Médica Elcylene Leocádio: ‘E, por ter sido assim, eu ainda tenho mãe’

Tempo de leitura: 4 min
Maria e a filha Elcylene Leocádio, médica responsável pela elaboração de normas técnicas sobre aborto legal e pela implementação do serviço em Pernambuco. Em 23 de abril de 2024, a matriarca comemorou 90 anos de vida, com toda a família reunida. Aos 27 anos, teve que interromper uma gravidez de alto risco que lhe salvou a vida. Foto: Arquivo pessoal

E, por ter sido assim, eu ainda tenho mãe

Médica responsável pela elaboração de normas técnicas sobre aborto legal e pela implementação do serviço em Pernambuco conta como a interrupção de uma gravidez de alto risco salvou a vida de sua mãe, aos 27 anos

Por Elcylene Leocádio, no Centro Brasileiro de Estudos em Saúde – Cebes

Nascida em 1934, aos 20 anos Maria casou-se no civil e no religioso com Bráulio, o primeiro namorado. O jovem de 29 anos, há dez havia assumido a imensa responsabilidade de cuidar da mãe viúva e de algumas irmãs ainda solteiras.

Havia abandonado o sonho de se tornar médico para assumir a tarefa de cuidar de um engenho e das plantações de milho e de cana de açúcar. Cuidava também do cultivo de mel de abelha e da criação de gado.

Era capaz de amansar um cavalo bravo, de fazer o parto das vacas e de tocar uma boiada. Um jovem que sabia o que queria, que escolheu a noiva e, ao seu modo, lhe fez a corte até conseguir que ela dissesse sim. Falou de casamento antes do namoro e de filhos, disse-lhe que teriam seis.

Viúva há mais de trinta anos, ela conta que depois de casada, morando no Engenho Horizonte, em Quipapá (PE), adorava vê-lo correr a cavalo, laçar e derrubar uma vaca que se desviava da manada.

Tinha certeza de que “acontecesse o que acontecesse”, ele nunca a abandonaria, e viveu com o seu “neguinho” (apelido dos tempos de namoro) uma história de amor e respeito, conforme prometido diante do altar, no dia 25 de abril de 1954.

A família do marido os tinha como exemplo de bom casamento. Não brigavam, não discutiam em público e, de modo surpreendente para os padrões da época, viviam um cotidiano no qual o toque carinhoso, os abraços e beijos estavam presentes para quem quisesse ver.

Juntos eles tiveram os seis filhos prometidos pelo aspirante a namorado. Cinco de parto normal. Quatro em casa, pelas mãos do parteiro da cidade, com a ajuda da mãe e da sogra. Dois em maternidades. De cinco nasceram oito netos, uma neta e duas bisnetas.

Apoie o VIOMUNDO

No dia 23 de abril de 2024, Maria, mãe, avó e bisavó, comemorou 90 anos de vida, com toda a família reunida, inclusive com as bisnetas, a primeira, de 3 anos, e a mais nova de 4 meses, vindas do Canadá.

No almoço de aniversário, a VIDA DE MARIA FOI CELEBRADA. Falou-se de sua dedicação à família, dos valores que repassou aos filhos e filhas: não maltratem nem zombem de deficientes e idosos, sejam honestos, estudem, trabalhem, ajudem a que precisa, respeitem a Deus.

Ela estimulou as filhas a serem independentes, a terem a sua liberdade e ensinou a ler algumas mulheres que trabalharam em sua casa. Cuidou de sua mãe e do seu pai na velhice com paciência e generosidade.

Como não afirmar que Maria, uma “Filha de Maria”, é uma mulher de 90 anos de conduta irreparável?

Hoje, em meio ao debate do PL 1904, vêm as lembranças de alguns acontecimentos que poderiam ter alterado de forma radical o rumo desta prosa, a vida de Maria, do seu marido e dos seus três primeiros filhos.

Aos 27 anos Maria estava em sua 4ª gestação. Tudo transcorria bem até que no terceiro mês, ela começou a sangrar, deixou o Engenho e ficou de repouso na casa da sogra.

As crianças ficaram aos cuidados de sua mãe. Depois de algum tempo, o parteiro a encaminhou para o Recife. Ele não estava dando conta, era preciso um médico formado.

A jovem mãe foi hospitalizada na maternidade Oscar Coutinho, por causa da gravidez complicada com placenta prévia. Diante de uma infecção que não cedia aos medicamentos prescritos e febre de 40 graus, o obstetra falou com ela sobre a necessidade de antecipar o parto pelo risco de septicemia e morte.

À sua pergunta sobre o assunto, ela respondeu: “doutor, eu tenho três filhos, uma menina de 5 anos e dois meninos, um de 4 e o mais novinho com três anos. Eles não podem ficar sem mãe, fale com o meu marido”. “Não dá para fazer uma cesárea, doutor?”, perguntou a ele. “Não”, o médico respondeu.

Por causa da infecção, o risco é muito grande. Nasceu uma menina, que viveu 15 dias e marcou profundamente a história de toda a família.

Algumas décadas mais tarde, esse tema tomou o país de ponta a ponta. O movimento de mulheres trabalhou intensamente para o Estado Brasileiro garantir as condições para que toda mulher com risco de vida na gravidez ou com uma gravidez pós-estupro pudesse ter acesso aos direitos assegurados pelo artigo 42 do Código Penal, aprovado em 1940.

Com ajuda de muitos parceiros e parceiras da área de saúde, do direito, da comunicação e de grupos religiosos, as normas técnicas para atendimento das mulheres nesta situação foram publicadas pelo Ministério da Saúde em 1988, quase 50 anos depois da promulgação da lei.

E essas normas foram escritas sob coordenação daquela que ainda menina, aos cinco anos, escapou de perder a sua mãe, escapou de ficar sem uma irmã, um irmão e três sobrinhos que vieram depois da tomada de decisão em favor da vida de gestante.

Em 2024, o aniversário de 90 anos de Maria foi possível graças à atitude sensível de um médico a favor da vida de uma mãe e à clareza de um casal ainda muito jovem, já com três filhos a criar.

E, por ter sido assim, eu ainda tenho mãe!

Leia também

‘O aborto é recurso seguro, poderia ser feito em UBSs, reduzindo a quase zero os casos tardios’, explicam obstetras referência

Entidades fazem ato na Secretaria Municipal de Saúde pela reabertura do serviço de aborto legal do Hospital Cachoeirinha

Associação de Médicos repele posição do presidente do CFM a favor do PL 1904: ‘Inaceitável, sem respaldo científico’

Apoie o VIOMUNDO


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!

Deixe seu comentário

Leia também