Felipe A P L Costa: Nem todo macho é homem, nem toda fêmea é mulher
Tempo de leitura: 7 minSexo vs. gênero: Nem todo macho é homem, nem toda fêmea é mulher
Por Felipe A. P. L. Costa*
Apresentação
Os termos sexo e gênero não significam a mesma coisa; não devem, portanto, ser confundidos entre si.
Os homens em geral pertencem ao sexo masculino, enquanto as mulheres em geral pertencem ao sexo feminino.
Essas correlações são altamente significativas, razão pela qual nós nos habituamos a tratar alguém do sexo masculino como homem e alguém do sexo feminino como mulher. Mas há exceções: nem todo macho é homem, nem toda fêmea é mulher.
1. Pais gerando pais
Todos os seres vivos – incluindo, claro, os seres humanos – são gerados por algum processo reprodutivo.
Indivíduos de uma geração estabelecida, dita parental, dão origem a novos indivíduos; estes, referidos coletivamente como geração filial, poderão vir a ter os seus próprios descendentes.
Se o processe vai adiante, temos então uma sucessão de gerações. Caso perdure por muitas gerações, a sucessão pode vir a ser identificada como uma linhagem.
A reprodução dos seres vivos ocorre de dois modos distintos: por via sexuada ou por via assexuada [1]. A distinção tem a ver com a participação ou não de gametas.
Na reprodução assexuada, um único indivíduo dá origem a dois ou mais descendentes por meio de processos que não envolvem a participação de gametas.
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Na reprodução sexuada, há a participação de gametas. No que segue, vamos nos concentrar nesse último estilo de vida.
2. Quem é macho e quem é fêmea?
Nas espécies em que indivíduos diferentes produzem diferentes tipos de gametas, o indivíduo que produz os gametas pequenos e móveis (espermatozoide ou célula espermática) é chamado de macho, enquanto o que produz gametas grandes e imóveis (óvulo ou oosfera) é chamado de fêmea.
Nas palavras de Roughgarden (2005. p. 24-5):
“Para a maioria das pessoas, ‘sexo’ implica automaticamente ‘macho’ ou ‘fêmea’. Não para um biólogo. […] [S]exo significa mistura de genes ao se reproduzir. A reprodução sexuada produz descendentes pela mistura de genes de dois pais, enquanto a reprodução assexuada dá origem a descendentes a partir de um único pai, como na clonagem. […]
‘Gênero’ também implica automaticamente ‘macho’ e ‘fêmea’ para a maioria das pessoas. Portanto, se definirmos macho e fêmea biologicamente, terminamos definindo gêneros da mesma forma?
Similarmente, no caso de adjetivos como ‘masculino’ e ‘feminino’, podemos defini-los biologicamente.
Além disso, entre humanos, um ‘homem’ é automaticamente macho e uma ‘mulher’ necessariamente fêmea? […]
Quando falo de humanos, acho útil distinguir entre categorias sociais e biológicas. ‘Homem’ e ‘mulher’ são categorias sociais.
Temos a liberdade de decidir quem conta como homem e quem conta como mulher. O critério muda de tempos em tempos. […]
Não temos a mesma liberdade com categoriais biológicas.
‘Macho’ e ‘fêmea’ são categorias biológicas, e o critério utilizado para classificar um organismo como macho ou fêmea tem [de] funcionar para vermes e baleias, algas marinhas e sequoias.
Quando se trata de humanos, o critério biológico de macho e de fêmea não coincide 100% com o critério social atual de homem e mulher.”
Em termos puramente biológicos, portanto, machos e fêmeas são definidos de acordo com o tipo de gameta que cada um deles é capaz de produzir. E ponto final.
3. Gonocorismo vs. hermafroditismo
O padrão de sexualidade em que cada indivíduo é exclusivamente macho ou fêmea é chamado de dioicia ou gonocorismo (do grego, gonós, genitálias + chorismós, separação).
O ser humano é um exemplo de animal gonocórico.
Em outras espécies, porém, o mesmo indivíduo é capaz de produzir os dois tipos de gametas.
Eles são chamados de hermafroditos (do latim, hermaphroditus, alusão ao filho dos personagens mitológicos Hermes e Afrodite), o que significa dizer que o mesmo indivíduo tem os dois sistemas reprodutores (masculino e feminino).
