consequentemente nenhuma melhoria a Lei 10.216/01;

Considerando que o PL afirma: “§2º Os estabelecimentos de saúde que forneçam serviços de atenção à saúde mental disporão, obrigatoriamente, de setores e alas que possam individualizar a internação de pacientes de maior periculosidade e daqueles que estejam em cumprimento de penas ou medidas de segurança, com instalações e equipamentos que os mantenham separados dos demais pacientes, e que disponham de estratégias efetivas de contenção, caso necessário”. Neste inciso e no 3 apresentado no PL busca criar nos equipamentos especializados de saúde um tipo de separação dos deficientes psicossociais que sejam oriundos dos Hospitais de Custódia, criando espaços segregadores e que não estão voltados à reabilitação psicossocial e sua estratégia de ressocialização e inclusão social. Importante destacar que o Estatuto da Pessoa com Deficiência impede essa prática. Dessa forma, uma lei ordinária não pode suplantar dispositivos previstos em uma legislação que foi aprovado com as regras de status constitucional;

Considerando que a Resolução CNJ nº 487/2023 se assenta nas legislações já existentes no país e no sentido ontológico previsto na Lei 10.216/01 e nas diretrizes e recomendações dos organismos internacionais (ONU – Organização das Nações Unidas e OMS) da implementação de processos de desinstitucionalização;

Considerando que a Resolução 487/23 está assentado em resoluções e recomendações do próprio órgão e de conselhos de direitos como:

Resolução CNJ nº 113/2010, que dispõe sobre os procedimentos relativos à execução de pena privativa de liberdade e de medida de segurança, no âmbito dos Tribunais.

Recomendação CNJ nº 35/2011, que estabelece diretrizes para a desinstitucionalização e o redirecionamento do modelo assistencial à saúde mental em serviços substitutivos em meio aberto, indicam a adoção de política antimanicomial na execução das medidas de segurança, nos termos da Lei nº 10.216/2001.

Resolução CNPCP nº 4/2010, indica que no prazo de dez anos, o Poder Executivo, em parceria com o Poder Judiciário, deveria ter implantado e concluído a substituição do modelo manicomial de cumprimento de medida de segurança pelo modelo antimanicomial, através de programa de atenção ao paciente judiciário

Resolução nº 08, de 14 de agosto de 2019, que dispõe sobre soluções preventivas de violação e garantidoras de direitos aos portadores de transtornos mentais e usuários problemáticos de álcool e outras drogas

Considerando que a resolução do CNJ não cria nada, apenas estabelece diretrizes e procedimentos para aplicabilidade das normas nacionais e internacionais vigentes, a exemplo da Constituição Federal, do Código Penal e do Código de Processo Penal, da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216/2001), da Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.416/2015) e da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, que foi internalizada pelo país com força de emenda constitucional (Decreto Nº 6.949/2009);

Considerando que a proposta da Política Antimanicomial foi, justamente, fazer com que as regras já existentes (e válidas de longa data) sejam efetivamente cumpridas, ao mesmo tempo oferecendo melhores instrumentos para que o Poder Judiciário possa se adequar a essas normas;

Considerando que a Resolução, foi aprovada em votação plenária pelos conselheiros do CNJ e com força normativa para o Judiciário, parte de extensa base legal traduzida pela Política Antimanicomial do Poder Judiciário e não cria nenhuma ciência, instrumentalizando a aplicação da base legal elencada em seus “considerandos”. Quando as condições de internação em hospitais de custódia violam o cumprimento da lei, torna-se, obrigatoriamente, objeto de atenção do Judiciário.

