Marina Lacerda: Estamos vivendo as ruínas de 40 anos de neoliberalismo

Tempo de leitura: 5 min

As polarizações que virão: “estamos vivendo as agonias de 40 anos de neoliberalismo”

Por Gabriel Brito*, no Correio da Cidadania

Apro­ximam-se elei­ções com o clima po­lí­tico e so­cial mais acir­rado da his­tória re­pu­bli­cana bra­si­leira.

Lula gal­va­niza as es­pe­ranças da ampla mai­oria de pro­gres­sistas que ha­bitam o Brasil, mas do outro lado há mais do que um can­di­dato ne­o­fas­cista: Bol­so­naro sim­bo­liza um mo­vi­mento global de en­ga­ja­mento de par­celas da po­pu­lação de ne­gação dos va­lores con­sa­grados pelo li­be­ra­lismo po­lí­tico que he­ge­mo­niza o Oci­dente há quase 250 anos.

Por­tanto, fe­chadas as urnas no Brasil as ditas po­la­ri­za­ções ha­verão de con­ti­nuar. É disso que trata a en­tre­vista que o Cor­reio pu­blica com Ma­rina Basso, au­tora do livro “O novo con­ser­va­do­rismo bra­si­leiro: de Re­agan a Bol­so­naro”.

A obra ana­lisa o bol­so­na­rismo como um mo­vi­mento ul­tra­con­ser­vador de busca por um mundo que se perdeu e trata como bode ex­pi­a­tório grupos so­ciais his­to­ri­ca­mente dis­cri­mi­nados pelas so­ci­e­dades que o ca­pi­ta­lismo en­gen­drou.

“Quanto ao ho­ri­zonte so­cial, cul­tural e ide­o­ló­gico, vou usar uma pa­lavra des­gas­tada, mas pre­cisa: ‘po­la­ri­zação’. Temos di­ante de nós um ho­ri­zonte de po­la­ri­zação. Há se­tores da so­ci­e­dade muito en­ga­jados em uma cada vez maior de­fesa da li­ber­dade dos cos­tumes, da di­ver­si­dade da or­ga­ni­zação dos afetos, na de­fesa de ex­pres­sões cul­tu­rais pro­gres­sistas, do com­bate muito forte ao ra­cismo; mas há também se­tores ou muito afer­rados ao tra­di­ci­o­na­lismo, ou lu­tando contra di­versas formas da igual­dade so­cial”.

Mas se por um lado é fácil apontar o ca­ráter pa­tri­arcal, re­li­gioso, he­te­ro­nor­ma­tivo e branco que ca­rac­te­riza os se­tores que al­can­çaram o be­ne­fício ma­te­rial e ima­te­rial das so­ci­e­dades or­ga­ni­zadas sob o modo de pro­dução ca­pi­ta­lista, por outro cabe ad­mitir que tal mo­vi­mento, em úl­tima ins­tância in­capaz de frear as trans­for­ma­ções do mundo, cap­turou os sen­ti­mentos de medo e frus­tração de ca­madas so­ciais su­bal­ternas.

“Parte das pes­soas po­bres, de­ses­pe­radas, sem poder, tendem a se agarrar a po­si­ções con­ser­va­doras, tra­di­ci­o­na­listas, como um modo de pro­teção contra o des­mo­ro­na­mento da vida, a falta de opor­tu­ni­dades, de pers­pec­tivas. Por­tanto, eu vejo al­guns as­pectos das ma­ni­fes­ta­ções da ul­tra­di­reita, sim, como um grito, mas não di­ante da re­dis­tri­buição de forças no sis­tema ge­o­po­lí­tico, e sim com a queda, de dé­cadas, das po­lí­ticas de bem-estar”, ana­lisou.

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A en­tre­vista com­pleta com Ma­rina Basso La­cerda pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Seu livro “O novo con­ser­va­do­rismo bra­si­leiro: de Re­agan a Bol­so­naro” já enuncia no tí­tulo uma abor­dagem mais his­tó­rica e con­jun­tural. E coin­cide com o pe­ríodo e o pró­prio líder po­lí­tico do que ficou com­pre­en­dido como ne­o­li­be­ra­lismo. O que ex­plica toda essa co­nexão?

Ma­rina Basso La­cerda: O que apro­xima a as­censão de Ro­nald Re­agan e a as­censão do Bol­so­naro é um pro­jeto po­lí­tico ba­seado em va­lores mo­rais da di­reita cristã e na de­fesa do pu­ni­ti­vismo como res­posta aos pro­blemas so­ciais, e em opo­sição aos mo­delos de in­ter­venção do Es­tado para re­dução das de­si­gual­dades.

Nos Es­tados Unidos dos anos 1980 esse pro­jeto vi­a­bi­lizou a im­plan­tação do ne­o­li­be­ra­lismo. No Brasil, esse marco po­lí­tico pos­si­bi­litou a re­to­mada do ne­o­li­be­ra­lismo em es­tado puro, sem as vá­rias mi­ti­ga­ções que foram feitas nos go­vernos do PT.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como a as­censão desses grupos ameaça as de­mo­cra­cias li­be­rais e aquilo que po­demos chamar de “con­senso dos mer­cados”, isto é, uma con­jun­tura po­lí­tica que pa­receu aceita in­clu­sive por se­tores à es­querda por de­ter­mi­nado tempo?

