Bolsonarismo assume comando de jornal do RN e chargista ganhador do Prêmio Vladimir Herzog é demitido: ‘Vai o jornal, mas fica o lápis!’, diz Brum
Tempo de leitura: 5 minInterferência política é apontada por chargista como motivo de demissão da Tribuna do Norte
Por Isabela Santos*, Agência Saiba Mais
“Vai o jornal, mas fica o lápis!”. Com essa frase, o premiado chargista Rodrigo Brum anunciou, na quinta-feira (8), sua despedida do meio de comunicação onde trabalhou por dez anos, a Tribuna do Norte.
Com o 1º suplente do candidato ao Senado e ex-ministro Rogério Marinho (PL), Flávio Azevedo (PL), assumindo o comando do jornal, o bolsonarismo se instalou na política editorial do veículo, que tem 72 anos e apesar de sempre ter sido ligado a políticos, estava entre os mais tradicionais e de maior credibilidade no Rio Grande do Norte.
Não há charge sem crítica e, em texto publicado nas redes sociais, Brum deixa evidente que o motivo da sua demissão foi ideológico:
“uma das primeiras atitudes dessa nova administração foi algo realmente sem qualquer conotação política: DEMITIR O CHARGISTA, que faz charges contra esse governo a favor da liberdade (…) Bem melhor me demitirem do que tentarem me moldar. Pelo menos isso. Sinal que as charges funcionaram, alguém se doeu muito”.
Em 2019, Flávio Azevedo assumiu o controle econômico da Tribuna do Norte. Na lista de bens declarados à Justiça Eleitoral em 2022, aparece o crédito decorrente de empréstimo concedido à empresa jornalística no valor de R$ 2,35 milhões – uma parcela da fortuna que soma R$ 25,5 milhões declarados.
Azevedo já foi candidato a suplente ao Senado de Wilma de Faria em 2014; também investiu no extinto Portal NoAr e foi secretário de Estado de Desenvolvimento Econômico no governo Robinson Faria.
O suplente de Rogério Marinho não aparece no expediente disponível no portal de notícias, mas em matéria publicada em 23 de março de 2020 sobre o lançamento da Jovem Pan News, a ele é atribuído o cargo de diretor da Rede Tribuna do Norte.
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De acordo com o expediente, o diretor-presidente continua sendo o ex-ministro Henrique Eduardo Alves (PSB). Mas, na nova gestão, é de Fernando Fernandes de Oliveira (ex-secretário de Turismo de Natal e do Estado) o cargo de diretor administrativo, ocupado cerca de 30 anos por Ricardo Alves, primo de Henrique.
Segundo o chargista, em recente reunião “cheia de otimismo” com os novos diretores, prometeram que não haveria interferência no conteúdo produzido pelos profissionais e chegaram dizer que antes é que havia um posicionamento político.
“Durante esse período, sempre fiz charges com total liberdade e autonomia”, discorda.
A maior parte da produção de Brum tem abrangência nacional. Pelo menos nas últimas 50 charges publicadas pelo artista, apenas uma citou diretamente um candidato do Rio Grande do Norte: Rogério Marinho.
Em live com filho do presidente Jair Bolsonaro, o ex-ministro do Desenvolvimento Regional disse que o aumento da fome no Brasil é fake news – um discurso que tem sido reproduzido pela extrema-direita, ignorando que o país voltou ao mapa da fome no atual governo, com aproximadamente 33 milhões de pessoas passando fome.
Espaço da charge
A página 2 (Opinião) do jornal impresso desta sexta-feira (9) já saiu sem a tradicional charge de Brum. Todo o espaço está ocupado com a coluna “Notas e Comentários”; um artigo do arcebispo de Natal, Dom Jaime Vieira Rocha; outro do jornalista Tomislav Femenick; e a seção “Cartas”, com comentários dos leitores: três sobre a chegada da tecnologia 5G, três sobre a morte da rainha da Inglaterra, Elizabeth II, e dois criticando o serviço da Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte (Caern).
A Tribuna do Norte mantinha a seção de humor diária desde a década de 1970, quando entrou para o quadro da empresa um dos cartunistas mais consagrados do país, Henrique de Sousa Filho, Henfil.
Passaram também pelas páginas do jornal Cláudio Oliveira, Emanuel Amaral, Edmar Viana, Antônio Amâncio de Oliveira Filho e Rodrigo Brum, que é natural de Maricá (Rio de Janeiro), formado em Publicidade e Marketing, pela ESPM-Rio.
Em 2018, Brum ganhou um dos prêmios mais importantes do jornalismo brasileiro, o Vladimir Herzog, na categoria Arte. A charge vencedora foi a “Marquinha”, que trata da violência contra a mulher preta e foi publicada em 12 de dezembro de 2017.
Confira o relato completo de Rodrigo Brum sobre a demissão:
Há poucos dias tivemos uma reunião super bacana na redação, cheia de otimismo, falando da nova direção.
Saí de lá comentando com um dos jornalistas que achava ótimo esse posicionamento prometido na reunião: de não deixar a política influenciar nas decisões, mesmo tendo no seu quadro de chefia o suplente de um ex-ministro do atual governo, candidato ao senado.
Pois bem, uma das primeiras atitudes dessa nova administração foi algo realmente sem qualquer conotação política: DEMITIR O CHARGISTA, que faz charges contra esse governo a favor da liberdade (kkkk).
Engraçado, que segundo a tal reunião, antes é que havia um posicionamento político, mas durante esse período, sempre fiz charges com total liberdade e autonomia. É isso, a partir de hoje não faço mais parte da Tribuna do Norte.
Falar que não fiquei preocupado, estaria mentindo, é uma grana que vai fazer falta. Falar que não foi chato, outra mentira, fiz muitos amigos nesses 10 anos de Tribuna, gente que vai fazer falta.
Mas saio com a cabeça mais erguida do que quando entrei. Bem melhor me demitirem do que tentarem me moldar. Pelo menos isso. Sinal que as charges funcionaram, alguém se doeu muito.
A demissão? Uma consequência que infelizmente nós chargistas estamos sujeitos ao fazer nosso trabalho nesse período de “liberdade” (outra piada).
Agradeço muito por essa década de aprendizado. Pelo prazer de trabalhar com o gigante do jornalismo potiguar, Julião. De ter tido professores como Carlos Peixoto, Cledivânia Pereira e o grande Woden. Gente, eu trabalhei com Woden Madruga, parceiro do Henfil quando o mesmo morou por aqui. Aliás, o mesmo Henfil que um dia já fez charges lá no jornal… olha a honra, ocupamos o mesmo espaço.
Então saio agradecendo por tudo isso. Espero ter feito alguma diferença durante esse tempo. Aprendi, errei, tive pequenas censuras, fui premiado, cresci.
Por isso mesmo repito: Saio de cabeça erguida. E muito feliz, porque se o novo caminho for esse, de demitir quem vai contra o governo, é melhor tá de longe.
Tem coisas que dinheiro nenhum compra. Mas como disse no título, vai o jornal mas fica o lápis. Continuarei com minhas charges, agora com muito mais liberdade. Quem sabe em breve consigo um outro veículo pra publicar, mas enquanto isso não acontece, não será isso que vai fazer eu ficar calado.
*Isabela Santos é jornalista e repórter da agência Saiba Mais
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