Por Estela Scandola
Por Estela Márcia Rondina Scandola*
Ninguém está livre dos valores do patriarcado.
NINGUÉMMMMM!
Gritemos isso mesmo nos locais de trabalho, ônibus, aeroportos, esquinas…
NINGUÉMMMMM!
Portanto, nem eu! Branca, ainda hétero, mais de 12 anos de estudo, moradora de cidade, bairro de classe média com coleta de lixo 6 vezes por semana, nem baixa, nem alta, nem gorda, nem magra… enxergando, ouvindo, andando… e de esquerda, como a maior parte das pessoas do meu entorno.
Eu imaginava que a maioria das pessoas que me abordasse perguntaria diretamente:
— Que cirurgia você fez?
Aí, eu explicaria e seguiríamos com outros assuntos.
Para minha surpresa, não foi nada assim.
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Sim, fiz uma cirurgia para correção de incontinência urinária por esforço, que os médicos chamam pela sigla IUE.
Sim, temos um buraco a mais do que as pessoas que nascem do sexo masculino. Nossa uretra é separada do canal vaginal…
Como quase todo mundo sabe disso, imagino eu, de novo, que as perguntas só poderiam ser derivadas da estrutura máscula-abestada que construiu a representação histórica sobre nossos corpos.
Sim, sob a égide do patriarcado o corpo das mulheres existe para servir ao mundo organizado para satisfazer o sucesso e controle dos homens.
Portanto, o meu corpo falado abertamente ofendia a moral imposta por corpos não mulheridos. E, em tempos de feminicídio tantos, detalhar o sofrer parece coisa menor… inclusive muitas fêmeas que reproduzem o machismo também pensam e falam assim.
E, o mais grave, eu, insubmissa à ordem da discrição e realizando o espalhamento de informações das partes lá de baixo, especialmente aquelas entre as pernas pareço mesmo uma pontinha lilás fora da curva.
A contenção mais efetiva é o constrangimento que nos impõem e o setor que se chama “as partes baixas das fêmeas” – aquela, mesmo, que só conversamos nas alcovas, salas médicas, de enfermagem ou nas transgressões é o setor des-conversado.
Por isso, povoa os imaginários de bestagens sem tamanho juntando urológico e o ginecológico como sendo a mesma coisa… talvez daí as perguntas antes da cirurgia foram mais ou menos assim:
— Vai corrigir lá embaixo? Vai aproveitar e fazer o períneo? Teve parto normal?
— Vai aproveitar e dar uma apertadinha?
— Vai arrumar a menina lá embaixo?
— Nossa, que oportunidade!!!, já faz a plástica na barriga.
Brincando com meus pensamentos, primeiro, fiquei assustada, depois ri. A mesa do bar não é lugar pras conversas ginecológicas ou dos prazeres… então, onde conversar sobre isso?
Sim, tenho barriga de 60 anos. Mas sou larga e feia na concepção de quem!?
Lá, vem o patriarcado junto com o capitalismo… aliás, são compadres de jogatina com a vida da gente.
Jogam bombas, criam (des)envolvimento, mantém valores que lhes convêm…
O patriarcado domina os corpos e determina como devem ser as fêmeas. E o capitalismo determina o bonito e o correto e nos vende mercadorias…
Então, plásticas, medicamentos, estética e arrumações gerais servem ao mercado e esse tem dono: os compadres pátrio e capital… Pior é que eles trucam numa mesa de vidro pra testar se não quebra… e, nós, bem, quando ainda vivemos fazemos versos pra mostrar que estamos percebendo a realidade.
Apenas uma ou duas pessoas, fora do grupo dos cuidados, conversou comigo sobre minhas expectativas em relação à cirurgia, o que realmente estava acontecendo com o meu corpo, as informações que eu detinha…
Inclusive duas jovens mulheres falaram dos desconfortos da incontinência urinária de esforço e na gestação… e das vergonhas que sentiam. Guardaram quietas seus pesares.