Considerando que a temática foi discutida amplamente com diferentes atores por quase dois anos no Grupo de Trabalho instituído pelo CNJ no contexto da audiência sobre a condenação do Brasil no caso Ximenes Lopes vs. Brasil, que trata de paciente psiquiátrico que morreu em uma clínica psiquiátrica, o Damião Ximenes Lopes. Esse grupo contou com representantes também da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e Organização Mundial da Saúde (OMS);

Considerando que o paciente com transtorno mental em medida de segurança continuará sendo acompanhado pelo Judiciário, inclusive em seu Artigo 13 da Resolução recomenda à autoridade judicial a interlocução constante com a equipe do estabelecimento de saúde que acompanha a pessoa, a EAP ou outra equipe conectora, para que sejam realizadas avaliações biopsicossociais a cada 30 (trinta) dias;

Considerando que o CNJ não muda regras para internações psiquiátricas e não faz avaliações gerais sobre situações específicas de cada pessoa em medidas de segurança – cada caso deve ser analisado pelo juízo competente, dentro das especificidades de cada situação, mas sempre zelando pela aplicação das leis e normas em vigor, que é o que a resolução busca instrumentalizar;

Considerando que o juiz seguirá pautado na opinião de equipes médicas e de saúde, que vão recomendar ou não o seguimento da internação ou indicar a continuidade do atendimento sob outro modelo ou regime quando necessário;

Considerando as diferentes necessidades das pessoas inimputáveis em medida de segurança devem ser observadas no tratamento seguindo o Projeto Terapêutico Singular (PTS) que também consta na resolução;

Considerando que a política não muda o cumprimento de penas. As penas são cumpridas por aqueles que compreendem o crime que praticaram. A resolução só diz respeito a quem não tinha consciência de seus atos, situação atestada após avaliação por equipe de saúde especializada. A lei considera essas pessoas inimputáveis;

Considerando que nem todos os pacientes precisarão de internação e, portanto, leito em Hospital Geral. Segundo determina a resolução, cada pessoa deve ter seu Projeto Terapêutico Singular (PTS) formulado e as respostas para cada necessidade. A RAPS conta com vários serviços, por exemplo:

Na Atenção Básica • Unidade Básica de Saúde; • Núcleo de Apoio a Saúde da Família; • Consultório de Rua; • Apoio aos Serviços do componente Atenção Residencial de Caráter Transitório; • Centros de Convivência e Cultura. Atenção Psicossocial Estratégica • Centros de Atenção Psicossocial nas suas diferentes modalidades. Atenção de Urgência e Emergência • SAMU 192; • Sala de Estabilização; • UPA 24 horas e portas hospitalares de atenção à urgência /pronto socorro, Unidades Básicas de Saúde. Atenção Residencial de Caráter Transitório • Unidade de Acolhimento; • Serviço de Atenção em Regime Residencial. Atenção Hospitalar • Enfermaria especializada em hospital geral; • Serviço Hospitalar de Referência (SHR) para Atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas. Estratégia de Desinstitucionalização • Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT); • Programa de Volta para Casa (PVC). Estratégias de Reabilitação Psicossocial • Iniciativas de Geração de Trabalho e Renda; • Empreendimentos Solidários e Cooperativas Sociais;

Considerando que a resolução não abole nenhum tipo de avaliação de competência de outras áreas. Inclusive, a resolução fala em vários momentos em respeitar e levar em conta as considerações e avaliações da equipe de saúde, que inclui os profissionais da especialidade médica, no acompanhamento dos pacientes, considerando a noção ampliada de saúde da OMS e seus determinantes sociais e a mudança de paradigma trazida pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), conforme listado em seu Artigo 2º;

Considerando que dentre os que tiverem necessidade de internação, após avaliação por equipe de saúde, ficarão internados nos dispositivos previstos no SUS/RAPS enquanto necessário como parte do tratamento. O fato de terem cometido algum ato definido como crime não os torna mais suscetíveis do que os demais para cometer outros atos. O manejo de situações de risco psiquiátrico segue um protocolo definido pelos profissionais da saúde, aplicável a todas as pessoas em tratamento;

Considerando que a melhor forma de proteger a todos – tanto as pessoas em medidas de segurança, quanto a sociedade em geral –, garantindo a aplicação de normas e leis em vigor definidas segundo melhores práticas observadas no Brasil e no mundo, é que essas pessoas estejam sob cuidados especializados, com profissionais especializados e em locais que ofereçam o tratamento adequado, o que não é o caso de muitos hospitais de custódia em operação no país, conforme apontado pela própria Cremesp em relatório publicado em 2014 (aqui);

