Ângela Carrato: Os militares terroristas e os terroristas do ”mercado”
Tempo de leitura: 7 minPor Ângela Carrato*
A semana que passou já entrou para a história do Brasil por dois motivos: o relatório final da Polícia Federal sobre os atos golpistas incriminando Bolsonaro e mais 36 pessoas, a maioria militares de alta patente, e as reações do chamado “mercado” ao pacote de cortes de gastos anunciado pelo governo Lula.
Mesmo a mídia corporativa os tratando como assuntos separados, eles precisam ser analisados em conjunto, pois o objetivo era e continua sendo o mesmo: inviabilizar um governo que tem compromisso com os interesses da maioria da população.
A leitura das 884 páginas do relatório da PF, das quais o ministro Alexandre de Moraes retirou o sigilo, permitindo que todos tenham acesso à sua integra, deixa nítida uma trama complexa, que não se limitou aos atos terroristas acontecidos em dezembro de 2022, quando da diplomação de Lula, ou à tentativa de golpe de estado em 8 de janeiro de 2023.
A trama retroage a 2019 e mostra como Bolsonaro, duas dezenas de militares e vários civis articularam para se manter no poder por meio de atos violentos.
Se bem sucedido, o golpe de 2023 seria mais truculento do que o de 1964, aquela noite escura que durou 21 anos. Estava previsto até um campo de concentração para opositores, nos moldes do nazismo, na Alemanha, e do que fez Pinochet, no Chile.
A trama trazida a público destrincha articulações que começam em meados do governo Bolsonaro e chegam até o atentado terrorista acontecido há pouco mais de duas semanas, em Brasília, quando um bolsonarista pretendia explodir o STF, matar o ministro Moraes e acabou vítima dos explosivos que portava.
Se não fosse a suspensão do sigilo a este relatório, a mídia corporativa continuaria afirmando que o último atentado foi fruto da atuação de um “lobo solitário”, como apressadamente (ou convenientemente?) desde o primeiro momento se referiu ao tal de Tio França.
Continuaria tratando o assunto de forma superficial e fazendo coro com Bolsonaro e os demais golpistas por anistia.
Apesar da gravidade dos fatos relatados e comprovados, a divulgação que a mídia corporativa fez desse relatório foi longa mas sem qualquer aprofundamento.
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O Jornal Nacional, da TV Globo, principal noticiário do país, por exemplo, passou longe de apresentar reportagens próprias, de manchetes chamativas e das reconstituições que utilizou para criminalizar, sem provas, Dilma Rousseff ou o próprio Lula.
Qualquer um, minimamente informado, sabe que notícias e manchetes exaustivamente repetidas pelo JN e demais veículos da mídia corporativa ao longo de meses e anos foram fundamentais para inocular o ódio que ainda persiste na sociedade brasileira em relação ao PT e aos seus líderes, sem esquecer que serviram para respaldar o golpe que derrubou Dilma, em 2016, e a prisão de Lula, em 2018.
Dois dias após a divulgação, o relatório final da PF sumiu das manchetes. O mínimo que a mídia deveria ter feito, depois da vergonha de não ter realizado reportagens investigando o 8 de janeiro ou o último atentado em Brasília, era caprichar nas repercussões, ouvindo políticos, empresários, lideranças sindicais e movimentos sociais sobre assuntos tão graves como a tentativa de implantar uma ditadura no Brasil e as articulações para assassinar Lula, seu vice, Geraldo Alckmin, e Alexandre de Moraes.
Como nada disso está sendo feito, fica evidente que há deliberação do “andar de cima” para abafar o assunto.
Já as propostas contidas no pacote fiscal anunciadas pelo governo na quarta-feira imediatamente viraram manchetes.
O “mercado” age de forma terrorista para desacreditar a política econômica do governo e a mídia, sua aliada, bate bumbo e tenta convencer o seu “respeitável público” que a economia brasileira entrará em colapso se tais medidas se concretizarem.
Para se tornar realidade, essas medidas precisarão ser aprovadas pelo Congresso Nacional. Dificilmente a votação acontecerá agora, pois estamos às vésperas do recesso de natal e final de ano.