Ma­rina Basso La­cerda: Esse mo­vi­mento ne­o­con­ser­vador – ou pa­le­o­con­ser­vador como eu venho cha­mando mais re­cen­te­mente – tem no seu cerne a opo­sição a va­lores ilu­mi­nistas, li­be­rais.

É uma ló­gica de que o que está no centro de uma boa so­ci­e­dade são os va­lores tra­di­ci­o­nais, a “ver­da­deira” fa­mília, a re­li­gião e não di­reitos uni­ver­sais. No li­mite, essa luta contra o ilu­mi­nismo, tanto nos Es­tados Unidos quanto no Brasil, acabou le­vando ao re­chaço do que pos­si­vel­mente é o maior le­gado do ilu­mi­nismo, que é a de­mo­cracia li­beral. Eu ar­gu­mento isso em um livro re­cente que lan­çamos pela USP.

Isso acon­tece também porque, nos Es­tados Unidos e no Brasil, o pro­jeto que tem no seu centro a fa­mília tra­di­ci­onal e a re­li­gião – temas que têm muita le­gi­ti­mi­dade – acaba agre­gando com o seu de­sen­vol­vi­mento ou­tras ten­dên­cias da di­reita e da ex­trema di­reita, al­gumas das quais mi­litam di­re­ta­mente contra os marcos da de­mo­cracia re­pre­sen­ta­tiva. Por exemplo: aca­baram se as­so­ci­ando à di­reita cristã aqueles que são sau­do­sistas do re­gime de 1964.

Cor­reio da Ci­da­dania: Qual ho­ri­zonte his­tó­rico se co­loca di­ante de nós em re­lação a esta ali­ança po­lí­tica, econô­mica, cul­tural e ide­o­ló­gica?

Ma­rina Basso La­cerda: Nós es­tamos vi­vendo as ago­nias de 40 anos de ne­o­li­be­ra­lismo, com uma de­si­gual­dade per­sis­tente e con­sis­tente não só no Brasil como no mundo. Vi­vemos também um pro­cesso de fi­nan­cei­ri­zação sem pre­ce­dentes, sob o qual o re­sul­tado do tra­balho das fa­mí­lias e dos in­di­ví­duos é con­su­mido no pa­ga­mento de juros.

Lula, que deve ga­nhar as elei­ções, dá si­nais de que irá pro­mover po­lí­ticas in­clu­sivas, mas não sei até que ponto isso será pos­sível. De um lado, o perfil con­ci­li­ador dele é um dos seus grandes trunfos. De outro lado, como en­frentar essas ma­zelas econô­micas sem con­frontar forças po­de­rosas?

Quanto ao ho­ri­zonte so­cial, cul­tural e ide­o­ló­gico, vou usar uma pa­lavra des­gas­tada, mas pre­cisa: “po­la­ri­zação”. Temos di­ante de nós um ho­ri­zonte de po­la­ri­zação. Há se­tores da so­ci­e­dade muito en­ga­jados em uma cada vez maior de­fesa da li­ber­dade dos cos­tumes, da di­ver­si­dade da or­ga­ni­zação dos afetos, na de­fesa de ex­pres­sões cul­tu­rais pro­gres­sistas, do com­bate muito forte ao ra­cismo; mas há também se­tores ou muito afer­rados ao tra­di­ci­o­na­lismo, ou lu­tando contra di­versas formas da igual­dade so­cial.

Com a pro­vável vi­tória do Lula, os se­tores mais con­ser­va­dores (e os mais ra­di­ca­li­zados entre os con­ser­va­dores) se­guirão exis­tindo, é claro.

Vou dar um exemplo: nunca vimos o mo­vi­mento fe­mi­nista e os va­lores fe­mi­nistas per­me­ando tantos se­tores so­ciais; por outro lado, também nunca tí­nhamos visto fi­guras pú­blicas, na his­tória con­tem­po­rânea, de­fen­derem tex­tu­al­mente a sub­missão da mu­lher no ca­sa­mento.

Cor­reio da Ci­da­dania: É pos­sível tecer si­mi­la­ri­dades com o fenô­meno do na­zi­fas­cismo no sé­culo 20? Es­tamos di­ante de um re­a­vi­va­mento, sob novos sím­bolos, signos, até vo­ca­bu­lário, desse bloco?

Ma­rina Basso La­cerda: Essa é uma das ten­dên­cias da ex­trema di­reita con­tem­po­rânea no Brasil. Eu en­tendo o bol­so­na­rismo como um agre­gado mais ou menos co­e­rente, mais ou menos in­co­e­rente, de po­si­ções con­ser­va­doras. Temos a di­reita cristã, os mo­nar­quistas, os ul­tra­li­be­rais na eco­nomia, os ru­ra­listas, os ar­ma­men­tistas… O ne­o­na­zismo é uma dessas forças.

