Cientista perseguida faz levantamento inédito de pesquisas brasileiras que mostram impacto dos agrotóxicos na saúde humana
Tempo de leitura: 6 minApós censura, cientista faz levantamento inédito de pesquisas brasileiras que expõem impacto dos agrotóxicos na saúde
Pesquisadora foi perseguida após experimento que contestou dose segura de agrotóxicos. Levantamento reúne 51 estudos brasileiros dos últimos seis anos que trazem evidências sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde humana
Quando foi convidada, em 2019, a colaborar em uma pesquisa de um colega da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a imunologista e pesquisadora científica do Instituto Butantan Mônica Lopes Ferreira não fazia ideia das barreiras que seriam impostas à divulgação da descoberta feita em seu experimento: a de que não há dose segura de agrotóxicos.
Conhecida pela sua expertise em trabalhar com zebrafish – espécie de peixe cujo DNA é 70% similar ao material genético do ser humano –, ela foi contatada por um pesquisador da Fiocruz para submeter embriões de peixes à exposição de 10 tipos de agrotóxicos. “Quando ele me procurou, encarei, naquele momento, como sendo mais uma amostra que eu ia testar”.
Porém, o resultado não foi exatamente o esperado pelo colega. Segundo Ferreira, ele não quis dar publicidade ao achado, e também não autorizou a submissão dos dados para publicação.
O que aconteceu foi que a dose considerada “segura” pelos órgãos de controle, causou mortalidade nos embriões de peixes. Quando diluída até mil vezes em água, os embriões apresentaram anomalias.
As substâncias submetidas ao teste foram glifosato, malationa, abamectina, acefato, alfacipermetrina, bendiocarb, carbofurano, diazinon, etofenprox e piriproxifem. Por serem usadas em larga escala no país, o resultado do experimento causou alvoroço.
Essa história coincidiu com o momento em que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estava fazendo alterações na classificação dos agrotóxicos, também em 2019.
Muitos dos produtos antes considerados como “extremamente tóxicos” pela agência foram rebaixados para categorias menos rigorosas.
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O então diretor da Anvisa, Renato Porto, e a então ministra da Agricultura, Tereza Cristina, chegaram a dar entrevistas contestando o experimento da imunologista.
O herbicida glifosato foi um dos agrotóxicos que teve a classificação de toxicidade reduzida pela Anvisa, embora àquela altura fosse um dos produtos classificados pela Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC) como substância provavelmente carcinogênica para humanos; ou seja, capaz de provocar câncer.
O Glifosato 480 Agripec, por exemplo, que até então era considerado pela Anvisa “extremamente tóxico” foi reclassificado para “produto improvável de causar dano”.
Outra resolução, de 2020, reforçou a manutenção do uso de glifosato em agrotóxicos no país.
De acordo com o painel de monografias de agrotóxicos da Anvisa – ferramenta que permite acesso a informações atualizadas sobre os ingredientes ativos de agrotóxicos em uso no Brasil –, a aplicação de produtos à base de glifosato é permitida em 67 culturas, entre elas arroz, feijão, batata doce e mandioca.
A mesma situação ocorre com o inseticida malationa e outros produtos.
A própria Anvisa havia publicado, em 2015, ainda no governo de Dilma Rousseff, uma nota alertando sobre a classificação carcinogênica de cinco substâncias, entre elas a malationa, a diaziona e o glifosato. Na época, a agência havia se comprometido a verificar os resultados dos estudos e a fazer novas avaliações sobre o uso desses ingredientes.
A Bayer, gigante alemã responsável pela produção do Roundup, principal herbicida fabricado à base de glifosato, é alvo de uma ação movida por um casal em São Francisco, na Califórnia, que afirma ter desenvolvido câncer do sistema linfático depois de ter usado o produto por anos.
A Monsanto, que criou a formulação do herbicida e o lançou mundialmente em 1974, foi condenada a pagar R$ 289 milhões ao zelador de uma escola, também na Califórnia. O homem desenvolveu câncer após entrar em contato com a substância. O veredito saiu em 2018 – ano em que a Monsanto foi comprada pela Bayer.
