Mirko Casale: Cinco hipóteses para um veto infame. VÍDEO

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O veto do Brasil à Venezuela (Hipóteses e incógnitas)

Por Mirko Casale, AhíLes Va I Transcrição I Tradução ao português e legendas de Jair de Souza

O governo brasileiro vetou a entrada da Venezuela nos BRICS.

E embora tenha acontecido há vários dias, a decisão continua sendo mot

ivo de todo tipo de especulação, pois poucos encontram uma explicação convincente, a começar pela própria Brasília, que mudou tantas vezes sua versão que a cada esclarecimento escurece um pouco mais.

Poucos dias antes da reunião realizada em Kazan, na Rússia, o governo de Lula da Silva anunciou que o presidente brasileiro havia sofrido um acidente doméstico e não poderia comparecer ao evento.

Lula participaria por videoconferência e, em seu lugar, o seu ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, compareceria à cidade russa.

Um acidente ao qual mais de um mencionaria acidamente ao concluir a cúpula. Mas, não nos adiantemos, porque neste vídeo há muito para contar e ainda mais para analisar.

Aí vai.

A recente cúpula de Kazan tinha tudo para acontecer sem grandes contratempos, sem contratempos para os atuais integrantes dos BRICS e os futuros membros, e não para os seus rivais, vale o esclarecimento.

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E assim foi em boa medida, como lhes contamos no vídeo que dedicamos ao tema muito recentemente.

O grupo de países, que já experimentou uma expansão considerável no ano passado, estudava nesta reunião continuar a expandir-se.

Mas de uma forma um pouco mais gradual, para dar tempo de assimilar este recente crescimento. Assim, os novos ingressos seriam admitidos a partir desta cúpula com uma nova figura: a dos sócios.

A adesão como país associado seria o passo anterior para a adesão plena posterior. Foram muitos os candidatos e muitos que obtiveram o estatuto de sócios em Kazan. Sete países asiáticos, três africanos, dois latino-americanos e um europeu já estão desde agora na antessala da integração total.

Mas houve uma ausência que surpreendeu a mais de um, especialmente considerando que era um dos candidatos que mais entusiasmo gerava entre os membros dos BRICS, a República Bolivariana da Venezuela.

Contudo, as decisões sobre a entrada de mais países no grupo, tanto novos membros como novos sócios, devem ser tomadas por consenso. Portanto, mesmo que apenas um se opusesse à entrada da Venezuela, ela ficaria de fora.

E o que começou como um boato durante a cúpula, seria confirmado quase no final.

Um membro do grupo se opôs à adesão da Venezuela como sócio. E não qualquer membro, mas um dos quatro fundadores e, mais especificamente, aquele que fornece a primeira sigla do grupo, estamos falando sobre o Brasil. Imediatamente após um surto de relativa descrença entre internautas e analistas da Internet, uma pergunta começou a aparecer: por quê?

Por que Brasília vetou a entrada de uma nação latino-americana em um grupo que promove a multipolaridade e, portanto, precisa de mais vozes e peso regional latino-americano?

E teorias houve dezenas, para não dizer centenas. Mas podemos classificá-las amplamente em cinco grupos :Uma das hipóteses seria que o Brasil quer permanecer sendo de longe a nação latino-americana com o maior peso econômico nos BRICS sem ninguém para ofuscá-la.

Atualmente, principalmente devido às sanções contra ela, a Venezuela não seria rival nesse aspecto. Mas isso poderia mudar justamente com Caracas totalmente integrada aos mecanismos do grupo.

Se esta hipótese for verdadeira, as autoridades brasileiras teriam um conceito bastante peculiar de multipolaridade e integração regional. Mas, bem, não seria a primeira dissonância entre discurso e ação na história da geopolítica.

Outra teoria de linha semelhante sugere que a decisão de Brasília é política de Estado e vai muito além dos BRICS.

De acordo com esta abordagem, regionalmente, o Brasil tenderia a comportar-se de forma semi-imperial, guiado por um Ministério das Relações Exteriores que seria, de fato, a mais pura expressão de um estado profundo, profundamente ligado a Washington, com tal convicção que seguem suas diretrizes sem a necessidade de ser pressionado a fazê-lo.

Poucas vezes o Itamaraty, o edifício sede da chancelaria brasileira, foi tão mencionado globalmente em tão pouco tempo como nos dias de hoje. Evidentemente, em vez de uma vocação natural para imitar o Departamento de Estado, muitos veem na decisão de Lula fortes pressões dos Estados Unidos neste caso específico.

De acordo com essa abordagem, em Washington poderiam até tolerar que o Brasil brinque de multipolaridade com os chineses e russos em seu grupinho de amigos dos BRICS, mas não que dê balões de oxigênio a arquirrivais da Casa Branca como a Venezuela.

No entanto, vale lembrar que no ano passado Brasília não vetou a entrada à organização de ninguém menos que o Irã. E é difícil acreditar que naquela ocasião o telefone da Sala Oval estivesse quebrado.

Uma quarta explicação possível refere-se a questões de política eleitoral interna no Brasil.