Considerando que para além da evidência de própria análise médica sobre a situação dos hospitais de custódia mencionada na questão anterior, é importante destacar que é função precípua do Judiciário garantir o cumprimento de leis, que no caso, apontam para a impossibilidade de operação dos hospitais de custódia no formato que estão no país hoje. A partir dessa premissa, o trabalho pela melhoria das políticas públicas deve ser contínuo;

Considerando que o número de medidas de segurança em unidades prisionais no Brasil está em queda, segundo dados do Poder Executivo – em 2011 eram 3989 pessoas nessa situação no país, número reduzido em 2022 para 1987 pessoas.

Considerando que a responsabilidade pela elaboração dos Projetos Terapêuticos Singulares (PTS), uma vez determinada a medida de segurança pelo Judiciário, é dos profissionais da área de saúde, conforme indicado em diversos momentos da resolução, a exemplo do Artigo 12, parágrafo 1. § 1º O acompanhamento da medida levará em conta o desenvolvimento do PTS e demais elementos trazidos aos autos pela equipe de atenção psicossocial, a existência e as condições de acessibilidade ao serviço, a atuação das equipes de saúde, a vinculação e adesão da pessoa ao tratamento.

Considerando que diversas unidades da federação já se adequaram à legislação vigente e que estados como Rio de Janeiro e Piauí fecharam Hospitais de Custódia, enquanto Goiás nunca teve esse tipo de estabelecimento. Adicionalmente, diversos tribunais desenvolveram fluxos próprios para encaminhamentos, e vimos multiplicar os grupos de trabalho e ações interinstitucionais para a discussão do tema em pelo menos 11 estados;

Dessa forma, diante do exposto o Conselho Nacional de Justiça não “legislou” e nem “extrapolou” seus limites institucionais, ao contrário, reforçou sua missão institucional de “promover o desenvolvimento do Poder Judiciário em benefício da sociedade, por meio de políticas judiciárias e do controle da atuação administrativa e financeira”. Garantindo a efetividade das leis já vigentes no país. Algo, que na justificativa do PL afirma o contrário, tentando assim, justificar uma alteração legal para impedir o cumprimento da resolução do CNJ.

5. Conclusão

A partir desses considerandos se faz necessário a rejeição do PL 551/2024, do Deputado Federal Carlos Jordy, tanto pelas inconsistências em relação às atribuições das diversas tipologias de internação, não trazendo assim, nenhuma inovação ou melhoria a Lei 10.216/01, ao contrário, criando confusões e imprecisões em sua aplicação, bem como, por entrar em choque com o Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pelo Decreto nº 6.949/2009, e com status equivalente ao de emenda constitucional (art. 5º, § 3º, CF), logo não pode ser impactado por uma lei ordinária.

São Paulo, 10 de dezembro de 2024

Assinam esta nota

Associação Brasileira de Saúde Mental – ABRASME

Associação Brasileira de Enfermagem – ABEn

Associação Brasileira de Psicologia Social – ABRAPSO

Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – CEBES

Conselho Federal de Serviço Social – CFESS

Colegiado de Apoiadores da RAPS de SC

Federação Nacional das Psicólogas e dos Psicólogos – FENAPSI

Frente Nacional de Negros e Negras da Saúde Mental

Frente Parlamentar em Defesa da Saúde Mental e Luta Antimanicomial/RJ

Frente Parlamentar em Defesa da Saúde Mental e da Luta Antimanicomial/ES

Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial

Movimento Nacional de População de Rua – MNPR

Sindicato das/os Psicólogas/os do Estado de São Paulo – SINPSI-SP

Sindicato das/os Psicólogas/os da Bahia – SINPSI-BA

Sindicato das/os Psicólogas/os do Estado do Rio de Janeiro – SINPSI-RJ

*****

CARTA ABERTA da RENILA

PL 551/2024, ARQUIVAMENTO JÁ! 

