Deisy Ventura: Do pânico ao esquecimento, três anos da CPI da Pandemia

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À esquerda, CPI da Pandemia, onde a morte dos indígenas pela covid-19 foi denunciada. À direita, os então presidentes Bolsonaro, garoto-propaganda da cloroquina, e Mauro Ribeiro, do CFM, órgão que respaldou os tratamentos ''precoces'' para a covid-19, Resultado: covas e mais covas nos cemitérios

Do pânico ao esquecimento: três anos da CPI da Pandemia

Por Deisy Ventura, no Jornal da USP

Há poucos dias, uma grande jornalista brasileira me disse: “Infelizmente, ninguém mais quer saber da pandemia. Quando a gente publica algo a respeito, a audiência é quase zero, você sabia? Um horror”.

De fato, quando falamos da covid-19, em público ou na vida privada, sentimos um crescente incômodo entre nossos interlocutores, com demonstrações de impaciência ou até desprezo.

Como em tantos outros processos de esquecimento que caracterizam a história do Brasil, somos convidados, aberta ou veladamente, a “virar a página”.

É preciso “seguir em frente” rumo às pautas capazes de gerar “cliques e curtidas” nas redes sociais, sob o falso pretexto de que “já se falou muito sobre a covid-19”.

Digo falso porque o excesso de conteúdo midiático sobre um assunto não significa, nem de longe, que ele foi tratado de forma adequada, e ainda menos suficiente.

A ilusão de que a pandemia é um assunto superado explica, em parte, o silêncio que cercou o aniversário de três anos do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado Federal sobre a covid-19, entregue à Procuradoria Geral da República em 27 de outubro de 2021, recomendando o indiciamento de dezenas de pessoas, inclusive autoridades federais, por crimes relacionados à pandemia.

Graças à sua enorme repercussão, com tramas e personagens seguidos em todo o Brasil como um reality show, a CPI foi decisiva para o futuro do Brasil ao evitar que a pandemia fosse esquecida enquanto ainda estava em curso, por força de um contexto de brutal desinformação sobre saúde pública e de grave omissão de órgãos de controle da legalidade, tendo como horizonte as eleições presidenciais de 2022.

Recordar o “engajamento” em torno da CPI é suficiente para demonstrar que, por si só, o tema da gestão da covid-19 no Brasil não é desinteressante.

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Ao contrário, o esquecimento coletivo de eventos tão marcantes não é natural. Ele envolve muita luta e determinação, tanto dos que querem lembrar, como dos que preferem esquecer.

De um lado, temos familiares das vítimas que reclamam o caráter evitável das mortes de seus entes queridos. As suas associações representativas continuam promovendo atividades de preservação da memória e de busca por justiça, diga-se de passagem, sem o devido apoio do Estado e da sociedade, como é o caso da Avico Brasil.

Há também milhares de pacientes com a chamada “covid longa” sofrendo os efeitos persistentes de uma doença que poderiam não ter contraído caso existisse prevenção eficaz; trabalhadores da saúde e de outras atividades essenciais cujos relatos sobre a linha de frente são ignorados; e tantos voluntários que ainda não tiveram ocasião de contar sua experiência valiosa em incontáveis iniciativas sociais de prevenção da doença e de garantia da vida.

Deste lado estão igualmente artistas, entre eles os criadores de filmes monumentais  como Quando falta o ar, de Helena e Ana Petta, ou Eles poderiam estar vivos, de Gabriel e Lucas Mesquita, que deveriam ser premiados e difundidos amplamente.

Estão, ainda, os projetos de construção de acervos sobre a covid-19, entre os quais destaco o extraordinário Sou Ciência da Universidade Federal de São Paulo, liderado por Soraya Smaili e Pedro Arantes; além de (não muitos) pesquisadores, jornalistas, parlamentares e outros profissionais que persistimos na investigação do que realmente aconteceu no Brasil, sendo diversos de nós alvos de processos criminais e cíveis como forma de intimidação para que desistamos do assunto e, sobretudo, que os resultados das nossas pesquisas sejam desqualificados e não tenham eco.

Entre os que não desistem de lutar, menciono, por fim, o Conselho Nacional de Direitos Humanos e o Conselho Nacional de Saúde, órgãos do Estado de inquestionável relevância e legitimidade, que apresentaram uma nova representação criminal sobre os “crimes da pandemia”, no dia 24 de outubro último, à Procuradoria Geral da República.

Diferentemente de outras que já foram apresentadas anteriormente por entidades sociais, parlamentares e partidos políticos, a representação dos Conselhos tem como principal foco os conhecimentos de saúde pública e legislação sanitária, sem os quais a correta interpretação do direito penal aplicável ao tema não é possível.

