Dalva Garcia: A barbárie cotidiana, a desumanidade e a educação para o amor
Tempo de leitura: 5 minPor Dalva Garcia
Por Dalva Aparecida Garcia*
Os últimos acontecimentos estampados na imprensa e redes sociais são aterradores, assim como as análises de comentaristas deste país:
1) Um procurador da República agride sua chefe, tomado por uma espécie de ressentimento, que merece investigação. A imprensa diz que talvez não seja questão de gênero, mas desentendimento acerca dos procedimentos legais típico dos conflitos habituais do mundo do trabalho.
2) Enfermeiras registram o abuso sexual de mulheres em trabalho de parto por um médico anestesista. Imprensa comenta a inteligência das enfermeiras ao registrar o crime, mas “esquece” de analisar o silêncio corporativista de outros médicos frente a essa atrocidade;
3) Um guarda municipal petista é assassinado em sua própria festa de aniversário por um agente penal eleitor do atual presidente, mas a mídia trata inicialmente como uma simples briga política, reduzindo os fatos à mera ideia de polarização, como bem denunciou Eliara Santana, aqui no Viomundo, em sua coluna Desnudando a mídia.
Isso sem falar de manobras diversionistas para tirar do foco o crime político cometido por um bolsonarista contra um petista. Uma delas: investigações para medir o teor de álcool no sangue — pasmem! — dos presentes à festa.
4) Seguem as investigações acerca da morte de ambientalista e jornalista britânico na Amazônia legal tomada por atividades ilegais de garimpeiros que, segundo informações, chegam a 20 mil sem que ninguém os veja ou impeça.
Me restrinjo aqui aos últimos acontecimentos objetivos, ou seja, ligados aos Fatos Sociais. Termo do cientificismo em voga graças ao emergente fanatismo religioso que continua matando a população graças ao pressuposto da virilidade e invencibilidade propagada pelo “mito” eleitoreiro que, depois de décadas na Câmara Federal, pretende se reeleger.
Os acontecimentos enumerados aqui correspondem, nas devidas proporções, à mesma lógica da barbárie que conduziu a humanidade ao campo de extermínio humano de Auschwitz.
Roga-se por severidade e punição com a devida seriedade dos cidadãos de bem. Todavia, a punição acaba abrandada porque não há como negar lacunas que não podem e não devem ser preenchidas sob o risco de entendermos como se instaura a barbárie e até aonde ela pode conduzir a humanidade.
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Acerca desse perigo o filósofo alemão Theodor Adorno escreve o artigo Educação após Auschwitz, no qual fala da necessidade de relembrar para não repetir.
Embora sucinto, esse artigo (fruto de uma palestra proferida pós o Holocausto) não reduz a complexidade da temática descrita em obras como a Dialética do Esclarecimento com Max Horkheimer publicada pela primeira vez em 1944.
Enfim, nos dois textos o autor procura fazer uma análise crítica com o intuito de preencher as lacunas de um modelo de racionalidade que, à primeira vista, nos séculos XVII e XVIII prometia libertar a humanidade dos mitos, do fanatismo religioso, das intolerâncias e preconceitos através da razão.
Todavia, o que se prometia libertador conduziu a um novo e mais perverso mito: o mito da racionalidade técnica que, na perspectiva dos autores, envolve uma correlação de forças políticas, econômicas, sociais e, psicanalíticas que ocultam uma dominação mais atroz e aterradora, pois culminou não apenas na Segunda Guerra, mas na experiência perversa e sádica dos campos de extermínio principalmente de judeus, mas também de homossexuais e de toda espécie de humanidade capaz de resistir ao totalitarismos de cunho nazifascista.
Adorno, neste texto, retoma uma citação de Paul Valéry que, segundo ele, resume o espírito que perpassa a contemporaneidade dos fatos que elenco aqui, inclusive antes das atrocidades da Grande Segunda Guerra, de que ‘a desumanidade teria um grande futuro’.
O futuro da desumanidade está no perigo de considerarmos a atrocidade dos campos de concentração como um evento histórico isolado, que nos remete a um passado que deve ser destacado desde que encerrado nos manuais de história das escolas e nos museus.
Daí a importância da educação. De uma educação capaz de distinguir os mecanismos perversos que exaltam o desenvolvimento técnico e a eficácia da razão instrumental como instrumento de dominação acomodado aos mecanismos de poder do Estado, de severidade e, principalmente, aos devaneios de uma identidade coletiva que busca eliminar o diferente, sejam eles: os “ativistas ambientais”, mulheres “insubmissas”, “negros revoltadinhos” ou “gente petralha que fica bebendo álcool em festinhas”.
