Ângela Carrato: Bolsonaro tenta repetir Peru, Chile e Colômbia, onde direita e mídia se juntaram para ter 2º turno

Tempo de leitura: 9 min
Castillo, no Peru, Bóric, Chile, e Petro, na Colômbia, tiveram que suar muito no segundo turno para vencer a eleição presidencial nos respectivos país. No Brasil, a eleição será em 2 de outubro. Lula lidera as intenções de voto nas pesquisas eleitorais. Até lá, nada está definido nem está ganho. Fotos: Presidência do Peru, Prensa Latina e Ricardo Stuckert/Instituto Lula

O MÉTODO DE BOLSONARO E DA MÍDIA PARA DAR SEGUNDO TURNO

Por Ângela Carrato*, especial para o Viomundo

Falta pouco mais de um mês para as eleições de 2 de outubro.

Para alguns, o quadro eleitoral está definido e a chance de mudança é pequena ou quase nula. Infelizmente não consigo compartilhar deste otimismo que verifico em muitos setores do pensamento progressista brasileiro e em parte da esquerda.

As recentes eleições na América Latina ensinam como as disputas presidenciais na região têm sido difíceis e como a classe dominante local, no todo ou em parte, não mede esforços para emplacar seus candidatos.

Onde a vitória dos nomes de extrema-direita ou de direita se mostra difícil, a estratégia tem sido levar a disputa para o segundo turno. O objetivo é claro: arrancar dos candidatos progressistas compromissos que poderiam ser evitados.

No caso brasileiro, as eleições acontecem num quadro marcado por ameaças permanentes de um presidente fascista à nossa combalida democracia, passando pelo delicado contexto latino-americano e chegando até as graves turbulências do cenário mundial, com o Tio Sam fazendo de tudo para conter a emergência do mundo multipolar, capitaneado por China, Rússia e o Sul global.

Não está descartado nem mesmo que o conflito na Ucrânia que, na prática, é entre Estados Unidos e Rússia, se transforme em terceira guerra mundial.

Uma possível vitória de Lula, por sua vez, aponta para a recuperação da soberania brasileira e para o fortalecimento do Sul global, com ele se colocando como líder capaz de dialogar com todos num mundo em acelerada transformação.

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Daí as implicações desta eleição ultrapassarem em muito as fronteiras nacionais.

Como discutir estas questões não interessa aos poderosos de plantão, o debate de ideias nesta campanha promete repetir a pobreza que teve lugar em 2018, com o medo a as pautas de costumes tomando o lugar dos assuntos efetivamente relevantes para a maioria da população.

Agora existem até agravantes: as fake news estão mais sofisticadas, Bolsonaro tem o apoio de parcela dos militares e dá mostras de que não pretende respeitar as instituições. Some-se a isso a tentativa de se criar uma espécie de guerra de religiões no país por parte de Bolsonaro.

DE VOLTA AOS TEMPOS DOS “CORONÉIS”

O ex-presidente Lula lidera, com folga, todas as pesquisas de intenção de votos.

Bolsonaro, por sua vez, vem mantendo a posição de um segundo lugar distante, mesmo as últimas avaliações tendo indicado ligeira melhora no seu desempenho.

Fato que pode ser atribuído ao conjunto de medidas eleitoreiras que colocou em prática, a começar pelos auxílios e vouchers que passou a distribuir para diversos segmentos da população com o aval do Congresso Nacional e naturalização por parte da mídia.

Não é porque foi aprovado por um Parlamento majoritariamente integrado e comandado pelo Centrão (a turma do orçamento secreto), que tais medidas deixaram de ser eleitoreiras e um escárnio para a democracia.

Que a maioria da população precisa e muito desses auxílios, não resta dúvida. Mas a pobreza, provocada por este desgoverno, não pode ser utilizada por ele para manter-se no poder. Tanto que para esses auxílios serem viabilizados, sem se tornarem crime eleitoral, foi necessária aprovação do estado de emergência no país.

No mínimo, uma mídia comprometida com a democracia e com eleições limpas deveria estar denunciando isso diariamente. O Brasil retrocedeu aos tempos da República Velha, dos “coronéis” que negociavam votos em troca de pares de botas.

Para quem teve olhos e ouvidos para ver e escutar, Bolsonaro reafirmou suas ameaças à democracia ao vivo e em cores, na entrevista que deu ao Jornal Nacional, abrindo a série com os candidatos à presidência da República, que a TV Globo realiza nesta semana.