Percebi que precisavam conversar sobre elas e sobre mim…Enfim, sobre nós mulheres.
As mulheres com incontinência urinária de esforço são muitas.
Não temos estudos nacionais. Atinge até 55% das mulheres, segundo alguns grupos de pesquisa, mas a maioria indica entre 20 e 25% e ocorre desde os 20 anos de idade.
Sim, eu havia tido perda urinária de urgência durante as duas gestações.
Fazia xixi nas escadas ao subir para o apartamento. Depois, na garagem da casa térrea.
Primeiro, ficava constrangida, chorava. Depois, passei a rir. Passou a gravidez não tive mais.
Só fui perceber que eu tinha perda urinária por esforço quando fui passar uma semana no Centro de Vida Saudável e, no horário da academia, o professor — moço jovem, bem jovem — havia orientado o polichinelo.
Na segunda abertura de perna, a urina tomou conta do short. Ele, discretíssimo e acolhedor disse:
— Mulher, vamos mudar o seu exercício. Você quer ir mudar o short ou continuamos em outras atividades agora?
Foi tão fantástica a atitude dele que, caminhando para o quarto, fui tentando lembrar quando é que eu tinha tido a última perda.
Sim, havia algum tempo que eu tossia e apertava as pernas para que o xixi não saísse.
Interessante é que nem eu mesma me lembrava direito disso, a cada vez que acontecia.
Mas lembrei que passei a usar o protetor de calcinha quase que diariamente. Talvez um indicativo da incontinência urinária. E se divulgássemos isso e falássemos para as mulheres procurarem ajuda?
O que temos é a propaganda de calcinhas e fraldas… mas nada de falar que isso acontece com muitas mulheres e que devem procurar ajuda… nada!
Durante três anos, falei pro meu gineco o que vinha acontecendo comigo.
Em todas as vezes, depois de zilhões de exames, ele me dizia que eu não tinha nada. Que tudo poderia ser produto da minha cabeça. E, assim, segui… tinha culpa de não estar boa da cabeça.
Até que um stress advindo do trabalho desestabilizou meu diabetes controlado há 12 anos.
Na verdade, tudo desequilibrou: a pele, a visão, as emoções, o equilíbrio físico e… a perda urinária.
Já carregava na bolsa mais de um protetor de calcinha, tinha medo de fazer xixi sem me controlar.
Tudo junto: perda do trabalho e renda e a incontinência urinária.
Mudei de médico e fui em busca de uma mulher que quisesse entender envelhecimento.
Encontrei uma menina jovem que falou que era curiosa e isso me encantou. E, o melhor: feminista conversava comigo sobre o compadrio que nos domina.
Fiz os exames de sangue e o mapeamento urodinâmico. Saí feliz pensando que tinha sido um resultado mega power positivo e cirurgia não seria necessária. Uns medicamentos aqui, umas fisioterapias ali e tudo se resolveria.
Já tinha até contactado uma professora de pompoarismo. Não foi nada disso.
O resultado me amedrontou: era preciso cirurgia.
Liguei prá uma amiga, ela me deu força e contemporizou:
— A cirurgia é fácil. A minha é que não deu certo!
Chorei de montão várias vezes.
Liguei pra mais amigas, aquelas que já tinham feito a cirurgia e as que não tinham, aquelas que me cuidariam, as parentas…
Para espairecer, fui ao supermercado comprar frutas. Sim, eu estava em pânico.
Eis que no corredor do supermercado encontro uma colega psicóloga, especialista em saúde pública, feminista e companheira de muitas lutas… ela me diz:
— Estela, não fica assustada, não! Aproveita, dá uma apertadinha, conserta o que estragaram nos partos e, aí, convida um boy alfa e faz uma viagem de pura magia.
Calei, fiquei sem resposta, dei tchau.
Não havia medida pras respostas que eu precisava dar.
A minha vontade era sair xingando, mas sobrariam poucos seres humanos nos meus relacionamentos.
