Vijay Prashad: EUA querem evitar a integração eurasiática

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Vladimir Putin e Xi Jinping por ocasião dos Jogos de Inverno, em Pequim. Foto: Reprodução Youtube

Os EUA querem evitar um fato histórico: a integração eurasiática

Por Vijay Prashad, em Brasil de Fato

Ao longo dos últimos quinze anos, os países europeus se viram com grandes oportunidades para aproveitar e com escolhas complexas para tomar.

A dependência insustentável dos Estados Unidos para comércio e investimento, bem como a curiosa distração do Brexit, levou à integração constante dos países europeus com os mercados energéticos russos, e a uma maior absorção das oportunidades de investimento chinês e suas proezas na área de manufaturas.

Ligações mais estreitas entre a Europa e esses dois grandes países asiáticos (China e Rússia) provocaram os EUA a lançar uma agenda para impedir ou atrasar essa integração.

Essa agenda, agora aprofundada durante a recente reunião do G7 na Alemanha, e a cúpula da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na Espanha, está criando uma situação perigosa para o mundo.

Isso remonta à crise financeira de 2007-2008, que foi estimulada pelo colapso do mercado imobiliário dos EUA e de várias instituições financeiras importantes dos EUA. A crise sinalizou para o resto do mundo que o sistema financeiro centrado neste país não era confiável.

Os EUA não poderiam continuar sendo o mercado mais importante para as commodities do mundo. Países do G7 – que se viam como os guardiões do sistema capitalista global – imploraram a Estados fora de sua órbita, como a China e a Índia, que colocassem seus excedentes no sistema financeiro ocidental a fim de evitar seu total derretimento.

Em troca desse serviço, foi dito aos países fora do G7 que, daquele momento em diante, o G20 seria o órgão executivo do sistema mundial e o G7 seria gradualmente dissolvido.

No entanto, quase vinte anos depois, o G7 permanece no lugar, assumindo o papel de líder mundial, com a Otan, o cavalo de Tróia dos EUA, agora se posicionando como o policial do mundo.

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O Secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, tem dito que a organização passará pela maior revisão de sua “dissuasão e defesa coletiva desde a Guerra Fria”.

Os países membros da Otan, agora com a presença da Finlândia e da Suécia, irão expandir suas “forças de alta prontidão” de 40 mil soldados para 300 mil que, equipados com uma gama de armamento letal, estarão “prontos para serem enviados para territórios específicos no flanco oriental da aliança”, a saber, a fronteira russa.

O novo chefe do Estado Maior do Reino Unido, general Sir Patrick Sanders, disse que essas forças armadas devem se preparar para “lutar e vencer” em uma guerra contra a Rússia.

Com o conflito na Ucrânia em andamento, era óbvio que a Otan colocaria a Rússia em primeiro plano na Cúpula de Madrid. Mas os materiais produzidos pela Otan deixaram claro que não se tratava apenas da Ucrânia ou da Rússia, mas de impedir a integração eurasiática.

A China foi mencionada pela primeira vez em um documento da Otan na reunião de Londres de 2019, na qual foi dito que o país apresentou “tanto oportunidades quanto desafios”.

Em 2021, a música tinha mudado, e o comunicado da Cúpula da Otan em Bruxelas acusou a China de “desafios sistêmicos à ordem internacional baseada em normas”.

O Conceito Estratégico revisado de 2022 acentua essa retórica ameaçadora, com acusações de que a “concorrência sistêmica da China (…) desafia nossos interesses, segurança e valores e busca minar a ordem internacional baseada em normas”.

Quatro países não pertencentes à Otan (Austrália, Japão, Nova Zelândia e Coréia do Sul; os Quatro da Ásia-Pacífico), estiveram presentes na cúpula da Otan pela primeira vez, o que os aproximou da agenda dos EUA e da Otan que visa exercer pressão sobre a China.

Austrália e Japão, juntamente com a Índia e os EUA, fazem parte do Diálogo Quadrilateral de Segurança (Quad), frequentemente chamado de Otan asiática, cujo mandato claro é restringir as parcerias da China na área da Orla do Pacífico.

Os Quatro da Ásia-Pacífico realizaram uma reunião durante a cúpula para discutir a cooperação militar contra a China, deixando claro as intenções da Otan e de seus aliados.

Na esteira das revelações da crise financeira de 2007-2008 e das promessas não cumpridas do G7, os chineses adotaram dois caminhos para ganhar mais independência do mercado consumidor estadunidense.

Primeiro, melhoraram o mercado interno chinês, por meio do aumento da assistência social, da integração das províncias ocidentais da China na economia e da abolição da pobreza absoluta.

Segundo, eles construíram sistemas comerciais, de desenvolvimento financeiros que não estavam centrados nos EUA.

