Dalva Garcia: Ludibriados pela propaganda enganosa do NEM, estudantes ocupam as ruas para revogá-lo já
Tempo de leitura: 8 minPor Dalva Garcia
1, 2, 3, 4, 5 mil! Revoga a reforma ou paramos o Brasil! ✊🏽
Os estudantes de São Paulo estão mobilizados pela revogação do Novo Ensino Médio! #RevogaNovoEnsinoMédio #RevogaNEM pic.twitter.com/u2fLnTKW06
— União Brasileira dos Estudantes Secundaristas ✏️ (@ubesoficial) March 15, 2023
A revogação do NEM nas ruas
Por Dalva Garcia*
Na quarta-feira, 15 de março, entidades estudantis — UNE-União Nacional Estudantil, UBES-União Brasileira dos Estudantes Secundaristas e UMES-União Municipal dos Estudantes Secundaristas –, foram às ruas em mais de 50 cidades do País pela revogação do Novo Ensino Médio, conhecido por NEM.
Em São Paulo, a manifestação começou na Avenida Paulista, em frente ao MASP. Pela Avenida Brigadeiro Luís Antônio, seguiu até a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp).
Como professora da rede pública, tenho acompanhado o debate em torno do NEM.
Lamentavelmente sou testemunha do descontentamento de estudantes que estão terminando o ensino médio.
Ninguém me contou, eu ouvi da boca deles.
Estão desiludidos com a gigantesca distância entre a realidade e as promessas da publicidade oficial do MEC (em 2017 durante o governo Temer) para justificar a necessidade da reforma.
Afinal, hoje já é possível perceber as distorções decorrentes desta proposta.
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Por exemplo, alunos mais tempo dentro de sala de aula (9 aulas em cada turno), mas sem aulas de história, biologia ou química.
Professores com 7 ou 8 aulas em uma única turma trabalhando com 3 ou 4 itinerários formativos ou de expansão sem relação direta ou, mesmo indireta, com sua formação (graduação, pós-graduação ou trabalho de pesquisa).
O meu caso escancara bem essa distorção.
Sou formada em Filosofia, pesquiso temas relacionados à estética e sua relação com o ensino de Filosofia.
No currículo do NEM o conhecimento filosófico está vinculado à área de Ciências Humanas e Sociais aplicadas.
E, agora, itinerários como “cidadania digital” ou “ativismo digital” substituem os conhecimentos que há mais de 30 décadas me dedico a investigar.
Por maior que seja minha “habilidade” de buscar relações, confesso que há uma distância incomensurável entre estudar semiótica ou teoria de comunicação e ministrar aulas sobre ativismo digital.
Aliás, desconheço uma Universidade séria que se dedique a ensinar ativismo digital aos seus alunos para se tornarem influenciadores bem remunerados.
Assim como, desconheço influenciadores digitais faturando alto no terreno da comunicação que frequentaram os bancos escolares para aprenderem a ser “ativistas” de redes sociais.
Nas escolas estaduais paulistas a situação é mais surreal ainda.
Recentemente a Secretaria de Estado da Educação (Seduc) determinou o bloqueio das redes e conexões wifi nas escolas, para atender pais preocupados com a exposição de seus filhos a todo tipo de informação via internet.
Então, seguindo as orientações da Seduc eu tenho que ensinar ativismo digital sem conexão digital, apenas teoricamente.
Se é piada?!
Não, não é piada. É a realidade atual nas escolas estaduais paulistas.
Talvez até o final do semestre, eu consiga redigir um manual em formato de apostila do que um ativista social deve fazer… (se isso fosse de fato relevante no ensino básico)
Assim mesmo, isso só seria possível se a escola tivesse verba para fazer cópias e distribuí-las a uma turma de 45 alunos. Para duas turmas nem pensar.
Outra possibilidade é aguardar que a Seduc redija o seu manual e eu possa reproduzi-lo.
Reproduzir na escola pública significa fazer os alunos copiarem nos seus cadernos o que se coloca no quadro.
Cadernos que, verdade seja dita, serão descartados com muita sorte no fim do ano letivo.
Digo com muita sorte, pois é comum vê-los nas lixeiras no fim do bimestre.
Os jovens se cansam rápido das imagens de uma única capa.
O que não é de se estranhar, já que vivem num universo repleto de imagens.
Diante de todos esses absurdos, é fácil entender a razão de professores e alunos questionarem o tal do ”NOVO ensino médio”.
Ainda mais quando estão no último ano do NEM.
Esses alunos não têm sequer uma única aula de biologia. Porém, têm que aprender a construir algo vinculado à sustentabilidade. Por exemplo, uma casa sustentável que preserve a saúde do planeta.