Ah…tinha também homens e mulheres que, quando eu dizia que ia fazer uma cirurgia para correção da contenção urinária, ou faziam de conta que não tinham escutado ou disfarçavam pra não perguntar nada.
A duras penas, entendi algumas coisas:
— ao tratar de quaisquer intervenções abaixo do umbigo das mulheres, o primeiro pensamento que vem à cabeça das pessoas é o retorno à virgindade;
— parece que as mulheres são vistas como tendo sempre alguma coisa estragada para consertar, especialmente no que se refere à estética de vulva e períneo;
— conversar sobre o corpo mulherido é, na maioria das vezes, uma ação revolucionária ou de controle.
Embora queiramos que sejam nossos territórios, os corpos das mulheres guardam perguntas absurdas pelas desinformações e pelo patriarcado.
Ri com minha acompanhante, quando vesti o roupão do pré-cirúrgico e a bunda ficou de fora. Tiramos foto fazendo pose.
Eu também tinha muitas perguntas sobre o que aconteceria comigo… mas confiava na pouca complexidade do procedimento.
Quando voltei para o quarto e as amigas já se revezavam no cuidado junto com os filhos, procuramos os furos, os cortes… nada. As novas tecnologias pouco invasivas são mesmo muito importantes…
Aí, já de alta do hospital e recuperada em casa, salvamos alguns vídeos e entendemos melhor a cirurgia que consiste na colocação do sling.
O sling é uma fita — parece redinha –, que é introduzida embaixo da uretra para aumentar a sua resistência.
A colocação é pelo canal vaginal.
Pronto, será que entenderam que a uretra é diferente de vulva e vagina?
Nas mensagens escritas no zap, incluí sempre algumas pessoas da parentela, amigas que sabiam da cirurgia. Eis que uma delas me liga, conversa daqui, conversa dali, ela fala:
— Estela, desculpa perguntar… mas você não goza quando faz sexo?
— Uai, tem vezes que sim, tem vezes que não… Por quê? Tem alguém aí que goza todas as vezes?
— Então o homi não tá dando conta…
— Desculpa, não entendi…
— Mulher que goza não tem problema desse daí…
Eu havia atendido ao telefone muito contente.
Fui murchando, pensando, sentindo… não era possível continuar a conversa.
Pior, a pessoa era da área da saúde…
Fui sendo tomada por uma vontade imensa de não conversar com ninguém… É preciso criar uma bolha para conversarmos senão enlouquecemos.
Tem vezes que só quero falar com quem não me perguntasse merdança. Mas como saber de onde vem a pior pergunta?
Cheguei a pensar em não mais explicar nada.
Depois pensei que era melhor escrever, tipo fazer um dicionário explicando o corpo das mulheres, as diferentes funções de cada parte, as palavras corretas, as diferenças…
Pensei de novo e senti o desejo de falar e falar…
É preciso falar dos amores das amigas, dos cuidados, da casa que limpam, das delícias de comidas que fazem e trazem, das compras, da forma de ser de cada uma com seus cuidados, das cumplicidades, das inseguranças, dos choros e dos risos… da saudade dos netos e neta…
E, quando já estava pra mais da metade escrito, eis que tocou o telefone. Era um homi que aprecio enormemente:
— Mulher, vamos sair pruma cerva?
— Não posso… estou de pós operatório. É aquietar o facho e ficar em casa. Tipo perna pra cima pra tal redinha não desprender…
— Tô sabendo! Você tá novinha… vê se escolhe bem quem vai inaugurar isso daí, hein?
— A menina mandou eu dizer que não sou padaria pra inaugurar… mas, obrigada. Fica a saída para a próxima vez.
Olhei pra cozinha e pensei em tantas cuidadoras e do amor que me presenteiam…
É… os compadres, se a gente não cuida, eles nos guiam…
É hora de reinaugurarmos, isso é verdade! Inaugurarmos todos os dias os momentos de amor que podemos viver desafiando-os.
