Lelê Teles: É tempo de sacudir a poeira, ir pra avenida desfilar a vida, carnavalizar
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“bunda-mole não dança kuduro”, cacique papaku.
Por Lelê Teles*
a folia está de volta, foliões e foliãs enchem as ruas do brasil com a sua fagueira alegria colorida.
o ministério do namoro manda avisar que tá liberado o beijaço em praça pública e em linguagem neutra.
o carnaval deste ano tem sabor de solstício de verão – o sol brilha no zênite -, vencemos as trevas, derrotamos o dragão da maldade, o cordão dos insensatos, o horrendo bloco dos patriotários perfilados em quartéis.
derrotamos a escola sem partido, os guarda-mirins de colégio, a patrulha ideológica dos campi, os terroristas antidemocráticos.
logo, é tempo de festejar e sorrir.
“o sol, há de brilhar mais uma vez; a luz, há de chegar aos corações…”
há pouco estávamos, chorosos, de luto pelos que morreram na pandemia; e estávamos, também, raivosos, em luta contra o pandemônio fascistóide que nos atormentava.
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é por isso que o povo tá na rua com tanta felicidade, nunca a expressão “festa da democracia” foi tão adequada ao nosso carnaval.
é hora de chorar de alegria, com unha postiça, glitter na cara e bunda de fora.
“… do mal será queimada a semente, o amor será eterno novamente”.
confetes, serpentinas, lantejoulas, bodies cavados, meias-arrastão, cerveja quente e rebolations.
entre saias e minissaias, de calças e pés descalços, com brincos que brincam e amigues que drinkam, tu e tudo é apoteose.
as tranças, as transas, as trans, os trans e o trânsito trangênero em fluxos e refluxos fluviais e pluviais, porque chove também no carnaval, transformando em rio as avenidas, onde as gentes molhadas se sambam e se lavam, se elevam, se livram, se louvam e se luvam.
depois da subida de uma ladeira, um abraçaço e um amassaço curam qualquer cansaço e um beijo na breja substitui qualquer batom de cereja.
dizem, uns seguidores de schopenhauer, que o brasil só começa quando termina o carnaval.
e já ouvi de alguns discípulos de voltaire, os que só leram o cândido, que na verdade é o carnaval que só termina quando o brasil começa.
tremenda fuleiragem, o brasil nunca termina de começar e carnaval tem dia e hora pra acabar, o que não tem hora pra acabar é essa nossa alegria, é a carnavalização da vida, é o eterno adiamento da quaresma.
enquanto exu vai abrindo os caminhos, o sinal da cruz é a encruzilhada.
o brasil recomeça agora, em pleno carnaval.
esse é o brasil do futuro sancófico, permeado por seus passados sempre presentes e pronto pra seguir adiante: alegre, fraterno, sororo, beijante, rebolativo e reparador.
repare a dor dos que estão agora a se desmachificar, dos que pugilam lutas para nocautear o racismo que ainda os habitam…
“chora agora, ri depois”, como diriam os racionais.
no pain, no gain.
esse carnaval também tem um sentido pedagógico, o salão não é o mesmo de tempos atrás; agora é assim: não é não, e não tem mais essa de “cabeleira do zezé” e “maria sapatão”.
liberdade não é libertinagem, tudo tem limite e ninguém terá liberdade de opressão.
“eu falei faraó ó ó…”
a cultura brasileira pede passagem: são papangus, parafusos, caboclos de lança, laursas, zé pereiras, afoxés e ijexás, escolas que sambam, bloquinhos e blocões de rua, bumbas meu boi, eletrizantes trios elétricos, o frenético fervor do frevo e o surdão que se faz ouvir na avenida.
“a emersão, nem osíris sabe como aconteceu…”
maga, a mega, a legítima rainha do axé, finalmente teve sua cabeça coroada.
a cultura a saúda!
temos um ministério para cuidar e proteger os povos indígenas, temos um mano nos direitos humanos, temos uma anielle e um milhão de marielles.
temos fé e temos força.
sim, nós temos axé.
veja quanto riso e quanta alegria gargalham na expressão feliz dessa gente que entendeu que preconceitos opressivos como machismo, racismo, misoginia…, tudo isso não cabe mais em nós.
chega de black faces, de negas-maluca, de crioulos-doido, de homens que se travestem de mulher para ridicularizá-las.
esse é o carnaval da nossa redenção!
ergamos libações a dionísio: tim tim, seu chifrudo dos pés de bode.
a loucura é a nossa cura, é esse estado de catarse coletiva que nos une; é tempo de sacudir a poeira e dar a volta por cima.
“vamos pra avenida desfilar a vida, carnavalizar”.
o barba é o brabo!
palavra da salvação.
*Lelê Teles é jornalista, publicitário e roteirista.
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