Jair de Souza: Avanço tecnológico pode acentuar a desigualdade e o processo de exclusão

Tempo de leitura: 6 min
Arte: Blog Jaque al Neoliberalismo

O avanço tecnológico e o neoliberalismo

Por Jair de Souza*

Nas últimas semanas, o tema dos avanços científicos na área da inteligência artificial ocupou boa parte dos espaços nos meios de comunicação. Face a isto, pudemos constatar reações de caráter nitidamente contraditório.

Muitos demonstraram sua satisfação, por vislumbrar uma perspectiva de elevação do nível de vida de nossa população em razão da ampliação do controle humano sobre as forças produtivas.

Outros, no entanto, encararam esta mesma questão com um indisfarçável temor: a possibilidade de que boa parte de nossa população se torne supérflua e, por isso, passe a fazer parte dos descartáveis de nossa sociedade.

Mas, no final das contas, quem tinha razão em relação a essa disjuntiva, os que adotaram a posição otimista, ou os que demonstraram seu pessimismo?

A bem da verdade, não há uma resposta absoluta que possa ser aplicada de antemão a esta indagação.

Tudo vai depender das características prevalecentes na sociedade em que a questão está sendo colocada.

Portanto, uma vez mais, gostaria de recorrer a minha formação como economista para tentar esboçar um quadro que permita elucidar a essência do problema que estamos debatendo.

Para propósitos de formulação teórica, vamos inicialmente fazer uma simplificação imaginária em que temos uma sociedade bem igualitária, composta inteiramente por agentes economicamente ativos que se dedicam a produzir cestas básicas (um amalgamado de todos os bens e serviços que atendem as necessidades dos membros dessa sociedade).

Apoie o jornalismo independente

Em termos numéricos, sua constituição seria a seguinte:

Número total de integrantes = 1.000.000; tempo de trabalho diário por pessoa = 8h; produção
por trabalhador = uma cesta básica a cada jornada; produção diária total = 1.000.000 de cestas
básicas (1 por cada habitante/trabalhador).

Vamos supor que há uma elevação do nível tecnológico que aumenta a produtividade em 20%.

Podemos, então, nos deparar com as seguintes duas alternativas básicas:

a) Mantém-se o tempo de trabalho por indivíduo. Em consequência, a produção resultante
será acrescida em 20%, vindo a totalizar 1.200.000 cestas básicas (1,2 cesta por habitante);

b) Diminui-se o tempo de trabalho individual em 20%, para que cada cidadão trabalhe 6h40m
por dia e acabe por produzir as mesmas 1.000.000 de cestas básicas de antes.

Como estamos considerando que se trata de uma sociedade de base igualitária, dois prováveis desfechos se derivariam das hipóteses apresentadas.

No primeiro, todos continuariam trabalhando o mesmo tempo que antes e, com isso, receberiam um valor de produto acrescido de 20% (1,2 cesta básica por cada um, em lugar de apenas uma).

No segundo, cada habitante seguiria recebendo no final o mesmo que antes (uma cesta básica), porém teria trabalhado 20% a menos do tempo, beneficiando-se com um acréscimo proporcionalmente  equivalente em seu tempo de lazer.

Como podemos deduzir dessas teorizações, nas duas circunstâncias, a inovação tecnológica acarretaria em evidentes ganhos para toda a sociedade, seja por gerar um maior volume final de produtos, seja por ter exigido de cada um menos tempo de trabalho.

Entretanto, quando eliminamos a premissa inicial de um sistema igualitário e passamos a raciocinar em termos de uma sociedade neoliberal, o quadro sofre significativas transformações, e o avanço tecnológico pode implicar em resultados muito diferentes e contraditórios com o que tínhamos visto antes.

Como sabemos, no neoliberalismo, a prioridade é sempre daqueles que dominam a base econômica e, em vista disto, controlam o mercado.

Em outras palavras, tendo o Brasil como espelho, tudo funciona para atender em primeiro lugar os interesses dos banqueiros, dos grandes proprietários rurais e demais grandes capitalistas que exercem hegemonia sobre a sociedade.

Sendo assim, não existe nenhuma preocupação intrínseca de que os ganhos de produtividade  decorrentes de avanços tecnológicos venham a favorecer a todos de modo equitativo.

Na realidade, como vamos procurar demonstrar à continuação, a probabilidade é de que ocorra exatamente o oposto, com uma significativa acentuação da desigualdade e um brutal aumento do nível de exclusão social.

