Marcelo Zero: A militarização das coisas e o ”campo minado”

Tempo de leitura: 4 min
Fotos: Sgt. Jack Sanders/U.S. Air Force Staff e reprodução de redes sociais

A militarização das coisas

Por Marcelo Zero*

O atentado com os pagers no Líbano não tem precedentes históricos.

Trata-se do primeiro grande atentado terrorista que envolve o uso massivo de tecnologias de informação e comunicação e que, de forma assustadora, coloca sob suspeita quaisquer dispositivos eletrônicos de uso corrente, como celulares, tablets, notebooks, pagers, rádios, televisores inteligentes, chips de carros, geladeiras etc.

Enfim, todo esse universo de aparelhos e coisas aparentemente inofensivas que estão conectados à internet ou a quaisquer outras redes.

O atentado tornou o mundo distópico descrito no filme “O Mundo Depois de Nós” (Leave The World Behind), algo mais que mera ficção.

O terror está potencialmente, agora, na própria realidade banal, comum, da nossa vida moderna.

Como nova realidade, não há ainda regras e convenções explícitas para combatê-la e preveni-la.

Contudo, o Protocolo sobre Proibições ou Restrições à Utilização de Minas, Armadilhas e Outros Dispositivos, alterado em 3 de maio de 1996 (Protocolo II da Convenção CCW de 1980 -Convenção das Nações Unidas sobre Certas Armas Convencionais), contém norma, em seu Artigo 7, que poderia ser aplicada ao assunto.

Segundo tal artigo:

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“Artigo 7.º – Proibições da utilização de armadilhas e outros dispositivos
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2. É proibido o uso de armadilhas ou outros dispositivos sob a forma de objetos portáteis aparentemente inofensivos que sejam especificamente projetados e construídos para conter material explosivo.”

O que aconteceu no Líbano foi justamente isso: a colocação de uma armadilha explosiva num objeto portátil de aparência inofensiva, de amplo uso entre pessoas civis inocentes, não apenas entre militares.

Por isso o Alto Comissariado das Nações Unidas Sobre Direitos Humanos, Volker Türk, já denunciou o atentado como um crime de guerra e uma violação da lei internacional. Türk pediu investigação sobre o assunto.

Por sua vez, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, afirmou que “objetos de uso civil não podem ser transformados em armas”.

O atentado rompeu a separação tecnológica, cognitiva, política e moral que havia entre o cotidiano inocente da rotina civil e a virulência da guerra.

As modernas tecnologias e seu uso massivo permitem que essa separação seja borrada em grande escala.

Tudo, agora, pode ser de “uso dual”, civil e militar. Um simples celular pode virar, mesmo sem sabotagem na cadeia de suprimentos, uma pequena bomba ou artefato incendiário acionado a distância, dada à volatilidade inerente das baterias de lítio.

Na realidade, quaisquer dispositivos que usem baterias desse tipo têm potencial para causar incêndios ou explodir, mesmo sem a contribuição de explosivos auxiliares.

Apenas a introdução de algum vírus que sobrecarregue essas baterias poderia ter consequências nefastas, a depender de seu tamanho e capacidade de armazenar energia.

Um discreto aumento de 20% na temperatura de uma bateria de íons de lítio provoca algumas reações químicas indesejadas que ocorrem muito rapidamente, o que libera calor excessivo.

Este excesso de calor aumenta a temperatura da bateria, o que por sua vez acelera as reações. O aumento da temperatura da bateria aumenta a taxa de reação, criando um processo denominado de “fuga térmica”.

Quando isso acontece, a temperatura de uma bateria pode subir de 212 F (100 °C) para 1.800 F (1.000 °C) em um segundo.

Por isso, os incêndios em baterias de lítio são explosivos e difíceis de serem controlados.

Quanto maior a capacidade e o número de baterias, maior o potencial incendiário e explosivo.

Um celular pode causar um dano relativamente pequeno. Um carro elétrico, no entanto, tem um potencial bem maior de destruição.

Ademais, todo o mundo sabe, há bastante tempo, que os dispositivos eletrônicos conectados à internet ou a intranets são formidáveis instrumentos de espionagem e de manipulação de informações, que servem não somente a interesses comerciais, mas também a interesses geopolíticos e militares.

Assim sendo, todo esse mundo eletrônico e crescentemente interconectado que nos cerca cria grandes vulnerabilidades que podem ser aproveitadas para gerar terror e ataques militares.

É como se vivêssemos em meio a um “campo minado”, oculto pela aparente inocência e banalidade de atividades civis cotidianas.

Esse “campo minado”, frise-se, é dominado por um pequeno número de bigtechs e Estados, infensos a controles.

Por isso mesmo, os atentados em Beirute demandam, como resposta, a instituição de regras internacionais e nacionais mais rígidas e explícitas, que tenham a capacidade coibir o descontrole, os abusos e os crimes cometidos.

Também é necessário que o Brasil invista mais em redes e equipamentos próprios, de forma a desenvolver uma cibersegurança sólida.

Como bem destacou o ex-ministro José Dirceu em artigo recente (“A Amazon é a nova aposta dos EUA pelo controle dos ativos digitais brasileiros (por José Dirceu”), “países como os africanos e os sul-americanos ou se integram nesta nova ordem econômica mundial de forma alinhada aos Estados Unidos ou sequer conseguem recursos e capacidades internacionais para exercer qualquer protagonismo nacional. Estas nações estão, basicamente, se tornando meros exportadores das atuais commodities digitais (os dados) e importadores de soluções desenvolvidas a partir destes insumos. Em 2023, países desenvolvidos concentraram 73% das exportações globais de bens e serviços digitais. A América Latina e a África respondem, cada uma, por menos de 3%.”

Nosso país, é óbvio, não pode seguir por este caminho. Tanto por razões econômicas e comerciais, quanto por motivos geopolíticos e estratégicos.

Temos potencial e recursos para desenvolver nosso próprio mundo das coisas conectadas.

Viver no “campo minado” da militarização exógena das coisas não é uma opção.

* Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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