Censura é respondida com ciência
Menos de um mês após divulgar o resultado do seu experimento, Mônica Lopes Ferreira recebeu um comunicado do Comitê de Ética Animal do Butantan dando conta de que ela estaria suspensa por seis meses sem direito de defesa – o que implicaria em não tocar mais os seus projetos.
A justificativa foi a de que a cientista não teria submetido o experimento ao comitê, o que seria proibido.
Segundo Ferreira, porém, não havia necessidade de submissão naquele caso porque o trabalho não havia envolvido animais, mas, sim, embriões com até 96 horas após a fertilização.
“Só pode ser considerado animal a partir de 120 horas após a fertilização”, explica.
A cientista conseguiu reverter a decisão do comitê por meio de uma liminar na Justiça. Mas outros fatos ocorreram na sequência, como o cancelamento de convites para determinados eventos, a perda do cargo de diretora do Laboratório Especial de Toxinologia Aplicada do Butantan e a abertura de um procedimento administrativo pelo instituto, vinculado à secretaria estadual da Saúde de São Paulo.
A pesquisadora afirma que “a única forma que conhece de se manifestar é produzindo ciência”.
Por isso, decidiu fazer, com a colaboração de oito colegas do Butantan, uma revisão sistemática de dezenas de estudos publicados por cientistas e produzidos a partir de 27 instituições públicas brasileiras que revelam os impactos dos agrotóxicos na saúde humana.
O trabalho, intitulado “Os impactos dos agrotóxicos na saúde humana nos últimos seis anos no Brasil” foi publicado em março deste ano no International Journal of Environmental Research and Public Health – uma revista científica de pesquisa ambiental e saúde pública, de acesso aberto e revisada por pares.
O artigo se debruça sobre 51 estudos que foram publicados em revistas científicas.
“A revisão é para dizer que é possível trabalhar com agrotóxicos dentro das instituições brasileiras, não há problema nisso. Nós não podemos ser perseguidos, precisamos ter liberdade para trabalhar com temas tão importantes para o Brasil”, explica Ferreira.
A cientista e seus colegas identificaram inicialmente 4.141 artigos produzidos no Brasil. Mas alguns critérios de corte foram estabelecidos para reduzir o número de pesquisas que seriam revisadas.
Um deles foi o tempo de publicação, de 2015 a 2021. “Escolhi publicações dos últimos seis anos, quando houve uma avalanche de agrotóxicos sendo liberados.”
Os artigos foram coletados das bases de dados PubMed, Scopus, Scielo e Web of Science.
As buscas foram feitas por meio de palavras-chave como “pesticidas”, “humanos” e “Brasil”.
No primeiro filtro, 381 artigos duplicados foram excluídos. Na sequência, dois revisores fizeram um estudo duplo-cego (quando os autores não sabem quem são os revisores) e selecionaram, de forma independente, títulos, termos de indexação e resumos para identificar artigos relevantes para possível inclusão. As discrepâncias foram resolvidas por um terceiro revisor.
Em uma segunda rodada de seleção, os artigos foram lidos de forma independente por dois revisores que usaram como critérios de inclusão pesquisas desenvolvidas no Brasil envolvendo agrotóxicos, artigos em inglês ou português e pesquisas envolvendo estudos diretos em humanos ou células humanas expostas a pesticidas, incluindo relatos de casos. Os artigos que não se enquadraram nesses critérios foram excluídos.
A partir daí, foram revisados estudos de caso e dados transversais e experimentais de relatos de intoxicação em humanos em decorrência de causas ocupacionais, ambientais e acidentais. Os estudos experimentais correspondem a 76,5% dos trabalhos revisados.
Além de Ferreira, assinam a revisão Adolfo Luis Almeida Maleski, Leticia Balan Lima, Jefferson Thiago Gonçalves Bernardo, Lucas Marques Hipolito, Ana Carolina Seni-Silva, João Batista-Filho, Maria Alice Pimentel Falcão e Carla Lima.
A maior parte dos estudos selecionados pela revisão são de áreas que concentram a produção de commodities agrícolas, sendo quase metade deles do Sul (46%) e 28% do Sudeste.
