Jeferson Miola: O governo Lula no contexto da guerra de saqueio e pilhagem do Brasil
Tempo de leitura: 6 minO governo Lula no contexto da guerra de pilhagem do Brasil
Por Jeferson Miola, em seu blog
A posse do presidente Lula em 1º de janeiro de 2023 foi a apoteose da alegria e da democracia.
Uma exuberante celebração do reencontro do Brasil com a vida, com a civilização e, também, com o mundo, que respirou aliviado com a eleição do Lula.
I.
A vibração popular com a posse do novo governo trouxe expectativas que logo se revelaram provisórias sobre o fim definitivo da tormenta fascista-militar. Já no primeiro domingo subsequente, exatamente uma semana depois, tais expectativas se desvaneceram.
O atentado audacioso contra os poderes da República e o Estado de Direito evidenciou que a vitória eleitoral da frente antifascista em 30 de outubro não encerrou a luta para deter a ameaça de extrema-direita que ronda o Brasil e o mundo.
O 8 de janeiro tem múltiplos significados. Um deles, em especial, merece atenção principal: o governo Lula não terá trégua.
Será alvo do combate feroz e permanente da facção de extrema-direita da classe dominante que tem enraizamento popular e expressiva representação parlamentar e, além disso, conta com a liderança de um demagogo carismático, tem engajamento militante nas ruas e nas redes, e está fortemente armada.
II.
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A eleição do Bolsonaro em 2018, só concretizada devido à farsa judicial da Lava Jato para tirar Lula do páreo eleitoral, não foi um acidente de percurso.
O capitão da reserva do Exército foi a escolha consensual da mídia hegemônica e de todas as frações da classe dominante – desde o centro à extrema-direita do espectro ideológico, sob direção dos estamentos militares – para evitar a interrupção precoce do ciclo de espoliação brutal da riqueza do país aberto com a derrubada da presidente Dilma em 2016.
A vitória do Bolsonaro derivou, nesta perspectiva, da convergência tácita entre os estamentos militares e o establishment para a continuidade e o aprofundamento da guerra de saqueio e pilhagem do país.
Embora na eleição de 2022 a chapa militar Bolsonaro/Braga Netto não tenha conseguido catalisar com a mesma eficácia de 2018 a coesão eleitoral da classe dominante, isso não significa que neoliberais e conservadores tenham se descolado do extremismo bolsonarista do ponto de vista político, programático e, inclusive, estratégico.
III.
A manutenção da combalida democracia brasileira foi o motor para a adesão de setores liberais e da direita democrática à candidatura Lula/Alckmin.
A reeleição de Bolsonaro daria um impulso extraordinário à ameaça autoritária-militar e aumentaria sobremaneira o risco de uma escalada fascista, o que poderia ser inconveniente para o próprio capital.
O compromisso desses setores neoliberais com a democracia e com o governo Lula, porém, é circunstancial, e tem um claro limite: vai só até o ponto em que não afetar o padrão indecente de acumulação inaugurado com o golpe de 2016.
Para liberais e direitistas, como é sabido, a democracia tem um valor meramente instrumental. Pode ser facilmente descartada, se ameaçar suas perspectivas de acumulação e exploração.
IV.
A “nova ordem” legal e constitucional do Brasil pós-golpe de 2016 transformou o direito dos capitais ao roubo e ao saqueio em um direito sagrado no Brasil.
Nos períodos Temer e Bolsonaro foi conformado o arcabouço jurídico-institucional para proteger a espoliação com um falso verniz de legitimidade.
A independência do Banco Central, o teto dos gastos sociais, o mecanismo PPI da Petrobrás [Preço Paritário de Importação], o fim da legislação trabalhista, a regressão previdenciária e outros mecanismos antipovo e antinação são “direitos sagrados” assegurados a rentistas, saqueadores e exploradores capitalistas por meio de mudanças legais e constitucionais impostas.
O Brasil é, na atualidade, o paraíso mundial do rentismo, onde se paga 8% real de juro ao ano, já descontada a inflação. O negócio mais lucrativo do mundo!
A Petrobrás é a vice-campeã mundial em distribuição de dividendos. Em 2023 vai desviar 215 bilhões de reais [42 bilhões de dólares] dos lucros da empresa para as mãos de um punhado de acionistas privados, em sua maioria estrangeiros.
V.
O presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira, notório colaboracionista do governo fascista-militar, fez um discurso para empresários paulistanos [7/3] que pode ser interpretado tanto como um alerta realista ao governo Lula sobre os impasses no Congresso, mas também como uma ameaça/chantagem.
O governo não tem base parlamentar própria, eleita pela coalizão eleitoral de 11 partidos, sequer para aprovar leis simples, quanto menos para reverter retrocessos por meio de leis complementares e mudanças constitucionais, que exigem quóruns superiores.
O mais preocupante, no entanto, é que a coalizão original do governo não elegeu 172 votos próprios e fieis na Câmara dos Deputados para proteger Lula e impedir outro golpe farsesco como o perpetrado contra a presidente Dilma em 2016.
