Ana Maria Oliveira: Alguma coisa está fora da ordem mundial

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Em 24 de setembro de 2024, o secretário-geral António Guterres (na tela) abre o debate da 79ª sessão da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Fotos: Mark Garten/ONU/

“Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial” (Caetano Veloso)

Por Ana Maria Oliveira*

As preocupações suscitadas durante as conferências da Organização das Nações Unidas (ONU), realizadas desde o dia 20 de setembro em Nova York, e a continuação de conflitos armados em várias regiões, sem aparente solução, demonstram que estamos vivendo fora da ordem mundial, como, já em 1991, Caetano Veloso antecipava na sua música ”Fora da Ordem”.

Em um contrassenso grotesco, na Assembleia Geral – o mais prestigiado fórum multilateral pois congrega 193 países com representação igualitária -, o premier israelense Benjamin Netanyahu discursou no dia 27, apresentando as razões de seu governo para as incursões militares realizadas desde o dia 8 de outubro passado.

Antes de viajar aos Estados Unidos, ele ordenou o “uso total da força contra o grupo Hezbollah”, o que está provocando centenas de mortes e feridos entre a população civil libanesa e estrangeiros residentes.

Dois jovens brasileiros foram mortos na semana passada. Nas últimas horas, Israel bombardeou o porto de Hodeidah, usado por rebeldes houthis no Iêmen.

Em sua retórica, Netanyahu citou a necessidade de defender a nação e o território israelenses contra o que chamou de “ameaças de países inimigos como o Irã, a Síria e o Iraque”, mas, na realidade, as forças de seu país praticam verdadeiros atos de vingança contra outros povos.

Na quinta-feira, 26, o governo israelense rejeitou, categoricamente, uma proposta de trégua apresentada pelos Estados Unidos, França, Alemanha, entre outros países.

No entanto, o primeiro-ministro tem contra si um mandado de prisão expedido pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), acusado por crimes de guerra, juntamente com o ministro da Defesa, Yoav Gallant.

Em um ano de conflito no Oriente Médio, já morreram 40 mil palestinos em Gaza e mais de 1.500 pessoas no Líbano. Gera forte indignação e perplexidade a prepotência desse governo que desobedece às normas internacionais e usa meios de violência contra civis inocentes.

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Pergunta-se de modo recorrente: por que as organizações internacionais não conseguem interromper esse fluxo e padrão de comportamento?

O que se deve fazer?

Um novo mundo implica um novo arranjo internacional, sob pena de a ONU cair em descrédito.

Há um consenso de que a organização precisa ser dotada dos meios necessários para enfrentar as mudanças vertiginosas no panorama internacional verificadas nas últimas décadas.

Muitos problemas ganharam dimensão planetária. Como as instituições internacionais vão lidar com esse novo mundo, sem que haja uma reforma profunda em suas formas de funcionamento?

“Um novo mundo implica um novo arranjo”, destaca o professor Alberto Pfeifer, coordenador-geral do DSI (Grupo de Análise em Estratégia Internacional ESEM IRI/USP).

Ele cita como exemplos as mudanças ocorridas nas últimas décadas: China e Rússia entraram em cena, grandes corporações multinacionais competem por participação nessa nova ordem, enquanto os estados nacionais foram enfraquecidos em suas atribuições e garantias. Por esses motivos, é necessário criar um novo arranjo institucional que venha fazer frente aos desafios.

Do total de 51 países que compunham a ONU em sua criação, passou-se para 193 países atualmente.

Na década de 40, a situação era bem diferente: várias nações africanas viviam sob o domínio colonial.

A reforma nas instâncias da organização precisaria contemplar mais atores, ao invés de manter o poder de decisão concentrado entre as potências que venceram a Segunda Guerra Mundial.

Hoje em dia é impossível desplanetizar a vida em comum, pois a interdependência é um fato.

Pandemias, conflitos armados, crise climática afetam a todos.

O momento é de angústias, frustrações e medo, advertiu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em contundente discurso na abertura da Assembleia Geral.

Lula mencionou o período de contaminação de milhões de cidadãos no mundo pela Covid-19 e lembrou que, nem com essa tragédia, a comunidade internacional foi capaz de se unir em torno de um Tratado sobre Pandemias na Organização Mundial de Saúde.

Os conflitos armados têm se espalhado. “O uso da força, sem amparo no Direito Internacional, está se tornando a regra”, disse Lula.

Acrescentou que, em Gaza e na Cisjordânia, assiste-se a uma das maiores crises humanitárias da história recente, que se expande agora perigosamente para o Líbano.

“A liberdade é a primeira vítima de um mundo sem regras”, advertiu ele.

Prestes a completar 80 anos, a Carta da ONU nunca passou por uma reforma abrangente. Para que isso aconteça, será exigido um enorme esforço de negociação. Mas essa é a responsabilidade dos governos.