Minhocas e caracóis são exemplos de animais hermafroditos [2].
4. Sistema de determinação do sexo
Em muitos animais gonocóricos, a diferenciação sexual – macho ou fêmea? – depende da presença de algum sistema de determinação do sexo.
Quatro sistemas podem ser citados aqui: XY, X0 (xis-zero), ZW e Z0 (zê-zero) [3]. A nomenclatura faz alusão ao papel de algum tipo de cromossomo sexual.
Na espécie humana, o sistema é do tipo XY: as fêmeas possuem duas cópias do cromossomo X, enquanto os machos possuem uma cópia de X e outra de Y.
Machos e fêmeas humanos possuem os mesmos 22 pares de autossomos, mas têm um par desigual de cromossomos sexuais – eles transportam XY e elas, XX [4].
O sexo masculino é dito heterogamético, alusão ao fato de que os espermatozoides transportam X ou Y; o feminino, no entanto, é dito homogamético, visto que os óvulos sempre transportam o X [5].
Como se vê, a determinação do sexo da prole (macho ou fêmea) depende tão somente do tipo de espermatozoide que fecunda o óvulo.
5. Diferenciação sexual
O embrião humano sempre inicia o seu desenvolvimento em uma rota sexualmente neutra, a despeito do sexo genético que tenha herdado dos pais.
No início da gestação, a aparência externa nada revela a respeito do sexo do embrião. Isso por que as estruturas que darão origem às particularidades próprias de cada sexo (e.g., testículos ou ovários) só se tornam evidentes a partir da sétima semana [6].
Nas palavras de Wolpert et al. (2002, p. 374):
“Em um estágio embrionário inicial, as genitálias masculina e feminina são as mesmas […]. Depois da formação dos testículos em indivíduos do sexo masculino, o falo e a dobra genital dão origem ao pênis, enquanto em indivíduos do sexo feminino, eles dão origem ao clitóris e aos lábios menores. A intumescência genital forma o escroto no homem e os lábios maiores na mulher”.
É a presença do cromossomo Y que leva ao desenvolvimento dos testículos. Estes, por sua vez, liberam hormônios que promovem a diferenciação dos tecidos somáticos por uma rota masculina.
Na ausência do cromossomo Y, os testículos não se desenvolvem e o embrião segue a rota feminina.
6. Sexo e gênero podem se misturar
A biologia reprodutiva humana, diferentemente da de outros animais, tem uma camada adicional de complexidade.
Para começo de conversa, é bom esclarecer que, enquanto os termos macho e fêmea fazem alusão a duas categorias biológicas (ou sexuais) de abrangência universal, os termos homem e mulher são mais apropriadamente usados como categoriais culturais (ou de gênero), restritas à nossa espécie.
A distinção entre homem e mulher depende do papel social do indivíduo e, cada vez mais, de suas aspirações de vida.
Embora os homens em geral sejam machos e as mulheres em geral sejam fêmeas, os papéis sexuais e os gêneros podem estar misturados.
Veja: machos podem se parecer e agir como mulheres (machos femininos), do mesmo modo como fêmeas podem se parecer e agir como homens (fêmeas masculinas).
Até algumas décadas atrás, os papéis sociais dependiam tão somente do sexo dos indivíduos.
Eram papéis rígidos, impostos de cima para baixo – digo: as aspirações individuais pouco ou nada importavam e eventuais desvios eram abafados ou tolhidos pela cultura local [7].
Mas isso vem mudando (há razões demográficas e econômicas por trás dessas mudanças, mas não vamos tratar disso aqui).
O fato é que em várias sociedades contemporâneas já é possível que alguém adote papéis culturais próprios do sexo oposto sem correr o risco de ser apedrejado em praça pública por causa disso.
Notas
[*] Este artigo, cuja versão original foi publicada no Observatório da Imprensa, em 23/7/2013, contém trechos extraídos e adaptados do livro O que é darwinismo (2019).
[1] Afinal, por que existem apenas dois sexos, e não três, quatro ou mais? – sobre a evolução do sexo (em port.), ver Maynard Smith (2012).