Textualmente, o que ele disse é que só aceitará o resultado das eleições, se elas forem limpas e transparentes, condicionando os fatos ao entendimento das Forças Armadas.

O que as Forças Armadas têm a ver com as eleições? Quem cuida das eleições é o TSE!

Se o questionamento do resultado das eleições de 2018, por Aécio Neves, deu no que deu, não é difícil imaginar o que pode acontecer agora, com parcela dos militares nitidamente apoiando Bolsonaro para não perderem suas boquinhas e boconas.

Pela primeira vez na história brasileira e possivelmente na mundial, militares, sem estar em guerra, receberam cerca de R$ 1 milhão por mês.

Esses assuntos e também a gravíssima crise econômica em que o país está mergulhado não são mostrados pela mídia corporativa e, sem surpresas, também estiveram ausentes na aguardada entrevista de William Bonner e Renata Vasconcellos com Bolsonaro.

Aliás, esta entrevista é um exemplo de como os estrategistas de Bolsonaro atuam e como a Globo, que foi fundamental para elegê-lo, continua passando pano para o ex-capitão.

RECADO ELOQUENTE

Depois de quatro anos sem dar entrevista para a emissora da família Marinho e de ameaçá-la com a não renovação de concessão (que vence em 5 de outubro), Bolsonaro soube aproveitar a oportunidade.

Além de ter reafirmado todas as suas mentiras, não foi confrontado pelos âncoras/entrevistadores no que há de mais essencial em uma eleição: a pauta econômica.

Os dois não perguntaram absolutamente nada para Bolsonaro sobre 33 milhões de brasileiros que passam fome, sobre a volta do país ao mapa da fome da ONU, a inflação de dois dígitos, metade da população desempregada ou subempregada.

Também questões essenciais como a reprimarização da economia brasileira e suas gravíssimas consequências, bem como privatização da Eletrobrás e a destruição da Petrobras, que os Marinho apoiam, ficaram de fora das perguntas.

Não por acaso, os dois assessores que acompanharam Bolsonaro até a porta do estúdio na Globo foram o ministro da Economia, o ultraneoliberal Paulo Guedes, e o ministro da Comunicação, Fábio Faria.

Recado mais eloquente, impossível, pois se Guedes é um amigo da Casa, Faria é o responsável pela renovação de concessões.

Uma entrevista no principal telejornal brasileiro não é qualquer coisa, especialmente quando se sabe que a imagem se tornou um território atravessado por todo tipo de batalhas, mais poderosas do que as na própria vida real.

A entrevista de Bolsonaro foi assistida por 9 milhões de pessoas, entre quem viu direto na TV e quem acessou pelas redes sociais.

Neste quesito, a turma que assessora Bolsonaro sabe muito bem que o importante para ele era manter suas mentiras como verdades, garantir o voto daqueles que estavam meio vacilantes e produzir material para usar nas redes sociais e no horário eleitoral de rádio e televisão, que começa na próxima sexta-feira.

Aliás, não há justificativas para perguntas envolvendo corrupção na família Bolsonaro ficarem de fora nesta entrevista.

Ao não tocar no assunto, os entrevistadores acabaram passando atestado de idoneidade a ele, reforçando a fala de que em seu governo não há corrupção.

Vale a pena observar, com redobrada atenção, como esse assunto será tratado em relação ao ex-presidente Lula na entrevista ao Jornal Nacional, na próxima quinta-feira.

Nessa terça-feira, o candidato Ciro Gomes, ao ser entrevistado no Jornal Nacional, repetiu o que tem feito. 

Bateu mais em Lula e no PT do que em Bolsonaro inclusive no quesito corrupção.

Fez, assim, o jogo de Bolsonaro e da família Marinho e deixou explícito que não medirá esforços para empurrar a eleição para o segundo turno. 

ARMAZÉM DE SECOS E MOLHADOS

A questão envolvendo o peso e poder da mídia é bastante complexa. Tanto que grande parte dos apoiadores de Bolsonaro nas redes sociais, num primeiro momento, não entendeu e até criticou os dois entrevistadores.

Em breve, trechos desta mesma entrevista estarão sendo reproduzidos por estas mesmas redes, como exemplos do “compromisso” de Bolsonaro “com a verdade”, mesmo sendo “duramente atacado” pela Globo.

Bonner e Renata (sua blusa e blaiser brancos foram peças semioticamente importantes) ao adotarem um dom incisivo e rostos fechados, davam a impressão de que apertavam o candidato, mas nada fizeram para rebater respostas mentirosas e facilmente desmontáveis.