“Não podemos esperar por outra tragédia mundial, como a Segunda Guerra Mundial”, disse Lula.

E acrescentou: “Recai sobre a Assembleia Geral, expressão maior do multilateralismo, a missão de pavimentar o caminho para o futuro”, ressaltando que as mudanças na ONU vão depender da vontade política dos governantes.

A importância das organizações internacionais

Segundo o professor Eiito Sato, em artigo publicado na Revista Brasileira de Política Internacional nº 46 (2003), as organizações internacionais devem ser analisadas sob perspectiva histórica e seu processo de consolidação não é linear, estando sujeito a retrocessos. Mas a continuidade da diplomacia multilateral não pode ser abandonada, pois as organizações são a expressão mais visível dos esforços de cooperação internacional de forma articulada e permanente.

Desde o surgimento do Estado Nacional como categoria política central nas relações entre povos e unidades políticas, a história registra a ocorrência de iniciativas de estadistas e formulações de pensadores voltadas para a estruturação de instituições que hoje chamamos de organizações internacionais. Ao mesmo tempo, registra as enormes dificuldades de se colocarem em prática essas iniciativas.

A construção de uma ordem internacional pacífica e articulada é uma tarefa difícil e trabalhosa porque precisa conciliar percepções, interesses e anseios políticos contraditórios.

O estabelecimento de normas internacionais não traz em si a garantia de que essas normas serão efetivamente cumpridas e que uma vez produzidas, automaticamente, farão surgir padrões elevados de comportamento.

Mesmo no plano interno a cada país, onde existe uma autoridade formalmente constituída e amplamente estruturada, o fato de se produzirem leis não significa que direitos humanos sejam plenamente respeitados, padrões ambientais sejam observados ou que crimes deixem de ser cometidos ou que sejam devidamente punidos.

No plano internacional, onde as normas são compostas basicamente de tratados, onde não há uma autoridade supranacional independente dos Estados-membros (que possuem o atributo da soberania) e onde a principal forma de sanção é a condenação moral, a existência e a eficácia de arranjos e instituições continuam fortemente dependentes das percepções e da vontade de agir dos governantes.

Desde 1945 a Organização das Nações Unidas vem passando por mudanças que incluíram uma grande quantidade de temas em sua agenda de preocupações.

Uma possível reforma na composição do Conselho de Segurança tem se revelado um empreendimento particularmente difícil.

Embora haja um quase-consenso de que a composição atual do Conselho não reflete mais as necessidades da ordem internacional, as alternativas de reforma apresentam inúmeros aspectos controvertidos, difíceis de serem superados, tais como o relativo ao direito de veto.

Hoje a diversidade é muito maior e, apesar da retórica da globalização e de todos os avanços nas tecnologias de comunicação, o entendimento entre povos e nações continua sendo um grande desafio.

Nesse quadro, construir e participar de instituições internacionais é uma das formas mais valiosas de aprimorar a convivência humana em nosso tempo, mas também não se pode esquecer de que essa é uma dedicação que exige, antes de mais nada, um exercício continuado de paciência e tolerância.

Uma nova ordem?

Ao discursar na Assembleia Geral, o presidente colombiano Gustavo Petro fez um apelo emocionado e urgente pela defesa da vida: “Quando Gaza morrer, toda a humanidade morrerá”, disse.

Ao mesmo tempo apelou à comunidade internacional para um cessar-fogo imediato na região.

“Há um ano, convoquei uma conferência de paz para a Palestina neste mesmo lugar, antes de a primeira bomba ter explodido. Hoje, temos 20 mil meninos e meninas assassinados sob bombas e os presidentes dos países responsáveis pela atual destruição humana riem nestes corredores, com a ajuda do poder dos meios de comunicação mundiais, que hoje são propriedade do grande capital, reordenam o mundo sem democracia, sem liberdade”, advertiu Petro.

E acrescentou: “Se pedirmos que a dívida seja trocada pela ação climática, as minorias poderosas não nos ouvem. Se pedimos que parem com as guerras para se concentrarem na rápida transformação da economia mundial, a fim de salvar a vida e a espécie humana, eles também não nos ouvem. É o poder de destruição da vida que dá volume à voz nas instalações das Nações Unidas”.

Petro fez um apelo urgente a todos os países para que defendam a vida, coloquem a humanidade como centro das preocupações e deixem de lado a acumulação de capital como força motriz das sociedades.

*Ana Maria Oliveira é jornalista, doutora em Ciências Sociais pela PUC Minas

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Zé Maria

Se o fim do Direito a Veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas beneficiasse a Expansão Territorial do Estado Sionista Genocida de isRéu,
os Estados Unidos da América (EUA) votariam a favor da Mudança.

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