Marcelo Zero: A estratégia da Ucrânia para o Sul Global

Tempo de leitura: 4 min
Fotos: Wikimedia Commons

A Estratégia da Ucrânia para o Sul Global

Por Marcelo Zero*

A aproximação ao chamado Sul Global e ao Brasil, em particular, nunca foi uma diretriz importante na política externa da Ucrânia, desde 2014.

Com efeito, Kiev, após o golpe de 2014, sempre teve como grande prioridade suas relações com os EUA e a Europa. Apostava, e ainda aposta, na sua entrada na OTAN e na União Europeia como elemento central da sua inserção no mundo.

Desde então, o Sul Global e o Brasil estiveram em um muito distante segundo plano.

Nem sempre foi assim.

Em governos anteriores, o Brasil tinha alguma importância para a Ucrânia. Tanto é assim, que ambos os países decidiram elevar o relacionamento bilateral ao nível de Parceria Estratégica, durante a visita de Estado do então Presidente Lula a Kiev, em 2/12/2009.

Essa visita foi retribuída dois anos depois, quando o então Presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, aquele que foi deposto no golpe de 2014, esteve no Brasil, em 24 e 25/10/2011, acompanhado por uma comitiva volumosa de autoridades e empresários.

Um exemplo dessa parceria ora extinta foi cooperação bilateral espacial Brasil/Ucrânia.

A cooperação espacial entre Brasil e Ucrânia foi instituída pelo Tratado sobre Cooperação de Longo Prazo na Utilização do Veículo de Lançamentos Cyclone-4, firmado em 2003.

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O objetivo principal do Tratado era definir as condições para o desenvolvimento do Sítio de Lançamento do Cyclone-4 (foguete ucraniano) no Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão, bem como para a prestação de serviços de lançamentos para os programas espaciais das Partes, assim como para clientes comerciais.

O Tratado de 2003 estabeleceu obrigações para o Estado brasileiro, para o Estado ucraniano e para a Alcântara Cyclone Space (ACS), empresa binacional estabelecida em 2006 para dar cumprimento aos objetivos do acordo.

Ao Brasil, por meio da Agência Espacial Brasileira (AEB), competia desenvolver a infraestrutura física do CLA (excetuada a torre de lançamentos e instalações diretamente relacionadas) e de seus arredores. À Ucrânia, cabia desenvolver o foguete propriamente dito, o Veículo Lançador Cyclone-4, basicamente um aperfeiçoamento de seu modelo Cyclone-3. Já à ACS, caberia construir o sítio de lançamento do Cyclone-4 (a torre e as instalações diretamente relacionadas aos lançamentos, localizadas no interior do CLA).

Dessa forma, Brasil e Ucrânia, utilizando-se da excelente localização da Base de Alcântara, que permite muita economia nos lançamentos, e a consistência dos foguetes ucranianos, poderiam se constituir em importantes players, no mercado mundial de lançamentos de satélites.

Ademais, previa-se que a Ucrânia poderia cooperar com o Brasil, no desenvolvimento do veículo lançador brasileiro, destinado a fins unicamente pacíficos.

Contudo, o Tratado em questão nunca funcionou como planejado, por diversos motivos. O Estado ucraniano, em particular, não apresentou as devidas contrapartidas aos investimentos brasileiros feitos no projeto, que ascenderam a R$ 483 milhões, desde 2007 até a denúncia do Tratado.

Houve, é claro, influência negativa da grave crise econômica ucraniana, que se arrasta até hoje.  Saliente-se que, em 2014, a guerra civil interna agravou muito a situação financeira daquele país.

Mas houve também o fator geopolítico.

Os EUA sempre se opuseram ao desenvolvimento do veículo lançador brasileiro.

Essa oposição à cooperação entre Ucrânia e Brasil está registrada em telegrama que o Departamento de Estado enviou à sua embaixada em Brasília, em janeiro de 2009. Conforme esse telegrama, os EUA “não apoiam o programa nativo dos veículos de lançamento espacial do Brasil…..”  “Queremos lembrar às autoridades ucranianas que os EUA não se opõem ao estabelecimento de uma plataforma de lançamentos em Alcântara, contanto que tal atividade não resulte na transferência de tecnologias de foguetes ao Brasil”.