São poucos os pais de alunos de escola pública que podem adquirir um terreninho, mas obedecendo ao discurso de desenvolver “habilidades e competências” os jovens, sob orientação de professores, talvez façam uma maquete de isopor para a avaliação final.
Depois a jogarão na lixeira da esquina de casa ou da escola para serem arrastadas pela chuva entupindo bueiros.
Não é à toa que, na manifestação de quinta-feira, alguns alunos gritavam em alto e bom som na Avenida Paulista: “itinerário é o caraio”.
Rima pobre, chula alguns diriam, mas potente para expressar o descontentamento de quem viu as aulas de literatura ou gramática serem substituídas por um itinerário como de escrita publicitária ministradas por um professor de gramática ou literatura.
Isso não significa que um professor com formação em Letras não possa se dedicar à publicidade.
Pode, sim. Aliás, bons publicitários fizeram Letras, Filosofia ou Arquitetura.
Tinham fundamentos para extrapolar as limitações da repetição e, puderam, com base na investigação e formação sólida dominar e criar novas tecnologias e linguagens criativas e interativas.
O que eu quero dizer aqui é o seguinte: a empolgação com o “boom” do mercado de tecnologias não pode ultrapassar as crises que o próprio mercado impõe.
O número de desempregados em massa de empresas vinculadas às tecnologias avança vertiginosamente não só no Brasil mas globalmente. Basta consultar a grande mídia (nem me refiro às publicações especializadas).
Ousaria dizer que a explosão de garotos e garotas nas ruas do país na última quinta-feira relaciona-se à percepção de quem acreditou num discurso fake. Falso, mesmo!
Discurso baseado inclusive em dados e estatísticas falsos, porque não foram suficientemente avaliados ou comprovados.
A atual gestão do Ministério da Educação (MEC) propõe diálogo através de consulta pública para reavaliar os danos desastrosos de uma iniciativa malograda.
Diz que é cedo para apontar o “possível erro” de estratégias do NEM.
Algo como fazer a reforma de uma casa recém-construída e que já apresenta rachaduras, podendo desabar a qualquer momento.
Alguns dizem que não se pode revogar o NOVO, sem propor algo NOVO no lugar.
Para eles, é como se a educação fosse algo semelhante a embalagens novas com novos ingredientes de sabão em pó ou de biscoitos recheados.
O que não é nada NOVO é o discurso da educação como mercadoria rentável.
Vi esses dias, no Facebook, grupos disponibilizando planos de aula prontos para professores oferecerem as tais disciplinas eletivas e novos itinerários de formação e expansão.
O professor tem que trabalhar e não tem condições de estudar ou escrever e tem querendo faturar uma graninha em cima dessa situação.
O que antes era monopólio de mercado editorial se diversificou, inovou.
É imensa a quantidade de aplicativos, cursos virtuais oficiais e oficiosos, consultorias de fundações de todos os tipos.
Mas, infelizmente, essa progressão e diversificação do mercado educacional está em descompasso com a valorização do magistério, da pesquisa cuidadosa que não despreza a tradição transformadora do conhecimento.
Os arautos do NOVO confundem o NOVO com a novidade.
Recusam-se a analisar os resultados de pesquisas feitas com garra por professores dos Institutos Federais que já indicam que os resultados podem ser promissores para a formação um pouco mais sólida dos jovens.
Enganam-se os que se escondem por trás destes maniqueísmos comuns hoje em dia:
— família do bem versus família do mal
— escola tradicional versus escola tecnológica e inovadora
— educadores retrógrados versus educadores progressistas
— alunos aplicados versus alunos vagabundos
— jovens que gritam palavrões versus os que fazem discursos comoventes em ONGS e Fundações
— revolucionários versus conservadores
Mutatis mutantes: “são as famílias na sala de jantar, tão preocupadas em nascer, morrer”.
Uma preocupação que se agiganta quando o nascer, morrer, educar, formar vira disputa narrativa que negligencia a formação da humanidade em nome de interesses politiqueiros e mercadológicos.
A revogação do Novo Ensino Médio não pode esperar para o ano que vem.
É questão urgente. Pra já!
Não apenas porque os estudantes voltaram às ruas, mas porque, mais uma vez, foi necessário ocupar as ruas para mostrar que foram ludibriados.
Me parece evidente que o antigo Ensino Médio tinha fissuras que mereciam revisão.
Mas o que o movimento dos estudantes aponta, hoje, é que o NOVO Ensino Médio está condenado ao desmoronamento, que pode provocar a morte desta etapa do ensino e, consequentemente, esperanças desaparecidas pelo aprofundamento de desigualdades sociais e econômicas que se avolumam dada a diferença entre o ensino publico e privado.