Acabaram sendo coadjuvantes nas mentiras de Bolsonaro e na própria encenação da Globo para tentar mostrar que foi dura com ele.

Como a cultura visual contemporânea tem na mídia um dos espaços de sociabilidade mais importantes, a equipe de Bolsonaro conseguiu o que pretendia: motivar e estimular seus adeptos e apoiadores a redobrarem a luta.

O objetivo não era ganhar voto e nem mudar o voto de ninguém, mas manter o apoio que ele tem e tentar jogar a eleição para o segundo turno. Nesse sentido, a entrevista foi positiva para Bolsonaro.

Não se trata de cobrar de Bonner ou de Renata uma postura de oposição.

Ao contrário. O que se esperava é que agissem como jornalistas, capazes de questionar e de se contrapor aos argumentos mentirosos ou equivocados do entrevistado.

Mas o dito “jornalismo profissional” praticado pela mídia brasileira chegou a um nível tão baixo, que não falta quem confunda capacidade crítica com oposição. E, como diria o saudoso Millôr Fernandes, jornalismo sem crítica é armazém de secos e molhados.

No mais, era para a mídia corporativa brasileira, se tivesse um mínimo de compromisso com a democracia, estar colocando no ar reportagens e debates envolvendo a situação dos diversos setores da população, dando voz a eles e não transformando, como tem feito, a campanha eleitoral numa espécie de corrida de cavalos, onde o que importa são os resultados de pesquisas e não as propostas mais adequadas para se enfrentar os gravíssimos problemas nacionais.

Ao agir assim, a mídia corporativa brasileira segue as mesmas pegadas da mídia latino-americana que, por sua vez, se pauta pelos interesses de Washington.

A título de exemplo, vale lembrar as recentes eleições que aconteceram em países como Peru, Chile e Colômbia, onde os candidatos progressistas também lideravam as pesquisas de intenção de voto desde o primeiro momento, tinham chances de vencer no primeiro turno e, na reta final, essas eleições foram empurradas para uma nova disputa.

PAÍSES DIFERENTES, MÉTODOS IGUAIS

As realidades no Peru, Chile e Colômbia são diferentes entre si e diferentes do Brasil, mas o método adotado para enfraquecer candidatos progressistas foi o mesmo. E funcionou.

No Peru, onde a Operação Lava Jato teve uma atuação tão ou mais devastadora do que no Brasil, tendo levado um ex-presidente, Alan Garcia, ao suicídio, o embate se deu entre 18 candidatos, com a esquerda dividida e a extrema-direita fechada em torno da filha e herdeira do ex-ditador Alberto Fujimori, Keiko.

Apoiadora de Fujimori, a mídia corporativa peruana concentrou-se nos ataques à esquerda, tentando convencer os eleitores até de um absurdo risco do retorno do grupo guerrilheiro Sendero Luminoso, misturando propositalmente alhos com bugalhos.

O país assistiu à maior onda de fake news que se tem notícia por lá e elas acabaram provocando a derrota, no primeiro turno, de candidatos tidos como favoritos, e a ida, ao segundo turno, do camponês e líder dos professores, Pedro Castillo, que disputou com Keiko.

Castillo largou na frente, mas foi torpedeado a tal ponto que, mesmo vencendo, só conseguiu tomar posse dois meses depois da data prevista.

E até hoje, mais de um ano após assumir o poder, não conseguiu governar. Ele já trocou duas vezes de primeiro ministro (o sistema politico peruano prevê um presidente do Conselho de Ministros que, na prática, é um primeiro-ministro) e alterou seu ministério várias vezes em busca de apoio e de um mínimo de estabilidade.

No Chile, o candidato Gabriel Bóric emergiu das lutas e mobilizações populares contra o governo neoliberal do banqueiro Sebastian Piñera. O candidato de Piñera era José Antônio Kast, tido como o “Bolsonaro de lá”.

Pelo tamanho das mobilizações populares e pela composição da assembleia constituinte, majoritariamente progressista, a expectativa era de que Bóric vencesse no primeiro turno.

As mentiras do candidato situacionista, a conivência da mídia corporativa e as fake news sempre contra os setores progressistas, empurraram a eleição para o segundo turno.

Mesmo sendo defensor da ditadura e do “legado pinochetista”, Kast teve uma votação surpreendente para uma população como a chilena, que tanto sofreu e tanto lutou contra a ditadura. A diferença final entre eles foi de 11,74 pontos percentuais (55,87% a 44,13%).

Ao jogar a eleição para o segundo turno, os setores conservadores internos e externos do Chile conseguiram que Bóric fizesse alianças que teriam sido desnecessárias.

