Carlos Cleto: Como na Segunda Guerra Mundial, os fascistas não vencerão

Tempo de leitura: 4 min
A histórica foto de Evgeny Khaldey registra um soldado hasteando uma bandeira da URSS no Reichstag, o parlamento alemão. É o final da Batalha de Berlim,  uma mais sangrentas da Segunda Guerra Mundial. A imagem original é em preto e branco.  Fotógrafo autodidata, Yevgeny fabricou sua primeira câmera com papelão e as lentes dos óculos de sua avó. Contratado pela agência de notícias soviética Tass, cobriu a Segunda Guerra desde a abertura da frente russa em 1941. Acompanhou o avanço do Exército Vermelho pelas regiões da Crimeia, dos Balcãs, da Hungria e da Romênia até chegar a Berlim, onde registrou o momento em que um soldado içava a bandeira vermelha sobre as ruínas do Reichstag. Porém, essa cena não foi espontânea: Khaldei convenceu dois soldados (os sargentos Mikhail Yegorov e Meliton Kantaria) a hastear uma bandeira feita por seu tio com uma toalha de mesa. Sua intenção era homenagear as tropas soviéticas. A imagem rodou o mundo, mesmo retocada para eliminar alguns detalhes (relógios que denunciavam as pilhagens de corpos em Berlim) e incluir fumaça no horizonte para criar um efeito de batalha, quando na realidade Hitler já estava morto há 2 dias.

Da Redação

Em 19 de agosto, publicamos a primeira da série de cartas do advogado e historiador Carlos Cleto a amigas e amigos.

Em 27 de agosto, a segunda: Como foi que tudo deu errado no Brasil?!

Hoje, a terceira. É a propósito do comentário da amiga Juca à segunda carta. 

Nela, Cleto retoma Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), já que a destinatária sempre gostou do nosso poeta gigante.

Juca é Juliana Calafange é carioca, atriz, roteirista e gestora cultural. Faz parte do coletivo As Contistas. Tem contos e poemas publicados nas coletâneas Devaneios Improváveis – quinta antologia,  Mulheres em Verbo e Toda-Mulher-Vaga-Lume.

***

Querida amiga,

Que saudade também!

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Juca, você me diz: “Adorei o texto, vai fundo no X da questão. Ando bem deprimida com tudo que estamos vivendo.”…

Eu não diria que você está deprimida; está apenas cansada de tanta estupidez.

Você sempre gostou de Drummond. Então, lembras de “E Agora José” ?

É assim (os negritos são meus, Cleto),

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?

E agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode.

A noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou, e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…

Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua para se encostar,
sem cavalo preto que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

Bem sei que a “interpretação oficial” desse poema o descreve como sendo uma mensagem de Drummond ao irmão mais velho, José.

Prefiro a interpretação que ouvi há vastíssimos anos atrás, em uma palestra de Plínio Doyle: que “José” aí é um conjunto de pessoas, todas “sérias, cultas, respeitáveis”, que apoiaram a Ditadura do Estado Novo, por convicção, por oportunismo ou “por puro tédio”.

Muitos eram amigos de Drummond, alguns eram amigos próximos.

Um desses amigos era Gustavo Capanema, ministro da Educação durante toda a ditadura do Estado Novo, de quem Drummond, ocultamente membro do PCB, era chefe de Gabinete.

“José”, esse é o nome do poema, saiu em 1942, em um “livro clandestino”: Drummond publica “Poesias”, uma coletânea de seus três primeiros livros, “Alguma Poesia”, “Brejo das Almas” e “Sentimento do Mundo”, e contrabandeia mais doze poemas ao fim do volume, para fugir da censura.

Esses doze poemas apenas em 1962 saíram em um volume separado como “José e Outros Poemas”.

É um livro amargo, contém coisas como

“Doce paz em mim, em minha família que veio de brumas sem corte de sol e por estradas subterrâneas regressa às suas ilhas, na minha rua, no meu tempo — afinal — conciliado, na minha cidade natal, no meu quarto alugado, na minha vida, na vida de todos, na suave e profunda morte de mim e de todos” (em “Os Rostos Imóveis”) e “Minha mão está suja. Preciso cortá-la. Não adianta lavar. A água está podre. Nem ensaboar. O sabão é ruim. A mão está suja, suja há muitos anos” (em “A Mão Suja”).

Esse é o contexto de “José”: a vida amarga sob a ditadura do Estado Novo, sem ver saída…

Dizer que “José” é uma carta ao irmão equivale a achar que “Apesar de Você” é um poema de amor !

Eu vou além de Plínio Doyle: o José do poema é sim um “conjunto de pessoas, todas “sérias, cultas, respeitáveis””, mas entre essas pessoas está o próprio Drummond, preso na armadilha de ser o Poeta Neutro em tempos infames.

Foi para si mesmo, e para seus amigos mais próximos, que Drummond escreveu “sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde?“.

“José” também é para nós, “A noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José?”, que vivemos essa tragédia que nos engolfou.

Aquele Drummond que previra a aurora que venceria os fascistas também se deprimia, e desanimava de sua chegada,

Muitas vezes julgamos ver a aurora
e sua rosa de fogo à nossa frente.
Era apenas, na noite, uma fogueira.
Voltava a noite, mais noite, mais completa.
(“Mas Viveremos”, em “Rosa do Povo”)

Outras vezes, sonhava… Conheces “Cidade Prevista” ? Esse também é da “Rosa do Povo”,

Um mundo enfim ordenado,
uma pátria sem fronteiras,
sem leis e regulamentos,
uma terra sem bandeiras,
sem igrejas nem quartéis,
sem dor, sem febre, sem ouro,
um jeito só de viver,
mas nesse jeito a variedade,
a multiplicidade toda
que há dentro de cada um.
Uma cidade sem portas,
de casas sem armadilha,
um país de riso e glória
como nunca houve nenhum.
Este país não é meu
nem vosso ainda, poetas.
Mas ele será um dia
o país de todo homem.

E já que falamos em “Apesar de Você”, aquele Poeta mais jovem cantou

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia

Pois Drummond, aquele mesmo que cultivara a Esperança de “Aurora, (…) O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos (…) Havemos de amanhecer.”, e depois duvidara dessa Esperança, viveu para ver o Exército Vermelho entrar em Berlim,

Olha a esperança à frente dos exércitos,
olha a certeza. Nunca assim tão forte.
Nós que tanto esperamos, nós a temos
com o russo em Berlim.
(“Com o Russo em Berlim”, em “Rosa do Povo”)

Os fascistas não vencerão. Nós também já esperamos demais.

Beijos”

Cleto

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Mesmo com os soldados de Hitler em Paris, Drummond anteviu “Havemos de amanhecer”. Nós também podemos

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Zé Maria

“O Cavaleiro e Os Moinhos”
(Aldir Blanc/João Bosco)

Por Elis Regina

https://youtu.be/ho1VXsBn7HU

Acreditar
na existência dourada do sol
mesmo que em plena boca
nos bata o açoite
contínuo da noite.

Arrebentar
a corrente que envolve o amanhã,
despertar as espadas,
varrer as esfinges das encruzilhadas.

Todo esse tempo
foi igual a dormir num navio:
sem fazer movimento,
mas tecendo o fio
da água e do vento.

Eu, baderneiro,
me tornei cavaleiro,
malandramente,
pelos caminhos.

Meu companheiro
tá armado até os dentes:
já não há mais moinhos
como os de antigamente.

Do LP “Falso Brilhante”

https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_lxilTTaox56VLzMtMaITBb-Cuo663T3Xc

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