Retomemos, então, os dados usados com anterioridade para uma nova reflexão hipotética, agora, no âmbito de uma sociedade gerida pelos princípios do neoliberalismo.

Nesta perspectiva, se a produtividade se elevar em 20%, a tendência é que os donos das empresas, num primeiro momento, se proponham a manter a mesma carga horária de trabalho para seus empregados.

Com isso, entre várias outras combinações, as duas seguintes possibilidades se destacam:

a) O número de trabalhadores envolvidos nas atividades econômicas permaneceria inalterado. A produção total resultante cresceria em 20% , chegando a 1.200.000 cestas básicas.

b) Mantém-se a mesma produção total de antes (1.000.000 de cestas básicas) e reduz-se em 16,67% o número de trabalhadores empregados. Assim, teríamos 833.334 cidadãos trabalhando por 8 horas a cada dia. Como decorrência, 166.666 pessoas seriam eliminadas do processo produtivo da sociedade.

Evidentemente, no quadro recém visto, a primeira situação se mostra menos desfavorável para os trabalhadores.

Como todos continuam empregados, os grandes embates tendem a se desenrolar fundamentalmente em torno da forma como se efetiva a repartição dos frutos do trabalho, os quais tiveram uma elevação de 20%.

Os capitalistas vão se empenhar com o objetivo de se apropriar de modo exclusivo desse adicional gerado, enquanto que os trabalhadores vão lutar para que sua participação nesses ganhos suba o máximo possível.

O resultado desta disputa vai depender da correlação de forças entre as classes em confronto, assim como dos níveis de organização sindical, de consciência de classe e de unidade dos setores populares.

Porém, na segunda alternativa, o panorama se apresenta muitíssimo mais sombrio para os não capitalistas.

Com a manutenção da carga horária de trabalho e a diminuição do número de engajados no processo produtivo, além de não haver nenhuma perspectiva de os trabalhadores virem a se beneficiar em razão do aumento da produtividade, seu problema se vê agravado devido à inaproveitabilidade de um significativo número de pessoas, que se tornam praticamente descartáveis para o sistema.

Nas condições estipuladas, o sistema não tem meios e nem interesse em absorver a mão de obra que se mostrou excedente em razão da elevação da produtividade.

A alternativa de dar amparo a essa gente supérflua através da assistência social pública também não é vista como aceitável.

Não podemos nos esquecer que o neoliberalismo é decididamente contrário ao uso de recursos públicos para prestar assistência social aos necessitados.

Então, como resolver este problema? A lógica aplicada pelo neoliberalismo é relativamente simples. Se há um excedente populacional que está ameaçando perturbar as contas públicas, é preciso eliminar esse excedente.

Os teóricos (e também os teólogos) do neoliberalismo não admitem em hipótese alguma que recursos públicos venham a ser dilapidados em atividades que eles consideram improdutivas e desprezíveis, tais como essas de fornecer alimentação, assistência médica e educacional para pobres que não podem pagar por esses serviços.

O dinheiro sagrado dos cofres públicos só deveria ser usado para causas “nobres e abençoadas”, como, por exemplo, a remuneração dos possuidores de títulos do erário público e, vez por outra, a absorção das dívidas envolvendo bancos ou outras grandes empresas do sistema. (Americanas, presente!)

Como os avanços tecnológicos apontam sempre no sentido de que menos mão de obra vai ser necessária para a produção, os neoliberais se preocupam em encontrar maneiras de eliminar a quantidade de seres humanos que vai se tornando descartável, inservível para a manutenção do sistema.

Ao mesmo tempo que atuam para impedir ou dificultar ao máximo a organização sindical e social dos trabalhadores, os agentes do neoliberalismo também procuram encontrar maneiras de não deixar que o grande número de seres “inaproveitáveis” ponha em risco a continuidade do modelo econômico por eles apregoado. Por isso, políticas de cunho eugenista podem ser bem-vindas.

Não foi por mera casualidade que os ideólogos do nazismo bolsonarista, incluindo pastores e padres identificados com as teologias da prosperidade e do domínio, se esforçaram no sentido de bloquear as medidas sanitárias que visavam impedir o alastramento da covid-19 entre nossa população.

Como se sabia que sua letalidade era especialmente forte entre a população mais idosa e de menos recursos, esses ideólogos viram nessa pandemia um tipo de enviado divino que tinha a missão de purificar o mundo.

Por perverso que isso possa soar, pudemos ver e ouvir a várias pessoas que se identificam como cristãs fazendo a defesa da política genocida do governo nazista-bolsonarista.

Estava ali uma oportunidade de conseguir que um milhão de seres “inúteis” deixassem de “mamar” nas tetas do Estado.