Cor­reio da Ci­da­dania: Se pro­je­tamos o fu­turo, es­ta­ríamos di­ante de ca­pí­tulos fi­nais de uma su­pre­macia oci­dental nas re­la­ções ge­o­po­lí­ticas ge­rais? O novo con­ser­va­do­rismo seria um grito de­ses­pe­rado pela volta a um pas­sado que não tem con­di­ções de se re­a­lizar di­ante de uma re­dis­tri­buição de forças ca­pi­ta­neada pela China, além das pró­prias con­di­ções ge­rais a que chegou o ca­pi­ta­lismo?

Ma­rina Basso La­cerda: Aqui pre­ci­samos se­parar duas coisas. Uma delas é a China. A re­ação ao co­mu­nismo em geral e à China em par­ti­cular têm um papel fun­da­mental para o de­sen­vol­vi­mento das vá­rias di­reitas. O ne­o­con­ser­va­do­rismo se es­tru­turou contra a URSS.

A di­reita bra­si­leira con­tem­po­rânea tem o So­ci­a­lismo do Sé­culo 21 como ini­migo. A di­reita cristã bra­si­leira, em 1964 e hoje, têm no an­ti­co­mu­nismo uma pedra de toque.

O an­ti­co­mu­nismo está pre­sente nas forças ar­madas bra­si­leiras há pra­ti­ca­mente um sé­culo e as par­ce­rias da China com a Dilma foram fun­da­men­tais para os mi­li­tares par­ti­ci­parem das es­tra­té­gias de der­ru­bada do PT. Há também a te­oria da guerra cul­tural, que é contra o le­gado de Gramsci, in­te­lec­tual mar­xista ita­liano. E assim por di­ante.

Mas o grito po­pular con­ser­vador não é contra a China. Como eu men­ci­onei antes, nós vi­vemos “nas ruínas”, para usar a ex­pressão de uma au­tora cha­mada Wendy Brown, ou vi­vemos as ex­pres­sões “mór­bidas”, para usar uma ex­pressão do ci­en­tista po­lí­tico André Singer. Ruínas, ex­pres­sões mór­bidas, de 40 anos de ne­o­li­be­ra­lismo, que é um pro­jeto po­lí­tico e econô­mico fun­dado para re­tomar a con­cen­tração de renda, aba­lada com as po­lí­ticas do pós-se­gunda guerra.

Parte das pes­soas po­bres, de­ses­pe­radas, sem poder, tendem a se agarrar a po­si­ções con­ser­va­doras, tra­di­ci­o­na­listas, como um modo de pro­teção contra o des­mo­ro­na­mento da vida, a falta de opor­tu­ni­dades, de pers­pec­tivas.

Por­tanto, eu vejo al­guns as­pectos das ma­ni­fes­ta­ções da ul­tra­di­reita, sim, como um grito, mas não di­ante da re­dis­tri­buição de forças no sis­tema ge­o­po­lí­tico, e sim com a queda, de dé­cadas, das po­lí­ticas de bem-estar.

*Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.

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Comentários

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Zé Maria

PoiZé.
Mas quantas Pandemias, quantas Enchentes,
quantos Desmoronamentos, quantas Inundações,
quantos Desmatamentos e Incêndios Florestais
virão, até a Derrocada desse Sistema Devastador?

Zé Maria

Orçamento Paralelo e Secreto,
para servir ao Centrão,
é o Bolsolão MariaMaçaneta:
Todo Mundo Mete a Mão.

https://twitter.com/search?q=BOLSOL%C3%83O

    Zé Maria

    Menos o Povão.

Pedro de Alcântara

Gostei muito da matéria. É um importante avanço com relação ao que temos visto e lido sobre o mundo em que vivemos. Mas se nos ativermos apenas às novidades e surpresas perdemos precisamente o essencial e não prestamos atenção ao que é necessário, àquilo que permite se falar em ciência. A ciência que nos permite compreender a natureza do capitalismo, suas leis, atingiu um estágio avançado no século 19, precisamente em 1867 quando Marx publicou o primeiro livro de O Capital. Nesta obra já está contida uma questão fundamental para a qual não se tem atentado suficientemente. Marx afirma, então, que o capital entrou numa fase destrutiva. Estamos agora vivendo, poderíamos dizer, a etapa final dessa fase. Entender o que Marx quer dizer com essa conclusão é fundamental para se entender os diversos momentos e formas desse processo de destruição. Podemos, aqui, lembrar alguns que são aqueles que pontuam de modo evidente esta fase: as duas guerras mundiais e os inumeráveis conflitos sobretudo gerenciados pela potência que neste momento está vivendo um verdadeiro processo agônico. Tudo isso são manifestações trágicas de um modo de produção cujas leis o impedem de tornar produtivas as forças que ele próprio engendrou. Isto anuncia a necessidade de grandes e fundamentais transformações.

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