Vale ressaltar aqui também que o discurso que perpassa os documentos oficiais da educação no país e o Novo Ensino Médio centrado no desenvolvimento de habilidades e competências para um projeto de vida de êxito é parte da racionalidade técnica que analisa Adorno.
É bom lembrar que, não por mero acaso, o ensino de sociologia, filosofia, história e geografia (as referências de análise do eu e do outro no tempo e espaço) foram sintetizados na reforma educacional do Novo Ensino Médio (NEM) em “Ciências Humanas e suas tecnologias”.
Cito, aqui, uma das afirmações de Adorno em Educação após Auschwitz:
“Um mundo em que a técnica ocupa uma posição tão decisiva como acontece atualmente, gera pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica. Isto tem a sua racionalidade boa: em seu plano mais restrito elas serão menos influenciáveis, com as correspondentes consequências no plano geral. Por outro lado, na relação atual com a técnica existe algo de exagerado, irracional, patogênico. Isto se vincula ao ‘véu tecnológico.
Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens. Os meios e a técnica é um conceito de meios dirigidos à autoconservação da espécie humana que são fetichizados, porque os fins de ‘uma vida humana digna’ encontram- se encobertos e desconectados da consciência das pessoas”
Quero enfatizar que a patologia de exaltação à técnica como um fim em si mesma, presente nas orientações das políticas públicas nacionais não apenas colaboram para futuro da desumanidade como são contrárias às orientações de Adorno para a educação já na primeira infância, a retomada de uma educação para o amor.
Amor não propriamente no sentido cristão ou, eu diria, pseudocristão de pregação.
Nas entrelinhas do texto está um recado sublime e potente. Negar essa exaltação à técnica e aos tecnólogos e burocratas implica evitar a tendência de se buscar em grupos identitários uma espécie de jogo psicanalítico comum entre sadomasoquistas: um jogo de apanhar e bater, servir e mandar.
Escreve Adorno:
“A falsidade de compromissos que se exigem para que alguma coisa — mesmo que seja boa –, sem que elas sejam experimentadas por si mesmas como sendo substanciais para as pessoas, percebe-se muito prontamente. É espantosa a rapidez com que até mesmo as pessoas mais ingênuas e tolas reagem quando se trata de descobrir as fraquezas dos superiores.
Facilmente os chamados compromissos convertem em passaporte moral e são assumidos com o objetivo de identificar como cidadão confiável ou, ainda, produzem rancores raivosos psicologicamente contrários às suas destinações originais. Eles significam uma heteronomia, um tornar-se dependente de mandamentos, de normas que não são assumidas pela própria razão do indivíduo.
O que a psicologia denomina superego, a consciência moral é substituída no contexto dos compromissos por autoridades exteriores, sem compromisso, intercambiáveis, como foi possível observar na Alemanha depois da queda do III Reich.
Porém justamente a disponibilidade em ficar ao lado do poder tomando exteriormente como norma curva-se ao que é mais forte, constituí aquela índole do algoz que nunca mais deve ressurgir”.
Em síntese, uma educação para o amor implica educação para autonomia e não para o individualismo tacanho, exige um compromisso com a humanidade enquanto compromisso ético e não moralismo hipócrita. Exige resistência ao grande futuro da desumanidade, como previa o poeta e pensador Paul Valéry.
Como na canção de Chico Buarque: “talvez num tempo de delicadezas”. E não de punições ou vinganças frias e irracionais.
Adorno termina o seu artigo Educação após Auschwitz se referindo a uma conversa com o filósofo Walter Benjamin que cometeu suicídio tentando escapar como judeu da fúria dos nazistas:
“Em Paris, durante a emigração, quando eu ainda retornava esporadicamente à Alemanha, certa vez Walter Benjamin me perguntou se ali ainda havia algozes em número suficiente para executar o que os nazistas ordenam. Havia.
Apesar disto a pergunta é profundamente justificável. Benjamin percebe que, ao contrário dos assassinos de gabinete ideólogos, as pessoas que executam as tarefas agem em contradição com seus interesses imediatos, são assassinas de si mesmas na medida em que assassinam os outros.
Temo que será difícil evitar o aparecimento de assassinos de gabinetes, por mais abrangentes que sejam as medidas educacionais. Mais, que haja pessoas que, em posições subalternas, enquanto serviçais, façam coisas que perpetuam sua própria servidão, tornando-as indignas”.
*Dalva Garcia é professora de filosofia da rede pública de São Paulo.
Dalva Garcia
Professora de filosofia da rede pública de São Paulo.
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