As entidades, associações, coletivos e mandatos parlamentares signatários desta Nota vêm tornar pública sua indignação e pedir imediato arquivamento do Projeto de Lei (PL 551/2024), que visa alterar a Lei nº 10.216 de abril de 2001, também conhecida como Lei Paulo Delgado – Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira. A alteração proposta descaracteriza completamente os princípios que embasaram a criação da Lei 10.216/2001, que assegura a proteção e o cuidado de base comunitária às pessoas em sofrimento mental, fazendo imposições absurdas que ferem frontalmente os direitos constitucionais garantidos às pessoas em sofrimento psíquico. 

O referido PL propõe alterar o artigo 9º da Lei 10.216/2001, dispondo que pessoas que estiverem em cumprimento de pena ou de medida de segurança devem ser internadas compulsoriamente, deixando a cargo exclusivo do poder médico a avaliação de periculosidade do sujeito. O PL coloca ainda, como exigência, a necessidade de que os serviços de saúde que atendam esse público disponham de alas separadas para internação dessas pessoas, isolando-as e confinando-as, remontando as tecnologias do século XIX no que se refere ao campo da Saúde Mental.

Ademais, propõe a manutenção dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico – os manicômios judiciários, contrariando a Resolução nº 487/2023 do Conselho Nacional de Justiça, que determina, em cumprimento à condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que pessoas em sofrimento psíquico em conflito com a lei devem ser tratadas no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).  O texto do PL invoca o estigma há muito conhecido e combatido pelos movimentos da luta antimanicomial: a da pressuposta periculosidade do chamado louco infrator que, historicamente, sob a justificativa do cuidado e do alegado perigo de seus atos frente à sociedade considerada “normal”, apenas os encarcera, segrega e exclui.

Importa ressaltar que não há dados que apontem maior prevalência ou reincidência de pessoas em sofrimento mental no cometimento de infrações penais, principalmente no que tange a crimes violentos, tanto é que muitos estados não dispõem de manicômios judiciários para encarceramento dessas pessoas. Além disto, experiências como o PAI-PJ (Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário), criado em 2000 em Minas Gerais e o PAILI (Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator), criado em 2006 em Goiás, que sustentam o cuidado em saúde às pessoas com sofrimento mental em conflito com a lei, substituindo os manicômios judiciários, apresentam índices de cerca de 5% de reincidência  no PAILI e apenas 2% no PAI-PJ, ambas muito abaixo da média de reincidência verificada nos crimes cometidos por pessoas “normais”.

Segundo a Constituição em seu Artigo 196, todo brasileiro tem direito ao melhor cuidado em saúde em condições de igualdade a todos. Criar uma legislação que discrimina pessoas segundo um critério mítico e objetivamente inverificável de “periculosidade”, obrigando sua internação em serviços de saúde de características carcerárias e excludentes, é, por conseguinte, inconstitucional. Quanto ao mérito das internações é preciso relembrar que a mais alta autoridade mundial de saúde a Organização Mundial da Saúde (OMS), publicou em junho de 2021 as Novas Diretrizes de Saúde Mental, fruto de uma pesquisa de 10 anos, em que aponta a necessidade de superação das abordagens biomédico centradas e convoca pelo fechamento de instituições asilares, como os manicômios judiciários. 

Soma-se a isto o fato dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico estarem submetidos à administração penitenciária, priorizando dispositivos e rotinas de segurança, em detrimento das práticas terapêuticas de cuidado em saúde mental. O Relatório de Inspeções aos Manicômios, realizado em 2015, pelo Conselho Federal de Psicologia e a Ordem dos Advogados do Brasil aponta que o perfil dos manicômios judiciários fere a legislação, mantendo “privados de quaisquer direitos um número desconhecido de pessoas com transtornos mentais e/ou necessidades decorrentes do uso de álcool ou outras drogas”. Também é preciso afastar diversas inverdades que têm sido espalhadas desde a publicação, em fevereiro de 2023, da Resolução nº 487, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a qual o PL visa combater. 