Morreram cerca de 700.000 pessoas. O número meta objetivado pelo bolsonarismo foi quase que inteiramente alcançado.

Portanto, em termos sociais, uma melhora da capacidade produtiva com a elevação do nível tecnológico não vai necessariamente indicar que toda, ou a maioria, da população vai usufruir da mesma.

Dependendo do sistema socioeconômico vigente e da correlação de forças entre as classes que disputam as riquezas da sociedade, em lugar de apontar no rumo de uma vida mais digna e confortável, o avanço tecnológico pode atuar como um acentuador do nível de desigualdade e ser um fator intensificador do processo de exclusão.

A filosofia que move o neoliberalismo apregoa e busca impor uma liberdade ampla e absoluta para os interesses relacionados com o capital, ao passo que emprega toda a força de que possa dispor para bloquear e sujeitar qualquer tentativa de avanço dos grupos a ele submetidos.

Por isso, para as maiorias populares, os avanços tecnológicos vão sempre reforçar a necessidade de organizar e ampliar a luta para a própria superação do neoliberalismo e, no final, do próprio capitalismo, que o engendra.

*Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.

Apoie o jornalismo independente


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Zé Maria

https://twitter.com/i/status/1643647445912506370

URGENTE!

O PPI DA PETROBRAS VAI CAIR!

VITÓRIA EM UMA LONGA E DURA BATALHA!

O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira,
confirmou que haverá mudança na política
de preços dos combustíveis praticada pela
Petrobras, com a adoção de diretrizes baseadas
no mercado interno, e não no exterior!

A nova regra anunciada está na linha do que
o PSOL tanto lutou ao lado de tantos outros
partidos [como o PT], movimentos sociais e
trabalhadores do setor.

David Deccache
Assessor Econômico na Câmara dos Deputados/PSOL.
Diretor do IFFD.
Bacharel (UFRRJ), Mestre (UFF) e Doutorando em Economia (UnB).

https://twitter.com/deccache/status/1643659476258390023

“O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira,
confirmou que o PPI acabará e os preços serão
abrasileirados, como prometeu LULA na campanha.

Essa medida é fundamental para reduzir o preço dos combustíveis
e retomar o papel estatal da companhia, como sempre alertamos.”

“Defender a Petrobras é defender o Brasil!”

Observatório Social do Petróleo
https://twitter.com/ObsPetroleo/status/1643647445912506370

Zé Maria

.
.
Pelo menos, desde os anos 1980,
com a Toyotização Neoliberal
dos tempos de Reagan e Thatcher,
a Automação está dizimando o
Trabalho Tradicional – e as Relações
de Produção entre Capital e Trabalho –
precarizando ou extinguindo Empregos
de maneira Irreversível.
.
.
“II
O capitalismo contemporâneo, com a configuração que vem assumindo
nas últimas décadas, acentuou sua lógica destrutiva.

Num contexto de crise estrutural do capital, desenham-se algumas
tendências, que podem assim ser resumidas:

1) o padrão produtivo taylorista e fordista vem sendo crescentemente
substituído ou alterado pelas formas produtivas flexibilizadas e
desregulamentadas, das quais a chamada acumulação flexível e o
modelo japonês ou toyotismo são exemplos;

2) o modelo de regulação social-democrático, que deu sustentação
ao chamado estado de bem estar social, em vários países centrais,
vêm também sendo solapado pela (des)regulação neoliberal,
privatizante e anti-social.

Pelo próprio sentido que conduz estas tendências (…),
acentuam-se oselementos destrutivos que presidem
a lógica do capital.

Quanto mais aumentam a competitividade e a concorrência inter-capitais,
inter-empresas e inter-potências políticas do capital, mais nefastas são
suas consequências.

Duas manifestações são mais virulentas e graves: a destruição e/ou
precarização, sem paralelos em toda era moderna, da força humana que trabalha
e a degradação crescente, na relação metabólica entre homem e natureza,
conduzida pela lógica voltada prioritariamente para a produção de mercadorias
que destroem o meio ambiente.
Trata-se, portanto, de uma aguda destrutividade, que no fundo é a expressão
mais profunda da crise estrutural que assola a (des)sociabilização contemporânea:
destrói-se força humana que trabalha; destroçam-se os direitos sociais;
brutalizam-se enormes contingentes de homens e mulheres que vivem do
trabalho; torna-se predatória a relação produção/natureza, criando-se uma
monumental “sociedade do descartável”, que joga fora tudo que serviu como
“embalagem” para as mercadorias e o seu sistema, mantendo-se, entretanto, o
circuito reprodutivo do capital. ”
[…]
“Em verdade, estamos presenciando a acentuação
daquela tendência que István Mészáros sintetizou
corretamente, ao afirmar que o capital, desprovido
de orientação humanamente significativa, assume,
em seu sistema metabólico de controle social, uma
lógica que é essencialmente destrutiva, onde o valor
de uso das coisas é totalmente subordinado ao seu
valor de troca” (Mézáros, 1995…).”
[…]
“Vê-se que se trata de uma processualidade complexa que podemos assim
resumir:

1) há uma crise estrutural do capital ou um efeito depressivo profundo
que acentuam seus traços destrutivos;

2) deu-se o fim do Leste Europeu, onde parcelas importantes da esquerda
se ‘socialdemocratizaram’;

3 ) esse processo efetivou-se num momento em que a própria
Social-Democracia sofria uma forte crise;

4) expandia-se fortemente o projeto econômico, social e político neoliberal.

Tudo isso acabou por afetar fortemente o mundo do trabalho, em várias
dimensões.”
[…]
“III
Como resposta do capital à sua crise estrutural, várias mutações vêm
ocorrendo e que são fundamentais nesta viragem do século XX para
o século XXI.

Uma delas, e que tem importância central, diz respeito às metamorfoses
no processo de produção do capital e suas repercussões no processo
de trabalho.

Particularmente nos últimos anos, como respostas do capital à crise
dos anos 70, intensificaram-se as transformações no próprio processo
produtivo, através do avanço tecnológico, da constituição das formas
de acumulação flexível e dos modelos alternativos ao binômio
taylorismo/fordismo, onde se destaca, para o capital, especialmente,
o toyotismo.

Estas transformações, decorrentes, por um lado, da própria concorrência
inter-capitalista e, por outro, dada pela necessidade de controlar o
movimento operário e a luta de classes, acabaram por afetar fortemente
a classe trabalhadora e o seu movimento sindical e operário (Murray, 1983;
Bihr, 1998).

Fundamentalmente, essa forma de produção flexibilizada busca a adesão
de fundo, por parte dos trabalhadores, que devem aceitar integralmente
o projeto do capital.

Procura-se uma forma daquilo que chamei, em ‘Adeus ao Trabalho?’, de
envolvimento manipulatório levado ao limite, onde o capital busca o
consentimento e a adesão dos trabalhadores, no interior das empresas,
para viabilizar um projeto que é aquele desenhado e concebido segundo
os fundamentos exclusivos do capital.

Em seus traços mais gerais, o toyotismo (via particular de consolidação
do capitalismo monopolista do Japão do pós-45) pode ser entendido
como uma forma de organização do trabalho que nasce a partir da
fábrica Toyota, no Japão e que vem se expandindo pelo Ocidente
capitalista, tanto nos países avançados quanto naqueles que se
encontram subordinados.
Suas características básicas (em contraposição ao taylorismo/fordismo)
são:

1) sua produção muito vinculada à demanda;

2) ela é variada e bastante heterogênea;

3) fundamenta-se no trabalho operário em equipe,
com multivariedade de funções; [e]

4) tem como princípio o ‘just in time’, o melhor aproveitamento
possível do tempo de produção e funciona segundo o sistema
de ‘kanban’, placas ou senhas de comando para reposição de
peças e de estoque que, no Toyotismo,devem ser mínimos.

Enquanto na fábrica fordista cerca de 75% era produzido
no seu interior, na fábrica toyotista somente cerca de 25% é
produzido no seu interior.

Ela horizontaliza o processo produtivo e transfere a ‘terceiros’
grande parte do que anteriormente era produzido dentro dela.

A falácia de ‘qualidade total’ [produtividade] passa a ter papel
de relevo no processo produtivo.

Os Círculos de Controle de Qualidade (CCQ) proliferaram, constituindo-se como grupos de trabalhadores que são incentivados pelo capital para discutir
o trabalho e desempenho, com vistas a melhorar a produtividade da empresa.

Em verdade, é a nova forma de apropriação do saber fazer [‘Know How’] intelectual do trabalho pelo capital.”

RICARDO ANTUNES
“A Cidadania Negada”
Capítulo II. “Trabalho e
Precarização numa
Ordem Neoliberal”.
Páginas 37/38.

Íntegra em:
http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/gt/20101010021549/3antunes.pdf
http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/gt/20101010020526/gentili.pdf
.
.

Deixe seu comentário

Leia também