Os Estados Unidos também se opuseram a lançamentos de satélites norte-americanos (ou fabricados por outros países, mas que contenham componentes estadunidenses) a partir do Centro de Lançamento de Alcântara, por falta de um Acordo de Salvaguardas Tecnológicas e “devido à nossa política, de longa data, de não encorajar o programa de foguetes espaciais do Brasil”.

Desse modo, os EUA viam a cooperação entre Ucrânia e Brasil como uma ameaça à sua política de impedir que o nosso país desenvolvesse veículos lançadores próprios, mesmo sendo o Brasil um país pacífico e membro do MTCR (tratado do regime de controle de mísseis).

Daí a sua pressão sobre a Ucrânia para que a cooperação bilateral com o Brasil não fosse à frente.

Obviamente, o deslocamento geopolítico da Ucrânia para os EUA e a União Europeia, após os eventos da praça Maiden, facilitou tal pressão.

A partir de 2014, ficou claro que o novo governo ucraniano não tinha mais nenhum interesse nessa cooperação com o Brasil.

Assim, o Tratado entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Ucrânia sobre Cooperação de Longo Prazo na Utilização do Veículo de Lançamento Cyclone-4 no Centro de Lançamento de Alcântara foi denunciado, pelo Brasil, mediante o Decreto nº 8.494, de 24 de julho de 2015.

Agora, no entanto, no contexto do conflito com a Rússia, o governo de Zelensky, de forma bastante oportunista, intenta se aproximar de regiões e países que antes desprezava.

Assim, a Ucrânia reconheceu a necessidade de procurar apoio, reforçar as alianças existentes e criar parcerias com países do Sul Global.

No final de 2022, o Presidente Volodymyr Zelensky – pela primeira vez – designou o Sul Global como uma prioridade nos esforços diplomáticos da Ucrânia.

Essa ofensiva diplomática ucraniana tem alguns objetivos.

Em primeiro lugar, tentar reforçar as sanções as sanções ocidentais sem precedentes impostas aos russos.

A Rússia diversificou com sucesso as suas parcerias econômicas no Sul Global, estabelecendo novas cadeias e reforçando outras cadeias de abastecimento existentes fora da Europa. A ideia é impedir ou obstaculizar essas relações econômicas.

Nesse âmbito econômico, Zelensky intenta se utilizar do aumento dos preços de alimentos e de fertilizantes no mercado mundial, um tema sensível em muitos países em desenvolvimento, para atrair aliados em nações importadoras de alimentos.

Em segundo lugar, difundir a ideia de que a Rússia é um “agressor” com tendências “neoimperialistas” e, com isso, despertar a simpatia entre as nações do Sul Global, particularmente aquelas que partilham um profundo trauma colonial.

Em terceiro lugar, sabotar os esforços de um número crescente de países, incluindo, entre outros, a China, a África do Sul, o Brasil e a Índia, em prol de um processo de paz viável, que contemple os interesses de ambos os lados do conflito e que acabe com uma guerra que tem amplas repercussões globais negativas.

Os interesses de Kiev e do Ocidente estão alinhados na promoção da “fórmula de paz de Zelensky”, que ignora totalmente a Rússia e seus interesses, impondo uma capitulação incondicional, obviamente impraticável.

Essa ofensiva diplomática ucraniana, porém, deverá fracassar.

O Brasil, evidentemente, deseja ter boas relações com a Ucrânia, como já teve em passado recente, nos primeiros governos Lula.

Mas essas relações não se podem se dar com o sacrifício da política externa independente do Brasil, dos interesses brasileiros, da busca de uma paz viável e duradoura e da construção de uma ordem mundial multipolar e simétrica.

O Brasil e o Sul Global não vão importar guerras e conflitos. Desejam cooperar pacificamente com todos.

Como diz o ditado espanhol: cría cuervos y te sacarán los ojos.

*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.

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Zé Maria

https://youtu.be/1w9fAgaUBrw

“Oficial do Departamento de Estado Renuncia
e diz que Israel Está Usando Armas dos EUA
para Massacrar Civis em Gaza”

Amy Goodman Entrevista Josh Paul, ex-funcionário do Departamento
de Estado do Estados Unidos da América (EUA), sobre a sua decisão
de renunciar ao seu cargo em protesto contra as vendas de armas
dos EUA a Israel em meio ao recente bombardeio Israelense a Gaza.