Sem volteios, Lira foi direto ao ponto: “Temos um governo que foi eleito com margem de votos mínima e que precisa entender que temos Banco Central independente, agências reguladoras, Lei das Estatais e um Congresso com atribuições mais amplas”, disse ele aos empresários.
Por mais talentosa que seja a capacidade de negociação de Lula com o Congresso, a corrupção e o fisiologismo por cargos e verbas é o critério que move partidos que aderem interessadamente ao governo em troca de incerto apoio nas votações no Congresso.
O orçamento impositivo, criado para turbinar o golpe de 2016, ganhou uma versão piorada e ainda mais antirrepublicana na gestão Lira: o orçamento secreto. Com isso, o presidente da Câmara ganhou impressionante poder de chantagem e de desestabilização do governo.
A dificuldade do presidente Lula para concluir a montagem do governo, das diretorias e dos conselhos das estatais e de órgãos vinculados, assim como para demitir ministros de partidos conservadores implicados em práticas suspeitas, decorre da dependência de arranjos de governabilidade impostos por um sistema político corruptor e concebido pelas oligarquias para impedir forças progressistas governarem o país com o programa eleito nas urnas.
Além de ainda não ter conseguido nomear, quase findo o terceiro mês de governo, os conselheiros e diretores da Petrobrás, Itaipu e SEBRAE, Lula foi obrigado a entregar CTBU, Codevasf e Dnocs para a fina flor do fisiologismo de direita.
Mesmo com tais concessões, o governo não tem a garantia segura de votos retribuídos no Congresso para aprovação de projetos de seu interesse.
Na maior desfaçatez, o direitista União Brasil, que detém três ministérios, ainda assim se considera “independente” e chantageia o governo com a assinatura do pedido de CPI do 8 de janeiro para aumentar o quinhão de cargos e verbas.
VI.
A vitória do campo democrático e popular na eleição de 30 de outubro não significou a extinção da extrema-direita do cenário político. E tampouco representou a interrupção automática do padrão de espoliação em curso no Brasil desde o golpe.
O governo Lula se desenrola no contexto da guerra oligárquica que sangra a renda e as riquezas nacionais, ao mesmo tempo em que aprofunda a barbárie. E opera sob uma correlação de forças desfavorável.
A imposição, pelo establishment, da governabilidade baseada em coalizões congressuais contraditórias – o famigerado presidencialismo de coalizão – torna o governo Lula refém de uma maioria parlamentar conservadora e reacionária dentro de “um Congresso com atribuições mais amplas”, como Lira faz questão de assinalar.
O peso da extrema-direita não é inferior a 20% de deputados/as e senadores/as espalhados/as por diversos partidos.
E é conformada por representantes de diferentes setores de “alto potencial explosivo” – militares, policiais, fundamentalistas religiosos, financistas, armamentistas, mineradores ilegais, agrodevastadores etc.
Essa maioria tem poder para paralisar e sabotar o governo. E no limite, se o governo não tiver um sólido e mobilizado dispositivo popular de sustentação, a oposição pode derrubá-lo num passe de mágica, como ocorreu com Dilma. Com o apoio, inclusive, de setores que hoje estão no barco do governo.
VII.
O governo Lula é pressionado em quatro flancos:
[i] pelo capital/mercado, que promove terrorismo econômico e usa o Banco Central e a Petrobrás na engrenagem de roubo de saqueadores da renda nacional;
[ii] pelas cúpulas partidarizadas das Forças Armadas, mimetizadas como “profissionais e legalistas”, que apenas fizeram um recuo tático diante do desastre da intentona antidemocrática;
[iii] pelo Congresso, que controla a execução do orçamento nacional e consegue interditar as pautas governamentais; e, como ficou claro nas últimas semanas,
[iv] pela potência imperial do Norte, que cobra como retribuição por não apoiar Bolsonaro e os militares o alinhamento do Brasil na disputa geopolítica que trava com Rússia e China.
Lula é a última – e talvez a única – trincheira democrático-popular de resistência à escalada fascista e ao avanço da extrema-direita.
Num contexto de baixo e inconfiável compromisso das elites com a democracia, além das pressões poderosas sobre seu governo, Lula e sua base social, em especial o PT, precisam inventar, urgentemente, formas de governabilidade popular combinada com a governabilidade congressual.
Uma governabilidade que articule permanentemente diferentes mecanismos, como o de controle de políticas públicas por conselhos temáticos/setoriais com a deliberação sobre o direcionamento de verbas públicas por meio do orçamento participativo.
É fundamental, também, o governo criar dispositivos de democracia plebiscitária para deliberação de temas centrais, sensíveis e estratégicos.
Além do caráter politizador e educador da sociedade, a democracia plebiscitária, “a quente”, tem o potencial de atrair e organizar massas populares para o enfrentamento político à extrema-direita, que não desistirá nenhum segundo do intento de derrubar Lula.
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