Vamos recordar que Lula chegou ao poder em 2022 com uma margem de vitória de enfartar, nas mãos de uma daquelas coalizões do tipo “entre que cabe todo mundo”, que inclui os rivais de longa data do mandatário, entre os quais, seu atual vice-presidente, Geraldo Alckmin.

Nesse sentido, ao bater a porta na cara de Caracas, o presidente brasileiro teria querido agradar alguns dos seus aliados do governo.

Mas se essa era a ideia, não parece ter funcionado muito, a julgar pelos resultados das eleições municipais realizadas poucos dias após o veto, em que o partido de Lula e seus aliados obtiveram resultados bastante fracos, para dizê-lo suavemente.

A quinta hipótese que detectamos é que o atual governo brasileiro teria medo de que a entrada da Venezuela representasse uma espécie de radicalização dos BRICS em relação a Washington, Londres e Bruxelas, com os quais Brasília gostaria de continuar mantendo boas relações.

Ou seja, segundo esta abordagem, o gigante sul-americano aspira a obter benefícios tanto dos pólos geopolíticos multipolaristas como dos unipolaristas. E a entrada dos rebeldes bolivarianos no grupo perturbaria esse equilibrismo ao qual o executivo de Lula aspiraria.

Se olharmos para a maioria das análises que vimos, e acreditem, vimos muitas e de fontes muito diversas, o consenso quase unânime é que os motivos do governo brasileiro para agir como agiu são uma mistura de todos os itens acima.

Ninguém parece acreditar na versão de Brasília, fundamentalmente porque não existe uma versão única, mas várias e não oficiais, formalmente falando, que vão desde “que é preciso ver como se integraria nos BRICS um país com uma economia tão peculiar devido à as atuais circunstâncias venezuelanas”; “que é por causa da ata das eleições presidenciais de julho, mas ao mesmo tempo não pretendem interferir nos assuntos internos da Venezuela”, “que o problema é que Caracas prometeu mostrar-lhes as ata, mas não o cumpriu e isso minou a nossa confiança, etc.”

O rosto do Chanceler brasileiro durante o evento em Kazan não refletia exatamente a expressão de quem se sentisse cômodo com a desagradável tarefa que tinha de levar a cabo, a falta de clareza do governo brasileiro na hora de dar motivos claros, ou pelo menos não gaguejar, fez com que mais de um, com razão ou sem razão, isso é outro assunto, duvidasse sobre se Lula não compareceu em Kazan realmente por um problema médico, ou se o verdadeiro problema fosse de fato político.

Porque o outro consenso entre os analistas que acrescenta mais incerteza a todo esse assunto é que a medida não só não beneficiou os BRICS, na verdade, foi exatamente o contrário, mas também não beneficiou o presidente brasileiro.

De fato, foi exatamente o contrário, Lula tem recebido muito mais críticas de seus apoiadores do que aplausos de seus rivais fora e dentro do Brasil.

Hoje em dia é mais fácil encontrar um brasileiro vestindo a camisa da seleção argentina do que um que tenha elevado sua opinião sobre o presidente de seu país devido ao veto à Venezuela.

Chama a atenção, antes de concluir e acrescentar mais elementos de análise, como o governo Lula não se manifestou contra nem lamentou a possível entrada da Argentina de Javier Milei nos BRICS, quando o presidente argentino teve a possibilidade de torná-la efetiva após vencer as eleições naquele país.

Ou como Narendra Modi, o presidente indiano, muitas vezes acusado juntamente com o seu partido de manter posições islamofóbicas, foi capaz de pensar grande e não lhe ocorreu deixar-se levar por motivações secundárias para vetar a entrada na organização como membros plenos de países de esmagadora maioria muçulmana como Egito, Emirados Árabes Unidos e a República Islâmica do Irã.

Quer dizer, quanto mais se analisa a decisão de Lula, se for mesmo dele, porque na hora de gravar este vídeo ele ainda não tinha esclarecido, se entende menos ainda.

Mas independentemente dos reais motivos deste veto, confessáveis ou não, a vida continua, a dos BRICS e a da Venezuela também.

O fato de que se tenha vetado um país que já apostava na multipolaridade antes mesmo de que os BRICS fossem constituídos, uma nação também submetida a todo o tipo de medidas coercivas de claro caráter unipolar, que causaram danos profundos à sua população e que poderiam ser aliviados com sua adesão como sócia, deixará sem dúvida as suas cicatrizes, sob a forma de muito pouco construtivos, mas muito lógicos, rancores.

Porém, essa história não termina aqui. Na própria cúpula, o presidente russo destacou que sempre considerou seu homólogo brasileiro como honesto e muito decente, e ressaltou sua total confiança de que ele abordará o acontecido desde uma posição objetiva.

Independentemente do que aconteça, a Venezuela encontrará uma forma de melhorar a sua situação através dos mecanismos que o BRICS implementa.

E não apenas a Venezuela. Porque, para além do organismo e de suas potencialidades, realidades e contradições, a multipolaridade já não é só um trem que não pode ser detido, se não que conta com espaço de sobra para aqueles que queiram subir a bordo.

*Mirko Casale é o roteirista, apresentador e diretor do programa Ahí les va! (Aí, está!), que há cinco anos a RT transmite para países de língua espanhola.

*Jair de Souza é economista e mestre em linguística pela UFRJ.

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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