Portanto, aqui vão os meus pedidos:
— que a vozes das ruas sejam, de fato, ouvidas, e não apenas contabilizadas em consultas públicas de sites oficiais com perguntas dúbias;
— que sejam ouvidos diretores das escolas públicas que são obrigados a atribuir aulas para quem aparecer para evitar aulas vagas;
— que sejam ouvidos principalmente alunos durante as 9 aulas de um turno que não conseguem discernir o que vão estudar nem qual é o professor disso ou daquilo;
— que sejam ouvidos os professores nas escolas, sem medo ou pressão, sobre o que significa neste país fazer Universidade e ter o seu saber dissolvido em jargões publicitários denominados itinerários e menosprezada a sua experiência e esforço de construção educacional;
— que sejam ouvidos os pais efetivamente preocupados com a formação dos filhos e que brigam para que eles tenham o mínimo de estímulo para estudar e não somente ver lives de maquiagem ou jogos de aposta virtuais.
Se é preciso ampliar o diálogo para contemplar com ciência o desastre que se anuncia como dizem alguns “especialistas” em educação, que estejam atentos a esta citação de Roland Barthes em aula inaugural da cadeira de Semiologia do Colégio da França, em 1977:
“Gostaria pois que a fala e a escuta que aqui se trançarão fossem semelhantes às idas e vindas de uma criança que brinca em torno da mãe, dela se afasta e depois volta, para trazer-lhe uma pedrinha, um fiozinho de lã, desenhando assim ao redor de um centro calmo toda uma área de jogo, no interior do qual a pedrinha ou a lã importam finalmente menos do que o dom cheio de zelo que deles se faz”. Roland Barthes, “Aula” , Editora Cultrix
Em suma, que o zelo de todos que se pronunciam preocupados com educação considere efetivamente as “pedrinhas e fiozinhos” de lã trazidos nas falas dos jovens.
*Dalva Garcia é professora de filosofia da rede pública de São Paulo.
COMO É 0 NEM — O NOVO ENSINO MÉDIO
A reforma do ensino médio foi instituída pela Lei 13415/2017 durante governo Temer.
O calendário e prazo para a implementação aconteceram durante o governo Bolsonaro.
O NEM (novo ensino médio) determina disciplinas de formação básica que compõem essa etapa de ensino em 3 anos organizadas em 4 áreas:
1- Linguagens e suas tecnologias (português, inglês, artes e educação física)
2- Matemática e suas tecnologias (matemática)
3- Ciências da natureza e suas tecnologias (Química, Física e Biologia)
4- Ciências Humanas e sociais aplicadas (História, Geografia, Sociologia e Filosofia)
Nos primeiros anos do NEM no Estado de São Paulo, os alunos cumprem as disciplinas de formação básica com carga horária diminuída, pois o currículo deve contemplar o Projeto INOVA composto por mais 3 componentes curriculares. Efetivamente 15 componentes curriculares.
1) Projeto de Vida
2) Eletivas (formalmente oferecidas pelas escolas para serem escolhidas pelos alunos matriculados – digo formalmente porque as turmas dos componentes eletivos são distribuídas aos professores antes da proposta ser oferecida aos alunos)
3) Tecnologias
No primeiro ano do NEM, o aluno deve fazer opção por áreas de conhecimento e os denominados itinerários de formação que podem ser híbridos, mesclando uma área a outra.
Formalmente as escolas devem oferecer pelo menos dois itinerários de formação, mas a escolha passa por, pelo menos, 12 itinerários e, inclui a possibilidade de opção por direcionamento para educação técnica que não constitui carga horária necessária para a profissionalização.
Segunda o MEC, ”são itinerários formativos o conjunto de unidades curriculares ofertadas pela escola e redes de ensino que possibilitam ao estudante aprofundar seus conhecimentos e se preparar para o prosseguimento de estudos ou para o mundo do trabalho” .
No segundo ano, cerca de 30% do currículo corresponde aos itinerários de formação ofertados pela rede de ensino. Os demais 60% divididos entre formação básica relativa a cada área de escolha para “expansão” de estudos e projeto INOVA ( projeto de vida, eletiva e tecnologias).
No terceiro ano, cerca de 70% do currículo é distribuído entre os itinerários formativos e 30% destinado à formação básica e INOVA. Isso efetivamente implica na exclusão de conhecimento vinculado às disciplinas de formação básica como história, geografia, química, física, artes, filosofia, sociologia.
*Dalva Garcia é professora de filosofia da rede pública de São Paulo.
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Dalva Garcia
Professora de filosofia da rede pública de São Paulo.
Comentários
Wanda Rodrigues
Nas escolas particulares a situação passa por mais exploração dos professores.
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