Os chineses participaram ativamente com o Brasil, Índia, Rússia e África do Sul do processo dos BRICS (2009) e colocam recursos consideráveis na Iniciativa de Cinturão e Rota (ICR, a “Nova Rota da Seda”) desde 2013.

A China e a Rússia resolveram uma longa disputa de fronteiras, melhoraram seu comércio transfronteiriço e desenvolveram uma colaboração estratégica (mas, ao contrário do Ocidente, não formularam um tratado militar).

Durante esse período, as vendas de energia russa para a China e Europa cresceram e vários países europeus aderiram à ICR, o que aumentou os investimentos mútuos entre a Europa e a China.

As formas anteriores de globalização na Eurásia foram limitadas pelo colonialismo e pela Guerra Fria; esta foi a primeira vez em 200 anos que a integração começou a ocorrer de forma equitativa em toda a região.

As escolhas comerciais e de investimento da Europa foram totalmente racionais, pois o gás natural canalizado através do Nord Stream 2 era muito mais barato e menos perigoso que o gás natural liquefeito (GNL) do Golfo Pérsico e do Golfo do México.

Considerando a situação caótica do Brexit e as dificuldades de fazer deslanchar a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, a maior parte da Europa viu as oportunidades de investimento chinês como muito mais generosas e confiáveis do que outras alternativas.

Em contraste, a aversão ao risco e a prática de manipulação de políticas públicas ou condições econômicas como estratégia para aumentar os lucros, por parte de Wall Street, tornou-se menos atraente para o setor financeiro europeu.

A Europa caminhava inexoravelmente em direção à Ásia, que ameaçava a base do sistema econômico e político dominado pelos EUA (também conhecido como a “ordem internacional baseada em normas”).

Em 2018, o presidente dos EUA, Donald Trump, criticou publicamente Stoltenberg, da Otan, dizendo-lhe que “estamos protegendo a Alemanha, estamos protegendo a França, estamos protegendo todos esses países. E então vários desses países saem e fazem um acordo de oleoduto com a Rússia, pagando bilhões de dólares para os cofres russos (…) a Alemanha está refém da Rússia (…) acho isso bastante inapropriado”.

Embora a linguagem da Otan tenha se voltado para ameaças de guerra contra a China e a Rússia, o G7 se comprometeu a desafiar iniciativas lideradas pela China por meio do desenvolvimento de um novo projeto, a Parceria para a Infra-Estrutura Global e o Investimento (PGII), um fundo de 200 bilhões de dólares para investir no Sul Global.

Enquanto isso, as lideranças da cúpula dos BRICS, realizada no mesmo momento, ofereciam uma avaliação sóbria dos tempos, exigindo negociações para acabar com a Guerra da Ucrânia e medidas a serem tomadas para conter as crises em cascata vividas pelos pobres do mundo.

Esse órgão, que representa 40% da população mundial, não falava em guerra, e a força dos BRICS poderia aumentar, já que Argentina e Irã solicitaram sua adesão ao bloco.

Os EUA e seus aliados procuram permanecer hegemônicos e enfraquecer a China e a Rússia, ou mesmo erguer uma nova cortina de ferro em torno desses dois países. Ambas abordagens podem levar a um conflito militar suicida.

O clima no Sul Global é de uma aceitação mais ponderada da realidade da integração euro-asiática e da emergência de uma ordem mundial baseada na soberania nacional e regional e na dignidade de todos os seres humanos. Nada disso pode ser realizado pela guerra e pela divisão.

A perspectiva de guerra em uma escala nunca vista antes evoca “Uma Canção Pessoal”, do poeta iraquiano Saadi Yousif (1934-2021), escrito pouco antes dos Estados Unidos iniciarem seu bombardeio mortal do Iraque em 2003:

“É o Iraque?
Abençoado seja aquele que disse
Eu conheço o caminho que leva até lá;
Abençoado é aquele cujos lábios pronunciaram as seis letras:
Iraque, Iraque, nada além de Iraque. Mísseis distantes irão aplaudir;
soldados armados até os dentes vão nos atacar;
minaretes e casas se desmoronarão;
palmeiras vão cair sob o bombardeio;
as margens ficarão repletas
de cadáveres flutuantes.
Raramente veremos a Praça Al-Tahrir
em livros de elegias e fotografias;
Restaurantes e hotéis serão nossos roteiros
e nossa casa no paraíso do abrigo:
McDonald’s
KFC
Holiday Inn;
e seremos afogados
como seu nome, o Iraque,
Iraque, Iraque, nada além de Iraque.”

Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano. Diretor-geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Edição: Vivian Virissimo

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Comentários

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Zé Maria

Os Estados Unidos da América (EUA) jamais aceitaram Integrações entre Países que não estivessem subordinados aos Interesses Geopolíticos e Econômicos dos
próprios EUA. E continuam não aceitando. Multilateralismo é só com a OTAN.

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