É como diz o título do romance de estreia da poeta, escritora e feminista palestina Heba Abu Nada (1991-2023): ”Oxygen is Not for the Dead”, de 2017, ainda sem versão em português.
Traduzindo: “O oxigênio não é para os mortos”. (veja PS do Viomundo)
Por isso, nos dias atuais, para sobreviver a tantos cheiros de morte, a gente se oxigenar em amigagem é o que podemos nos permitir. É disso que se trata as mulheragens?
*Estela Márcia Rondina Scandola, 61 anos de inteireza
PS do Viomundo: Em 20 de outubro de 2023, a poeta, escritora e feminista palestina Heba Abu Nada foi assassinada durante bombardeio de Israel à sua cidade, Khan Yunis, na Faixa de Gaza.
Tinha apenas 32 anos e uma carreira muitíssimo promissora à frente.
Em 8 de outubro, um dia após o início do conflito Israel-Hamas na região, Heba escreveu em seu perfil no X (antigo twitter):
“A noite da cidade é escura,
exceto pelo brilho dos mísseis, silenciosa,
exceto pelo som dos bombardeios, assustadora,
exceto pela garantia das súplicas, negra,
exceto pela luz dos mártires’’.
A Editora Tabla, cujo foco é a publicação de livros referentes às culturas do Oriente Médio e do Norte da África e seus ecos mundo afora’, postou em sua conta no Instagram:
“É com muita tristeza que recebemos a notícia da morte da poeta e romancista Heba Abu Nada, assassinada no bombardeio israelense à cidade de Khan Yunis, na Faixa de Gaza.
Heba tinha 32 anos, era formada em bioquímica e tinha mestrado em nutrição clínica. Seu romance de estreia, “Oxigênio não é para os mortos”, ficou em segundo lugar no Sharjah Award for Arab Creativity em 2017.
Como Heba, milhares de crianças e jovens foram assassinados em nome de um projeto imoral, forjado há décadas. Todos tinham um nome, uma presença e um caminho. Vidas que importam, sim, porque quem conhece os palestinos sabe que é gente de coração incorruptível no seu amor pela vida, no seu olhar para o outro.
A cada vida palestina que se apaga, o mundo fica mais feio, mais pobre, mais medíocre, mais infeliz.
Um dia antes de ser assassinada, Heba Abu Nada escreveu: “Se morrermos, saibam que estamos satisfeitos e firmes. Digam ao mundo, em nosso nome, que somos um povo da verdade.”
Ah mundo insano… que avilta a vítima e exalta seu algoz!!
Que haja uma dimensão, um canto nesse vasto universo onde a alegria, o riso e a dignidade dessas milhares de crianças e jovens possam existir, se espalhar e seguir iluminando”.
Estela Scandola
Estela Rondina Scandola é assistente Social, Especialista em Saúde do Trabalhador e em Psicologia Social, Mestre em Saúde Coletiva, Doutora em Serviço Social. Feminista, educadora popular, integra colegiados e movimentos de políticas públicas e direitos humanos, produz conteúdos a partir da vida no centro da América Latina. Quadrivó.
Comentários
Mariana
Bom te ler, bom aprender pra conseguir ensinar 💜
Rosangela Astun
Seus textos são únicos Estela, sinto enorme prazer em lê -los. E apesar da seriedade e profundidade dos assuntos, seu estilo é ímpar e seu comprometimento com a militância é admirável.
Jucylleyde
Ahhh Estela!!! Como amo ler seus textos!!! Como são importantes! E lendo esse me deu uma sensação de descuido com vc rsrsrs. Eu queria mesmo ter participado de tudo isso, mas só pra te ajudar a ficar de perninhas pra cima e jogar conversa fora!
Angela Vanessa
Nossa vivência rodeada de silenciamentos e de incompreensões que surgem de onde não esperamos, mas que estão em todo lugar.
Zé Maria
Na ‘Cultura Judaico-Cristã,
em especial, em Países
Capitalistas, as “Partes
Baixas” dão o que falar,
como se fossem Peças
Estranhas ao Organismo.
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