Paul disse ao Democracy Now!:

“Decidi demitir-me por três razões, a primeira e mais premente das quais
é o fato incontroverso de que as armas fornecidas pelos EUA não deveriam
ser usadas para massacrar civis, não deveriam ser usadas para resultar
em vítimas civis massivas.
E é isso que estamos vendo em Gaza e o que vimos, logo após o ataque
de 7 de Outubro por parte do Hamas.

Não acredito que as armas fornecidas pelos EUA devam ser usadas
para matar civis. É tão simples.

Em segundo lugar, também acredito que, como o seu convidado anterior
identificou, não existe aqui uma solução militar.

E estamos a fornecer armas a Israel por um caminho que não conduziu
à paz, não conduziu à segurança, nem para os palestinos
nem para os israelenses.

É um processo moribundo e uma política sem saída.

E, no entanto, quando tentei levantar ambas estas preocupações à
chefia do Departamento de Estado, não houve interesse na discussão,
nem oportunidade de analisar qualquer uma das potenciais vendas de armas
e levantar preocupações sobre elas, simplesmente uma diretiva para
avançar o mais rapidamente possível.

E então senti que tinha que renunciar.”

Na sua Carta de Demissão (*), Josh Paul escreveu, literalmente:

“Não podemos ser ao mesmo tempo contra a ocupação e a favor dela.
Não podemos ser ao mesmo tempo a favor da liberdade e contra ela.
E não podemos defender um mundo melhor, ao mesmo tempo que
contribuímos para outro que é materialmente pior. …
Acredito do fundo da minha alma que a resposta que Israel está a tomar,
e com ela o apoio americano tanto a essa resposta como ao status quo
da ocupação ilegal, apenas conduzirá a um sofrimento maior e mais profundo tanto para os israelenses como para os povo palestino –
e não é do interesse de longo prazo dos EUA”, escreveu ele.
*(https://bit.ly/47Njtue)

Íntegra da Entrevista no Democracy Now!:

https://www.democracynow.org/2023/11/23/dissenters_2
.
.
Leia também:

“Nós Precisamos Parar a Matança!”

Michael Moore
Documentarista Norte-Americano
sobre o Massacre de Israel em Gaza.

Entrevista Exclusiva
ao Programa ‘UpFront’
na TV Al Jazeera:
https://youtu.be/Ud-3s0thf-c
.
.

Zé Maria

Entrevista: Craig Mokhiber, ex-Diretor do Escritório de Nova York
do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

No Canal “Democracy Now!”

Um antigo alto funcionário das Nações Unidas em Nova Iorque junta-se
a nós para uma entrevista aprofundada sobre a razão pela qual se demitiu
depois de acusar publicamente a ONU de não abordar o que ele chama
de “caso clássico de genocídio” que se desenrola em Gaza.

Craig Mokhiber é um antigo advogado internacional de direitos humanos
que atuou como diretor do Escritório de Nova York do Alto Comissariado
das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

Sua carta de demissão se tornou viral.

Em uma de suas primeiras entrevistas desde que deixou o cargo, Mokhiber disse ao Democracy Now! que a ONU segue um “conjunto diferente de
normas” ao abordar as violações do direito internacional por parte de Israel,
recusando-se a utilizar os seus mecanismos de aplicação do Direito Internacional e, assim, agindo “efetivamente” como “uma cortina de fumaça
por trás da qual temos visto uma maior e cada vez pior expropriação dos
palestinos”.

Ele diz que é um “segredo aberto nos corredores das Nações Unidas que
a chamada solução de dois Estados é efetivamente impossível”, e apela
aos atores internacionais para pressionarem por um “novo paradigma”
na região baseado na “igualdade para todos.”

Discutimos também a inação do Tribunal Penal Internacional, a supressão
global da defesa pró-palestina, as acusações “de má-fé” de ‘anti-semitismo’
e muito mais.

Transcrições em Inglês e em Espanhol:

https://www.democracynow.org/2023/11/1/craig_mokhiber_un_resignation_israel_gaza

https://www.democracynow.org/es/2023/11/1/craig_mokhiber_un_resignation_israel_gaza

Zé Maria

“Reserva de Gás Natural da Costa Mediterrânea da Faixa de Gaza é
uma Alternativa Estratégica aos Países Europeus frente à Restrição
de Fornecimento de Gás da Rússia à Europa.”

https://youtu.be/8-QLL6fHIGg
https://youtu.be/gYYMYte-4Ac
https://youtu.be/1HD79_gfqPI?t=1622
https://youtu.be/1HD79_gfqPI?t=1728

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