Um dos apontamentos feitos pela revisão é de que os agrotóxicos não são usados apenas em culturas como a soja, o milho e o tabaco, mas estão presentes em várias outras como laranja, café, flores, banana, uva, ameixa, tomate, caqui, maçã, pêssego, morango, kiwi e vegetais.
Os agrotóxicos mais citados nos estudos foram inseticidas, herbicidas e fungicidas.
Os artigos revelam mais de 20 efeitos decorrentes da exposição aos agroquímicos, indo desde reações agudas na pele e no sistema respiratório até doenças crônicas, incluindo anormalidades hematológicas (fatores de coagulação), infertilidade, abortos espontâneos, malformações fetais, doenças neurológicas e câncer.
Mecanismos subjacentes a esses efeitos, como ações genotóxicas (alteração do DNA), neurotóxicas (nas terminações nervosas) e desreguladoras do sistema endócrino também foram detectados pelos cientistas brasileiros.
Além de apontar que o uso de agrotóxicos na agricultura está diretamente ligado à saúde humana, Mônica Ferreira e seus colegas esperam que os resultados dos artigos possam ajudar a “direcionar políticas de redução do uso dos produtos químicos e de proteção à saúde da população”.
Outro lado
Procurados através das suas assessorias de imprensa, Fiocruz, Butantan e Anvisa não responderam até o fechamento da reportagem.
PS do Viomundo: Nesta segunda-feira, 25/07, a jornalista Schirlei Alves complementou a sua excelente reportagem, detalhando os possíveis impactos dos agrotóxicos na saúde humana.
Comentários
Hadriel Eliel dos Santos Sérgio
Que agrotóxico tá matando sim, todos sabemos, mas onde está o contrário, a solução para que não se use? Estudam somente a parte ruim? E o que pode ser feito para mudar essa realidade?
Raquel Moraes
Propor algum tipo de reação a este estado de coisas no Brasil, nesse momento, é possível mas não vai pra frente. Como disse o Nelson, com o tipo de “par lamentares” que temos no momento, somado ao temerário executivo federal…. estamos nas trevas, literalmente.
Zé Maria
O Agro é Tóxico.
Romualdo
Só para lembrar, o Paraná informou que suas águas de praticamente todos os seus rios, estão contaminados com agrotóxicos. Alguns anos atrás acharam resíduos de agrotóxicos até na Groelândia, tendo em vista que lá não se plantam nada que eu me lembre. Até quando a população do mundo vai pagar com suas vidas para que pequenos grupos tenham os seus lucros garantido ?
Jaderson Benedito de Oliveira
Moro no norte de MG próximo ao maior projeto de agricultura irrigada da América Latina, produz frutas para a exportação, onde é terminantemente o uso desses agrotóxicos, até a água que irriga essas frutas tem a adição de produtos químicos controlados, não é a mesma que molha as frutas que ficam no Brasil para consumo. Acredito que isso explica a incidência de câncer aqui 3x maior que no continente europeu.
Nelson
SENHOR VICENTE DE PAULA
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Ao que parece, o senhor faz parte do time dos que optam, intencionalmente, pela tática do “não li e não gostei”. Se não é isto, peço que releias o comentário uma vez mais ou quantas for preciso.
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Ou o senhor prefere se empanturrar cada vez mais de venenos e ver sua saúde e a de seus entes queridos ir definhando até que apareçam as doenças degenerativas provocadas pelos agrotóxicos, cânceres, Alzheimer, demência, Parkinson, autismo, etc?
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“Proposta inovadora”? Quem tem a “proposta inovadora”, já há muito tempo, são os pequenos agricultores ecológicos. Contudo, a maioria dos governos e parlamentos vem aceitando, quando não impondo, a liberação de uma quantidade cada vez maior de agrotóxicos para serem usados nas nossas lavouras a cada ano que passa.
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Só nos primeiros três anos do (des)governo Bolsonaro, foram liberados mais de 1500 novos venenos agrícolas. Detalhe: 30% desses venenos são proibidos na Europa devido a sua altíssima toxicidade.