[2] Acostumados que estamos com sexos em corpos separados, o hermafroditismo pode nos parecer algo bizarro. Trata-se, no entanto, de um estilo de vida relativamente comum e muito bem-sucedido. Muitas plantas são hermafroditas simultâneas – considere quantas espécies possuem flores que produzem os dois tipos de gameta ao mesmo tempo. Entre os animais, especificamente, esse estilo de vida é particularmente comum em espécies marinhas – anêmonas, anelídeos, moluscos, crustáceos, estrelas-do-mar e peixes são alguns dos grupos zoológicos que abrigam hermafroditos (para detalhes, ver Barnes et al. 2008). Um comentário adicional. Há dois tipos básicos de hermafroditismo. Em certos casos, o mesmo indivíduo produz os dois tipos de gametas ao mesmo tempo – é o hermafrodito simultâneo. Alguns desses são capazes de autofecundação (e.g., espermatozoides e óvulos do mesmo indivíduo podem se fundir, dando origem a uma prole viável); outros não o são, de sorte que só conseguem se reproduzir se houver a participação de um parceiro. Outras vezes, porém, o hermafrodito produz os dois tipos de gametas em momentos distintos (e.g., em diferentes fases da vida ou em diferentes épocas do ano). Nesses casos, falamos então em hermafrodito sequencial. Os indivíduos se comportam ora como macho (produzindo espermatozoides), ora como fêmea (produzindo óvulos).
[3] Para detalhes, ver White (1977).
[4] O corpo humano abriga dois tipos de células, as vegetativas (ou somáticas) e as reprodutivas (gametas). Aquelas são produzidas por mitose e estas, por meiose. Os gametas da espécie humana (espermatozoides e óvulos) possuem 23 cromossomos e são ditos haploides (n); as células somáticas possuem 46 e são ditas diploides (2n). Durante qualquer processo de divisão, as células se tornam temporariamente tetraploides (4n = 92); na mitose, este número é repartindo entre duas células-filhas, cada uma herdando 2n cromossomos; na meiose, cada uma das quatro células-filhas herda n cromossomos.
[5] Se um óvulo (n = 22 + X) é fecundado por um espermatozoide X (n = 22 + X), o zigoto dará origem a um embrião feminino (2n = 44 + XX). Se a fecundação envolve um espermatozoide Y (n = 22 + Y), o embrião será do sexo masculino (2n = 44 + XY). Em ambos os casos, os filhos herdarão 23 (22 + X ou Y) cromossomos de cada genitor. Duas ressalvas. Primeira. Há alguma plasticidade na determinação do sexo (e.g., Ah-King & Nylin 2010; em port., Roughgarden 2005). Segunda. Há evidências de que os genitores podem favorecer certas combinações cromossómicas, manipulando assim o sexo da prole (e.g., Katsuki et al. 2012; em port., Baker 1997).
[6] Vale lembrar que a gravidez humana demora em média 40 semanas. Para detalhes (cronológicos e estruturais) do desenvolvimento embrionário humano, ver Standring (2010).
[7] Para quem gosta de cinema, deixo aqui uma sugestão de filme: Longe do Paraíso [Far From Heaven] (2002), dirigido por Todd Haynes.
Referências citadas
+ Ah-King, M & Nylin, S. 2010. Sex in an evolutionary perspective: Just another reaction norm. Evolutionary Biology 37: 234-46.
+ Baker, R. 1997 [1996]. Guerra de esperma. RJ, Record.
+ Barnes, RSK & mais 4. 2008 [2004]. Os invertebrados: Uma síntese, 2ª ed. SP, Atheneu.
+ Katsuki, M & mais 4. 2012. Intralocus sexual conflict and offspring sex ratio. Ecology Letters 15: 193-7.
+ Maynard Smith, J. 2012 [1978]. A evolução do sexo. SP, Unesp.
+ Roughgarden, J. 2005 [2004]. Evolução do gênero e da sexualidade. Londrina, Planta.
+ Standring, S, ed. 2010 [2008]. Gray’s, anatomia, 40ª ed. RJ, Elsevier.
+ White, MJD. 1977 [1973]. Os cromossomos, 6ª ed. SP, Nacional & Edusp.
+ Wolpert, L & mais 5. 2000 [1998]. Princípios de biologia do desenvolvimento. P Alegre, Artmed.
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