No entanto, desde já, a mídia não para de repercutir apenas junto ao “mercado” e aos seus adoradores os riscos para a economia brasileira de quem ganha até R$ 5 mil por mês ficar isento do imposto de renda, de os super-ricos passarem a pagar impostos, de alguns privilégios dos militares serem reduzidos e, principalmente, de o governo adotar medidas de maior controle e fiscalização em relação aos programas sociais ao invés de desvincular os pisos constitucionais destinados à saúde e à educação do patamar previsto.
Tão terroristas quanto os terroristas que tentaram impedir a posse de Lula para um terceiro governo é essa atitude do “mercado”, codinome adotado pela mídia para os super-ricos, aquele 1% que controla perto de 50% da riqueza nacional e que não aceita qualquer mudança nesta condição.
É importante lembrar que as famílias que controlam a mídia corporativa brasileira fazem parte deste 1%.
Não por acaso, assuntos sobre política e economia sempre são abordados separadamente por esta mídia, induzindo o cidadão comum a acreditar que não se articulam.
Só que esta articulação fica nítida quando se observa os objetivos últimos da ação terrorista de Bolsonaro, da turma em seu entorno e os da campanha do “mercado”, orquestrada pela mídia, contra as medidas anunciadas por Lula.
Se os militares terroristas não admitiam a posse de Lula para um terceiro mandato, os terroristas do “mercado” pretendem inviabilizar o seu mandato, possibilitando assim o retorno ao Planalto de um extremista de direita. O nome que conta com a preferência dessa turma é o ex-pupilo do próprio Bolsonaro, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas.
Não que Bolsonaro já seja, aos olhos do “mercado”, carta fora do baralho, mesmo inelegível e diante de sua dificílima situação. As chances de não ser condenado cada vez mais se aproximam de zero.
Mesmo assim, ele sempre será uma espécie de reserva estratégica dos bilionários para manterem seus privilégios.
Ele sabe disso e daí os apelos patéticos que têm feito em prol de anistia a Alexandre de Moraes, ao STF ou mesmo a admissão de que pretende fugir caso sua prisão seja decretada.
Ele iria para os Estados Unidos ou para a Argentina e de lá tentaria manter a lealdade do “gado”?
Mesmo num tempo marcado por mentiras, distorções e fake news, não deixou de soar absurda a entrevista que concedeu ao ultraconservador jornal estadunidense The Wall Street, em que apela a Trump para que imponha sanções à economia brasileira, caso seja condenado.
A entrevista dá bem a medida do “patriotismo” do ex-capitão. Como sanções econômicas penalizam a população como um todo, ele está se lixando com futuro dos brasileiros, desde que se safe dos crimes que cometeu.
Por mais truculento que seja, dificilmente Trump embarcará numa canoa dessas, porque, a cumprir o que promete, desde o primeiro momento jogará o seu país num enorme conflito interno, com a deportação de milhões de imigrantes.
Some-se a isso que sua imagem ficará profundamente abalada junto a governos aliados da Europa e de outras partes do mundo, se interferir na vida de um país democrático para salvar a pele de um notório criminoso, pretendente a ditador.
Para quem tem memória curta, a Cúpula do G-20, no Rio de Janeiro, ainda estava acontecendo, quando a Polícia Federal prendeu quatro militares e um integrante da própria PF, acusados de atentarem contra a democracia brasileira. Eles continuam presos e são peças-chave no relatório final da PF sobre os atos golpistas.
Voltando aos terroristas do “mercado”, a pancadaria contra as medidas fiscais anunciadas pelo governo continua dando o tom das manchetes. Na quinta-feira, um time de ministros capitaneado por Fernando Haddad, da Fazenda, se reuniu com a mídia para apresentar detalhes do pacote e corrigir o que ele chamou de “informações equivocadas” que circularam depois que o anúncio foi feito em rede nacional.
Com a paciência que o caracteriza, o ministro Haddad explicou que o objetivo do governo é garantir economia superior a R$ 70 bilhões aos cofres públicos entre 2025 e 2026. Até 2030, o valor pode passar dos R$ 320 bilhões, segundo cálculos feitos pelo governo.
Suas palavras e dados, pelo visto, não foram considerados, uma vez que o “mercado” manteve o dólar em forte alta, chegando a bater no pico de R$ 6,00, o maior da história.