Como se isso não bastasse, esses setores agora trabalham a todo vapor para que a nova Constituição do país não seja aprovada pelo referendo popular marcado para 4 de setembro.

Dito de outra forma, também no Chile o novo presidente na prática ainda não começou a governar e já enfrenta uma rejeição recorde. De ídolo popular, Bóric, com poucos meses no poder, tem apoio de menos de 25% dos chilenos.

Na Colômbia, mídia e extrema direita fizeram ainda pior. Ao perceberem que o candidato de esquerda, Gustavo Petro, tinha chances de se eleger no primeiro turno, deixaram de lado, às vésperas do primeiro turno, o apoio que vinham dando ao ex-prefeito de Medelín, Federico Gutierrez.

Resultado: a “terceira via” que improvisaram com o apoio ao magnata Rodolfo Hernández, quase deu certo.

Alguns veículos de mídia colombiana chegaram a chamar Hernández de “fenômeno de votos” e Petro teve que suar a camisa para conquistar a vitória com apertados 50,44% dos votos.

Pelo tamanho, peso político e importância da economia brasileira, o que está em jogo nestas eleições aqui é muito maior. Aliás, o próprio estrategista-mor das campanhas de Trump e de seu aliado Bolsonaro, Steve Bannon, já disse que a disputa mais importante de 2022 é a brasileira.

Ela é importante, porque pode colocar o Brasil novamente no rol dos países soberanos e democráticos, além de auxiliar a consolidar a autonomia da América Latina no rumo de um mundo multipolar. Razão pela qual os Estados Unidos estão longe de ver uma vitória de Lula com bons olhos.

Dito de outra forma, talvez não haja um lugar em que, neste momento, a disputa eleitoral preocupe mais aos Estados Unidos do que aqui.

A conversa de que não interessa a Joe Biden uma vitória de Bolsonaro é para boi dormir. Até porque, em termos de interesses nacionais, o que efetivamente manda nos Estados Unidos é o chamado estado profundo (deep state), integrado pelas Forças Armadas, complexo industrial-militar e as agências de segurança (também conhecidas como órgãos de espionagem).

Ninguém deve esquecer que, quando do golpe contra Dilma Rousseff, em 2016, Biden era o vice-presidente dos Estados Unidos. Nem ele e nem o presidente Barack Obama disseram uma palavra sobre o assunto, logo eles que gostam tanto de falar em liberdade e em defesa da democracia.

Por tudo isso, essa campanha eleitoral promete ser das mais duras e marcadas por estratégias cuidadosamente articuladas.

Bolsonaro tem potencial para crescer. Vai jogar pesado e seu alvo é colocar o que resta de democracia contra a parede. Fez isso na entrevista ao Jornal Nacional e vai continuar fazendo se não for contido pelas instituições.

Nesse quadro, como diriam os antigos, não existe erro maior do que contar com o ovo que a galinha ainda não botou.

A campanha de Lula, que tem feito grandes e belos atos e comícios, precisa partir imediatamente para o corpo a corpo nas ruas e nas redes.

Nada está definido e muito menos ganho.

*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação da UFMG.

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Comentários

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José de Souza

Que bom que alguém veio colocar o dedo nessa ferida. Muitos portais de esquerda caem numa leitura ingênua, dizendo que o golpe não interessa aos EUA, que os empresários não querem mais o Bozo, etc. e tal. Se apoiam em declarações diplomáticas e manifestos que não tiveram adesão nem de 10% da classe burguesa. A elite não quer o Lula e, se tiverem que engoli-lo, se esforçarão para enfraquece-lo e acuá-lo o máximo possível. Emfim um texto com menos wishfull thinking e mais análise de conjuntura.

Maria Carvalho

“Onde a vitória dos nomes de extrema-direita ou de direita se mostra difícil, a estratégia tem sido levar a disputa para o segundo turno. O objetivo é claro: arrancar dos candidatos progressistas compromissos que poderiam ser evitados.”
E, com isso, a manutenção da elite, sempre, no poder

Zezeca Brasil

Parabéns por se contrapor ao otimismo ingênuo. Os golpistas agem nas sombras.
https://bananasnews.noblogs.org/post/2022/08/23/bananas-agem-nas-sombras/

Zé Maria

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A Perspectiva não é nada boa.
A Mídia Venal vai puxar o Tapete.
Não é recomendável que LULA
vá à Entrevista na Rede Globo
unicamente a dar-lhe Audiência.
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