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Aqui no meu Estado, o governador Eduardo Leite, que agora quer se reeleger, derrubou uma lei que trazia alguma proteção extra aos gaúchos contra os venenos. O Rio Grande do Sul era pioneiro, a única província do país em que se conseguiu inserir na Constituição Estadual uma lei assim.
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Mas, trabalhando exclusivamente pelos interesses do “topo da pirâmide”, um ínfimo contingente da população – grandes latifundiários, indústria química e farmacêutica – Leite acabou com a lei.
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Já faz mais de 20 anos que compro a maior parte dos alimentos que consumo na Feira Ecológica aqui da minha cidade. Assim, estou tentando preservar a minha saúde e a saúde dos meus familiares, ao mesmo tempo em que apoio as famílias de pequenos agricultores que se deslocam todo sábado de madrugada para a minha cidade, já a partir das 3 horas da manhã.
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Com meu apoio, eles permanecerão em suas terras produzindo alimentos de qualidade enquanto protegem também sua saúde e, de extrema importância para todos, protegem a natureza.
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Precisa de uma “proposta” mais “novadora” do que o investimento na agroecologia?
Nelson
Propaganda é o que você usa quando não pode enganar o outro pessoalmente ( do grande Millôr Fernandes)
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“Quando uma coisa é muito oferecida, é podre ou é fedida” (não sei afirmar quem seria o autor dessa, mas meus país sempre a repetiam)
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“Agro é tech, agro é pop, agro é tudo” é apenas mais um caso a explicitar o total descompromisso do marketing, da propaganda e dos órgãos da mídia hegemônica e seus comentaristas com a verdade das coisas.
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“Agro é tech, agro é pop, agro é tudo” é só mais um caso a demonstrar que o capitalismo, seja liberal ou neoliberal, autoritário ou democrático (*), não tem qualquer outro compromisso que não seja com os seus lucros, que são privatizados, apropriados por uns poucos
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A saúde e o bem-estar, a integridade física e, por consequência, a qualidade de vida das pessoas fica em segundo, terceiro, quinto plano ou nem mesmo é levada em conta por esse sistema absurdamente deletério.
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“Agro é tech, agro é pop, agro é tudo” é só mais um caso a demonstrar que, por detrás do sucesso retumbante da agricultura dita moderna, alardeado incessantemente pela propaganda, o que existe é uma série gravíssimas de problemas e consequências altamente destrutivas que são tratadas como externalidades que não devem ser levadas em conta.
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Até quando vamos assistir, passivamente, a nossa natureza e a nossa saúde e a saúde dos nossos entes queridos serem mais e mais destruídas para que uma parcela ínfima de grandes latifundiários e donos da indústria química e farmacêutica possam lucrar sempre mais?
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Até quando, a cada quatro anos, vamos seguir elegendo uma maioria de parlamentares (pra lamentares, na verdade) e governantes que vão tomar as medidas políticas visando continuar e aprofundar esse modelo agrícola que não passa de uma aberração inqualificável?
Dinamérico Vicente de Paula
Falou muito e nada de proveito. Principalmente por que não apresenta proposta inovadoras.
Mais um que só sabe falar mal de tudo e de todos…lamentavelmente.
Eduardo
Olha, entendi perfeitamente o que diz, mas vamos lá. Peixe e um ser humano são completamente diferentes, 70% parece muito, porém basta ver o quanto o ser humano e o chimpanzé compartilham de genes para ver o quanto 1% já faz uma diferença gritante no nosso corpo. Outra coisa é que a diferença entre um remédio e um veneno é a dosagem. Todo remédio, veneno, agrotóxico, possuí uma vida útil, tanto que quanto mais tempo se passa, pior é a eficiência, portanto perde a capacidade de fazer mal. O próprio produtor sabe disso e o alimento passa por um tempo onde não se joga nada e as embalagens são descartadas de forma adequada. Agora se fosse tão ruim, o mundo não estaria hoje com quase 8bi de pessoas. É só olhar 100 anos atrás para ver o quanto a população cresceu. No mais, ninguém é obrigado a comprar nada de ninguém, plante o seu alimento e seja feliz!
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