Primeiramente, é preciso esclarecer que pessoas em medida de segurança não cumprem pena nem são criminosas frente à lei, já que elas foram consideradas inimputáveis (isentas de pena) em relação ao seu delito, como dispõe o próprio Código Penal. A possibilidade de imposição de tratamento frente a esses casos, por meio da internação compulsória, tem como fim o tratamento e restabelecimento da saúde e não a punição. A Resolução direciona a prioridade para atendimento ambulatorial em serviços da Rede de Atenção Psicossocial, mas não impede a internação em serviços de base territorial, já que CAPS 24h e os leitos de saúde mental em hospital geral dispõem dessa modalidade de tratamento intensivo.

É importante considerar que a Resolução do CNJ não se deu de forma espontânea e/ou arbitrária: trata-se de cumprimento do Ponto Resolutivo nº 8 da sentença da Corte Interamericana de Direito Humanos (CIDH) que condenou o Brasil no Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Além de ser a primeira condenação internacional do Brasil, que ocorreu emblematicamente, por violações de direitos humanos que ocasionaram a morte de Damião Ximenes em um manicômio situado em Sobral/CE, a sentença, apesar de publicada em 2006, até 2021 não havia sido cumprida. O CNJ é convocado pela CIDH a participar de audiência pública e como um dos efeitos, criou um Grupo de Trabalho composto por pessoas especialistas de diversas áreas do conhecimento e com trajetórias importantes no campo da saúde mental, álcool e drogas e elaborou-se a referida Resolução. Portanto, ela foi construída de forma técnica, legal e em respeito às normativas nacionais e internacionais, até mesmo porque o criminoso julgado e culpado é o Estado Brasileiro, não os loucos infratores.

A medida de segurança continuará existindo e, ao contrário do que tem sido disseminado amplamente na intenção irresponsável de causar medo à população, o louco infrator não está “solto” ou desassistido; pelo contrário, tem obrigação legal de comparecer e comprovar que tem ido a seus atendimentos, e as equipes de saúde têm o dever de atualizar, periodicamente, o judiciário, sobre a condução do caso.  Portanto, o CNJ não invadiu o espaço dos poderes legislativo e executivo, já que a Resolução incide sobre as Varas de Execução Penal do país, responsáveis pelo acompanhamento das medidas de segurança determinadas nos processos penais.  O fechamento das portas de entrada e fechamento de tais instituições apenas são conclusões naturais do fato de que o judiciário não mais pode encaminhar e manter pessoas nessas instituições, pelos motivos supracitados.

Um hospital que teme cuidar de seus pacientes a ponto de demandar celas e alas com trancas não pode ser aceito como instituição de saúde. Médicos e juízes não podem operar como oráculos que adivinham o tempo que uma crise dura e leem nas constelações qual seria o “risco” de reincidência. O populismo penal não pode ser a base pela qual se constrói políticas públicas de saúde. Trata-se, portanto, de um Projeto de Lei injustificável, tanto do ponto de vista jurídico quanto técnico. O tratamento das pessoas em sofrimento mental, em conflito ou não com a lei, não pode ser médico-centrado, nem se realizar em instituições asilares que o juiz considere mais adequadas. Pelo contrário: deve seguir critérios clínicos, segundo avaliação de equipe interdisciplinar, assegurando acompanhamento multiprofissional, longitudinal e de base territorial. São estes os princípios da Lei n. 10 216/2001, e qualquer acréscimo ao texto da lei que os contrarie não pode ser incluído em seu texto. Ela é produto e conquista da Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica Brasileira, apoiada pelo parlamento. 

Por fim, citando o psiquiatra baiano Lopes Rodrigues, “loucos perigosos são produtos da ignorância médica. O que existe não são loucos perigosos, são lúcidos perigosos que ameaçam a dignidade humana daquele que sofre por problemas psíquicos.” Reafirmamos nosso posicionamento de que só há possibilidade de cuidado se for em meio aberto, por meio dos serviços substitutivos da RAPS.

 

Assinam a Carta:

 

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