Ao contrário de mostrar como não há motivo para esta alta, uma vez que o PIB deve crescer 3%, pelo segundo ano consecutivo, superando a maioria dos países, que a taxa de desemprego é de 6,2%, indicando quase pleno emprego, que o Brasil tem recebido enorme fluxo de investimento externo, a mídia insiste em falar somente na “alta recorde do dólar”.
Ao invés de dar nome aos bois, responsabilizando o Banco Central, dirigido pelo bolsonarista Roberto Campos Neto, por permitir tal descontrole em relação ao dólar, a mídia, porta-voz dos terroristas do mercado, responsabiliza as medidas anunciadas pelo governo Lula, pregando mais uma deslavada mentira à população brasileira.
Mentira que em nada fica a dever ao apoio, hoje por ela esquecido, a Bolsonaro e sua turma durante os quatro anos em que esteve à frente do Palácio do Planalto.
Cabe ao Banco Central vender dólar para conter ataques especulativos ao real.
Em pelo menos duas oportunidades, Campos Neto fez isso durante o governo Bolsonaro. Agora, cruza os braços e deixa o dólar subir às alturas, mesmo o país dispondo de reservas no valor de US$ 372 bilhões, o chamado fundo soberano, acumulado em sua maior parte nos governos Lula e Dilma.
Some-se a isso que o “teto de gastos”, principal regra fiscal criada em 2016 pelo governo golpista Temer, que limita o crescimento das despesas à inflação do ano anterior, permanece defendido e aplaudido pelos “terroristas” do mercado, como forma para golpear o governo Lula 3 pela via econômica.
Vale lembrar que o mesmo “arcabouço fiscal” foi alterado cinco vezes durante o governo Bolsonaro, sem que o “andar de cima” ou a mídia, sua porta-voz, fizesse qualquer alarde ou ameaçasse o ex-capitão com impeachment, apesar dos mais de 100 pedidos neste sentido recebidos pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, que os arquivou.
O orçamento que Lula herdou de Bolsonaro para seu primeiro ano de gestão era uma verdadeira trava para um governo que prometeu recolocar o Brasil nos trilhos da justiça social e do desenvolvimento. O terceiro governo Lula herdou um país quebrado e com a administração pública destroçada.
Alguém se recorda de a mídia corporativa ter feito o balanço do Brasil que os golpistas Temer e Bolsonaro legaram a Lula?
Recordo-me é de como essa mídia elogiou e continua elogiando o ex-ministro da Economia, Paulo Guedes, que ameaçou colocar uma granada no bolso dos funcionários públicos. Vejo como essa mídia faz de tudo para que Haddad se assemelhe a Guedes e como se mostra irritada por isso não acontecer.
Quando Lula, ao contrário de cortar em programas sociais e nas verbas para educação e saúde, que atingiriam em cheio os mais pobres, apresenta soluções que reduzem gastos e evita penalizar esses setores, o “terrorista” mercado, através da mídia, sua porta-voz, vai para cima do governo a fim de emparedá-lo.
Lula sabe disso e não por acaso parte das medidas propostas depende de aprovação do Congresso Nacional.
Não será fácil para a mídia continuar mentindo e responsabilizando a isenção de imposto de renda para parcela da classe média como culpada por uma crise econômica que não existe ou escondendo o seu apoio a que os super-ricos, dos quais é parte, sigam sem pagar impostos, mantendo o Brasil no topo dos países mais desiguais do mundo.
Está previsto para a terça-feira (10/12) manifestação em todo o país contra a anistia a Bolsonaro e aos golpistas.
A manifestação está sendo convocada por todas as centrais sindicais, CUT e CTB à frente, e conta com o apoio de uma infinidade de movimentos sociais. Esses atos devem funcionar como espécie de prévia do que acontecerá em 2025, envolvendo não apenas a questão da anistia.
Tão importante quanto colocar Bolsonaro e demais golpistas na cadeia é desmontar a tentativa de manter Lula refém do “arcabouço fiscal”, o golpe neoliberal aplicado pelos golpistas à economiae trava o desenvolvimento brasileiro.
2025 será, portanto, um ano crucial. O povo, que andava sumido das ruas, deve voltar a elas e não será fácil para o “andar de cima” e a sua mídia continuar espalhando mentiras e promovendo terrorismo econômico.
*Ângela Carrato é jornalista. Professora da UFMG. Membro do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
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