Para tanto, ela se baseia em subsídios fornecidos pelo Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública da USP – elaborados por seu diretor, professor Fernando Aith, pelas pesquisadoras Bianca Villas Bôas e Juliana Pontes, e por mim – na esteira de outros estudos produzidos pelo Cepedisa, com o apoio da renomada organização não governamental Conectas Direitos Humanos.

Cabe registrar que, entre tais estudos, está a linha do tempo da disseminação da doença que, segundo os senadores Humberto Costa e Randolfe Rodrigues, inspirou a criação da CPI do Senado Federal, cujos autos integra oficialmente. Costa e Rodrigues descrevem os bastidores da CPI no importante livro A política contra o vírus, publicado em 2022.

Já do outro lado, dos que promovem o esquecimento, estão, evidentemente, os supostos autores dos crimes da pandemia, embora muitos deles jamais tenham negado o que fizeram.

Ao contrário, há quem defenda o legado mortal em nome da falsa proteção da economia e do livre arbítrio. Para eles, quem violou os direitos humanos foram os cientistas, as autoridades e os profissionais de saúde que se opuseram à estratégia de incitação ao contágio, baseada na crença em duas teses que rapidamente se comprovaram falsas: a imunidade de rebanho por contágio e o alardeado “tratamento precoce”.

Fortalecidos pela impunidade dos crimes da pandemia, em campanha para as recentes eleições municipais, certos governantes manifestaram-se até contra a obrigatoriedade da vacinação infantil, que vem salvando a vida de milhões de crianças brasileiras ao longo de décadas.

Alguns chegaram a declarar arrependimento por tentar conter a covid-19, mas ainda assim foram eleitos tranquilamente.

Com esses líderes estão milhares de agentes públicos e privados que colaboraram com a disseminação intencional da doença e que, beneficiados pela ausência de investigação, ainda estão à sombra da lei.

Somam-se aos que ganharam muito dinheiro com o negacionismo e a desinformação, a exemplo da verdadeira indústria criada em torno do dito tratamento precoce para a covid-19, em atividade mesmo depois da comprovação científica da ineficácia dos medicamentos que utilizam.

Entre os cúmplices do esquecimento também está quem percebe os ataques à saúde pública como um elemento qualquer do jogo político, no qual interesses eleitorais tudo justificam, indiferentes à evidência de que o controle de doenças contagiosas depende de comportamentos coletivos e individuais, e que a propaganda impune contra a saúde pública nos tornará, em um futuro muito próximo, incapazes de conter a propagação das enfermidades, ainda que queiramos contê-las.

Existem igualmente aqueles que entraram em pânico durante a pandemia e vibraram como torcedores durante a CPI, mas não querem mais falar da covid porque não suportam a impotência diante da impunidade, nem a recordação do sofrimento vivido.

Porém, a negação não faz desaparecer o que ocorreu, que segue nos assombrando como um fantasma.

Pior ainda: acelera a chegada das próximas pandemias, ao deixar de cobrar o devido planejamento e garantias de não repetição. Na mesma linha, há os que afirmam, por ignorância, que já se falou demais da covid-19, quando, na verdade, há um enorme volume de informações ocultas e um dever de reflexão pifiamente cumprido pela sociedade.

No ramo dos negócios, muitos pensam, até hoje, que manter o comércio aberto durante picos da pandemia era o melhor para a economia, indiferentes às evidências de que países promotores de fechamentos rigorosos e ordenados, por isto mesmo mais breves, recuperaram suas economias muito mais rápido do que o Brasil.

Até entre financiadores de pesquisas, pasmem, existe quem acredite que podemos nos preparar para a próxima pandemia sem investir na preservação da memória, e no estudo aprofundado do que ela nos ensina.

Por fim, cito os que defendem, hoje e sempre, a anistia de qualquer crime em nome da governabilidade.

As vítimas e familiares de vítimas da mais recente ditadura militar brasileira (1964-1985) bem conhecem esse argumento que, assim como em outros casos de graves violações de direitos humanos, redunda invariavelmente na repetição cíclica dos horrores.

É penoso constatar que o bloco do esquecimento está ganhando o jogo do futuro do Brasil.

A apatia e o constrangimento ao lembrar de crimes cujo cometimento assistimos “ao vivo e em cores” durante a pandemia evoca um “pensamento cheio de esquecimento”, expressão que o xamã yanomami Davi Kopenawa usou para definir o modo de pensar dos brancos, no magistral livro A queda do céu, publicado em 2011.

No ambiente universitário, mais do que ninguém, sabemos o que significa virar uma página sem lê-la.

A comunidade científica está ciente de que o final desta história será o seu recomeço, garantido pela impunidade que se avizinha.

Venho dizendo, desde 2020, que a covid-19 é uma questão de memória, verdade e justiça.

Se o bloco da memória não aumentar, a próxima pandemia encontrará o Estado e a sociedade brasileiros, especialmente as autoridades sanitárias, tão ou mais desarmados diante do crime quanto estivemos diante da covid-19.

*Deisy Ventura, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP.

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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